terça-feira, 10 de junho de 2014

Da relação entre evolução biológica e esportes

Eu perdi mais de 9.000 arremessos em minha carreira. Eu perdi quase 300 jogos. Em 26 vezes, confiaram em mim para dar o lance vencedor e eu errei. Eu falhei muitas e muitas e muitas vezes na minha vida. E foi por isso que tive sucesso.
Michael Jordan

Em tempos de Copa do Mundo da Fifa e da seleção da Confederação Brasileira de Futebol, a biologia evolutiva pode ser uma ferramenta interessante para se discutir o papel dos esportes na natureza humana. Questões sobre as origens das competições esportivas e porque elas atingiram tamanha centralidade nas culturas contemporâneas não são de interesse exclusivo dos programas de debate jornalístico e das mesas-redondas pós-jogo nos domingos à noite. 

Fonte: http://www.etravelphotos.com/ 
Na sua obra magna On the origin of species (publicada originalmente em 1859), o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) defendia que os organismos estavam em luta perpétua pela vida e que somente os mais bem-adaptados sobreviveriam, deixando uma maior quantidade de filhotes e, consequentemente, aumentando a frequência de suas características na população de uma geração para outra. O raciocínio darwiniano partia da existência de variação prévia nas populações. Os organismos, portanto, adaptam-se às condições ambientais que enfrentam e esse processo, se continuado por longo períodos, pode levar ao surgimento de novas espécies.

Adaptações são as propriedades dos seres vivos que os tornam capazes de sobreviver e de se reproduzir na natureza. Segundo a teoria evolutiva clássica, qualquer atributo que leve um organismo a deixar mais descendentes do que a média da população, isto é, que permita taxas diferenciais de reprodução, terá frequência maior nas gerações subsequentes.

Para que a seleção natural ocorra são necessárias algumas condições:

1. Os organismos precisam ser capazes de reproduzir;
2. Suas características devem ser hereditárias;
3. Deve existir variação de caracteres individuais entre os membros de uma população; 
4. É necessária a ocorrência de variação da aptidão (fitness) do organismo, de acordo com o estado de um determinado caráter herdável. Por aptidão entende-se o número médio de descendentes diretos deixados por um membro médio da população.

Darwin não foi capaz de explicar qual o mecanismo da hereditariedade. Esse problema só encontrou solução quando as ideias de Gregor Mendel (1882-1884) passaram a constituir a teoria da hereditariedade aceita, a partir da década de 1920. Ronald Fisher (1890-1962), J.B.S. Haldane (1892-1964) e Sewall Wright (1889-1988) conseguiram demonstrar que a seleção natural poderia operar em conjunto com a genética mendeliana. Assim estabeleceu-se o que se conhece hoje como a Síntese Moderna da Evolução ou Teoria Sintética da Evolução, por muito tempo tido como o paradigma da teoria evolutiva, centrada no papel preponderante da seleção natural atuando na variedade pré-existente originada a partir de mutações aleatórias e recombinações cromossômicas.

Na perspectiva da Síntese Moderna, a seleção natural leva à evolução a partir das mudanças no ambiente, em decorrência do surgimento de uma nova forma que sobrevive melhor do que a forma vigente. A variação seria resultado de mutações aleatórias, ocorridas durante a replicação do DNA, e da recombinação cromossômica, no processo de meiose que ocorre durante a formação dos gametas. Ao surgir um novo genótipo recombinante não existiria qualquer tendência dele estar relacionado a uma melhora adaptativa. Nessa visão, a pressão seletiva sobre as características dos indivíduos, provenientes de fatores ambientais, leva à fixação de determinados atributos em detrimento de outros. Esse fenômeno é conhecido como mudança da frequência genética nas populações.

Em linhas gerais, a seleção natural é tida como a explicação para a existência de adaptação. Sua atuação proporciona o surgimento de um pico adaptativo no qual o organismo com maior valor de aptidão para um determinado caráter tem vantagem sobre outro com um valor de aptidão menor – a pressão de seleção encaminharia os indivíduos a um estado adaptativo ótimo ou sub-ótimo. Como diz o escritor Max Barry, em seu livro Homem-máquina (originalmente publicado em 2011, página 201):
Ninguém pode ser perfeito na maior parte do tempo. Ninguém pode ser perfeito apenas em alguns momentos. Ou você é perfeito ou não é. E eu não acho que a biologia trabalhe com a noção de perfeição. Biologia é eficiência aproximada. É uma questão de ser razoavelmente boa. Um vácuo é perfeito. Pi é perfeito. A vida não.
A psicologia evolutiva baseia-se em cenários selecionistas para explicar a evolução do comportamento humano. Por muito tempo após a publicação do On the origin of species, estudos sociais, comportamentais e psicológicos passaram ao largo da teoria evolutiva darwiniana. Segundo professor de psicologia David Buss, da Texas University, a psicologia evolutiva é uma tentativa de reunir todas as disciplinas humanas, antes fragmentadas e muitas vezes contraditórias, em um todo logicamente integrado que incorpore os conceitos da teoria da evolução de forma correta e exclua, ao mesmo tempo, todas as percepções e crenças tradicionalmente aceitas que não façam sentido no contexto evolutivo. A psicologia evolutiva pode ser vista como um programa de pesquisa que busca compreender a origem do ciúme, habilidades de raciocínio, processos decisórios, linguagem, preferências de acasalamento, status social, agressão e sexo. Para Buss, como todo tipo de comportamento depende de mecanismos psicológicos complexos, e todos os mecanismos psicológicos, ao menos em algum nível, resultam de um processo de evolução por seleção natural, todas as teorias psicológicas são implicitamente teorias psicológicas evolutivas. A evolução é responsável por quem somos hoje.

Fonte: http://www.animalgalleries.org/
É nesse contexto que se pode discutir a conexão entre esportes e evolução, mais especificamente os mecanismos da seleção natural e da seleção sexual, tanto para se analisar o esporte como analogia à competição no mundo orgânico, quanto para se tentar entender a relação entre torcer / praticar esportes e algum tipo de vantagem seletiva surgida durante a história evolutiva dos hominídeos.

Apesar da sua importância em todas as sociedades humanas desde tempos imemoriais, no geral o esporte tem recebido pouca atenção de biólogos evolucionistas. Isso é surpreendente porque a universalidade dos esportes sugere que sua origem possa ser bem compreendida no contexto da biologia evolutiva.

Segundo Michael Lombardo, do Departamento de Biologia da Grand Valley State University:
As características das brincadeiras entre animais sugerem que os esportes se originaram dessa forma. As brincadeiras entre mamíferos jovens, incluindo humanos, frequentemente mimetizam comportamentos (por exemplo, captura de presas, fuga de predadores, lutas) necessários à sobrevivência. O comportamento de humanos brincando também mimetiza aqueles presentes em muitos esportes (correr, perseguir oponentes, lançar e interceptar projéteis). Em animais não-humanos, as brincadeiras tendem a ocorrer durante um período crítico para o desenvolvimento do cerebelo e para a diferenciação de fibras musculares. Diferentemente das brincadeiras entre os não-humanos, as nossas podem persistir até a idade adulta.
Complexas organizações se desenvolveram, especialmente ao longo dos últimos 150 anos, para regular e promover competições atléticas. Tais competições são importantes eventos sociais, com público de mais de dezenas de milhares de espectadores nas partidas (por exemplo, nos jogos olímpicos e em finais de campeonatos de futebol ou basquetebol). Apesar dessas competições atléticas serem frequentemente simples (por exemplo, quem corre por 100 metros mais rápido?), envolverem poucos participantes e não terem, aparentemente, um propósito biológico direto (como vencer a corrida dos 100 metros afeta a sobrevivência e sucesso reprodutivo do campeão?), elas afetam boa parte da população mundial. A significância social e política global das Olimpíadas de Berlim em 1936, em pleno governo nazista na Alemanha e às portas da Segunda Guerra Mundial, também não pode ser negligenciada.

Competições atléticas são parte importante do tecido social nas sociedades contemporâneas e é interessante notar que, no geral, mais homens do que mulheres, em todas as idades, praticam e assistem a esportes, ao vivo ou pela televisão. Como conjectura a psicologia evolutiva, é possível dizermos que atletas campeões alcançariam maior status dentro dos seus grupos sociais e, dessa forma, aumentariam suas oportunidades de sobrevivência/reprodução. Isso sugere a influência da seleção natural em moldar as características dos atletas e dos esportes dos quais eles participam. 

Essas observações levantam importantes questões sobre o papel do esporte na natureza humana: (1) Como e por que o esporte começou?; (2) Por que os esportes são primariamente fenômenos masculinos?; (3) Por que atletas campeões em determinados esportes frequentemente alcançam maiores status, aumentando suas oportunidades de reprodução, do que atletas em outros esportes e empreitadas?; (4) Quais são os papeis relativos da seleção intra e intersexual na moldagem das características do esporte? (5) Por que os esportes obtiveram tamanha importância nas culturas modernas? 

Para a psicologia evolutiva, um cenário possível para explicar a existência, permanência e diversificação dos esportes baseia-se na seleção sexual, descrita por Darwin como a luta entre indivíduos de um sexo, geralmente os machos, pela posse do outro sexo - a seleção sexual seria responsável pela evolução de todo atributo que desse aos organismos portadores alguma vantagem reprodutiva, mesmo que ele, a priori, pareça minimizar a sua capacidade de sobrevivência (a cauda frondosa de um pavão macho é um exemplo típico).

No início, o esporte teria se originado a partir de brincadeiras e treinamento para luta, caça e guerra, possibilitando ao homem um teste para suas habilidades na competição por fêmeas e também como uma forma de avaliar aliados e rivais em potencial. Os comportamentos e atributos físicos associados com o sucesso atlético seriam subprodutos de características que evoluíram no contexto das competições físicas entre machos (relacionadas à seleção sexual) e à caça e guerra em sociedades primitivas. Esses subprodutos são conhecidos como exaptações, termo cunhado pelos paleontólogos Stephen Jay Gould (1941-2002) e Elisabeth Vrba para designar mudança de função de uma estrutura durante a evolução – uma adaptação que não teria evoluído a partir de pressões seletivas relacionadas à sua função atual. A seleção sexual, portanto, explicaria porque homens são mais interessados em esportes, como praticantes e também como espectadores, do que as mulheres. Obviamente nem todos os atributos existentes nos organismos, incluindo aí o Homo sapiens, são resultado direto do processo de seleção natural. No entanto, é consenso entre boa parte dos evolucionistas que, a despeito de como uma característica tenha se originado, ela será selecionada positivamente se permitir maiores taxas de sobrevivência e reprodução quando comparados a outros indivíduos da mesma espécie.

Fonte: http://www.picturesnew.com/
Além de explicações sobre a origem histórica dos esportes e sua relação com a seleção natural/sexual, uma questão evolutiva fundamental a ser discutida diz respeito aos diferentes tipos de doping e às possibilidades do Homo sapiens mudar sua constituição física (e, talvez, suas habilidades atléticas) a partir do desenvolvimento científico-tecnológico. Esse é um dos tópicos de pesquisa do transhumanismo, filosofia que busca discutir a transcendência tecnológica da condição humana (e discutida anteriormente nesse blog).

O crescimento e a recuperação muscular são controlados por sinais químicos, os quais, por sua vez, são regulados por genes. A perda muscular devido à idade ou doenças pode ser revertida pelo aumento ou bloqueio desses sinais, através da adição de um gene sintético regulador. Os atletas poderiam usar a mesma técnica para aumentar o tamanho, a força e a resistência dos seus músculos, e o tratamento seria virtualmente indetectável. Quando a terapia gênica entrar em uso clínico, pode ser difícil evitar seu abuso. Dado um quadro de busca incessante pelo ganho de desempenho em esportes de alto rendimento, a maneira de encarar o melhoramento biológico a partir da ciência e da tecnologia terá que mudar.

Na contemporaneidade, muitas realidades técnicas estão em emergência promissora. Entram aqui coisas como a confecção de medicamentos que reduzem efeitos colaterais, engenharia tecidual para a regeneração de células e órgãos, e nanotecnologia utilizada em tratamentos de saúde. A realidade potencial destas técnicas permite expandi-las para o aperfeiçoamento das propriedades naturais humanas, como o aumento das capacidades cognitivas e físicas, regulação da sensibilidade ao stress ou a dor. A possibilidade de expandir os limites físicos, criando atletas em certo sentido super-humanos, gerará impactos expressivos nos esportes, e terá que ser analisada tanto em termos econômicos quanto biológico e filosóficos. Um atleta transhumano seria ainda um Homo sapiens ou estaríamos já falando de uma pós-humanidade? Teriam que ser criadas competições específicas para transhumanos? Torceríamos com igual paixão para o Transhuman Football Club? 

A relação entre esportes e a teoria evolutiva, especialmente o mecanismo da seleção natural e seu papel no aumento da aptidão local, ainda precisa ser investigada com mais detalhes. É possível que exista uma relação entre a prática e o apreço por esportes e possíveis estratégias evolutivas surgidas há milhões de anos entre os hominídeos. Isso vale também para as implicações sociais dos esportes, relativas à psicologia evolutiva e à uma moralidade e éticas pós-darwinianas, que discute como o desenvolvimento científico-tecnológico influencia o futuro da nossa espécie.

A biologia evolutiva é capaz de construir cenários para responder a questões como “O que representaria um jogo em termos evolutivos?”, “Por que torcemos?”, “Por que praticamos esportes?” e “Há limites aceitáveis para a melhoria do desempenho atlético?”. Mais do que apenas entretenimento ou procrastinação, os esportes remontam a comportamentos muito anteriores à origem dos hominídeos e, além de arraigadas à história evolutiva dos animais, estão no cerne de contendas sociais e científicas com potencial profundamente explosivo. Pense nisso na próxima vez em que estiver assistindo ao bate-bola na televisão!

Fonte: http://www.zimbio.com/

Referências sugeridas

Block, A. & Dewitte, S. 2009. Darwinism and the cultural evolution of sports. Perspectives in Biology and Medicine, 52(1), 1–16.
Buller, D.J. 2008. Varieties of evolutionary psychology. Em: Hull, D.L. & Ruse, M. (eds.) The Cambridge Companion to the Philosophy of Biology, Cambridge University Press, p. 255-274.
Buss, D.M. (org.) 2005. The handbook of evolutionary psychology. John Wiley & Sons, Inc. 
Lombardo, M.P. 2012. On the Evolution of Sport. Evolutionary Psychology, 10(1):1–28.
Sweeney, H.L. 2012. Doping genético. Scientific American Brasil Especial – A surpreendente complexidade da máquina humana, 28–34.
Urho, M., Kujala, U.M., Sarna, S., Kaprio, J., Tikkanen, H.O. & Koskenvuo, M. 2000. Natural selection to sports, later physical activity habits, and coronary heart disease. British Journal of Sports Medicine, 34, 445–449.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Pandoravirus, chave para a biosfera oculta?

A ciência é a busca de curvas simples, previsíveis, formas compactas de apresentar os dados. Existe sempre, porém, o perigo de que as curvas que vemos sejam ilusórias, como imagens de animais nas nuvens. A verdade é que sempre ficamos com uma dúvida angustiante: estamos deixando de lado algo importante? 
George Johnson, Fogo na mente (1997)

Há alguns meses, fui visitar a casa da minha mãe no interior do estado junto com meu irmão. No carro, começamos a conversar sobre cinema. Em certo momento, discutíamos a respeito de Hellraiser: Renascido do Inferno, um filme britânico de horror escrito e dirigido por Clive Barker em 1987. Discordamos frontalmente a respeito da qualidade do filme (para meu irmão, é uma porcaria; penso que a película tem momentos interessantes, especialmente se consideramos seu orçamento restrito de apenas 1 milhão de dólares).


A peça chave da história é um quebra-cabeça em forma de caixa chamado “Caixa de Lemarchand”. No universo criado por Barker, a mais conhecida dessas caixas recebe o nome de Configuração do Lamento. Essa caixa é um mecanismo místico que funciona como uma porta, ou uma chave, para outro plano de existência. A resolução do quebra-cabeças cria uma ponte para essa nova dimensão, um reino de prazer eterno e inimaginável. No filme, Frank Cotton resolve o quebra-cabeças e abre o cubo, penetrando em um mundo labiríntico habitado por cenobitas, criaturas demoníacas vestidas de couro, deformadas, com escarificações e lacerações pelo corpo, que levam ao extremo o ideal sadomasoquista: alimentam-se de sensações, sobretudo dor e sofrimento, impingidas a outras pessoas. A única emoção que conhecem é o êxtase experimentado pela flagelação. Preso nessa dimensão – uma versão contemporânea e bondage do inferno bíblico –, Frank tem seu corpo dilacerado por ganchos e correntes, que rasgam sua carne em pedaços, fazendo-o experimentar o máximo de prazer através da tortura infinita (essa é a premissa do filme, não é culpa minha!). 

A caixa de Lemarchand, supostamente criada pelo arquiteto e artesão francês Phillip Lemarchand em 1749, também é conhecida como Caixa Miraculosa ou Caixa de Pandora. Na mitologia grega, Pandora – palavra derivada de pan, “todo”, e dõron, “presente” – é a primeira mulher, sobre a qual pouco se sabe. Pandora foi feita no céu por Hefasto e Atena, e cada um dos deuses teria a aperfeiçoado. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio, a persuasão, Apolo, a música. Assim dotada, Pandora fora enviada à Terra e oferecida a Epimeteu. Ele tinha em sua casa uma caixa, em que guardava os artigos que considerava malignos. Pandora, tomada de curiosidade para conhecer o conteúdo daquela caixa, certo dia destampou-a. Com isso, ela liberou uma multidão de pragas que atingiram o homem, tais como a gota, o reumatismo, a cólica, a inveja, o despeito e a vingança. Vendo o que tinha causado, Pandora apressou-se em colocar a tampa na caixa, mas todo seu conteúdo havia escapado, com exceção da esperança, que ficara no fundo. 

Em julho de 2013, uma descoberta extraordinária “abriu a caixa de Pandora” da biologia evolutiva, levando ao questionamento de uma série de pressupostos aceitos há mais de cem anos. Desde o On the origin of species de Charles Darwin (publicado em 1859), imagina-se que todos os organismos existentes no planeta estejam conectados em uma imensa árvore de vida em que cada galho corresponderia a uma espécie. É possível que tenham existido, desde o organismo primordial, mais de um bilhão de espécies, todas elas aparentadas, em graus diferentes. Tem sido difícil, ou mesmo impossível, posicionar os vírus nessa árvore. A descrição do Pandoravirus salinus e do Pandoravirus dulcis, dois super-vírus encontrados em amostras de água coletadas respectivamente no Chile e na Austrália, com cerca de 1 micrômetro de comprimento e 0.5 micrômetros de diâmetro (maiores até que alguns organismos eucariotos!), trouxe a discussão à tona mais uma vez. Eles se assemelham aos demais vírus conhecidos, mas também têm particularidades que fizeram alguns pesquisadores considerarem-nos como pertencente a um domínio exclusivo, um grupo que pode ter se diferenciado dos demais seres vivos existentes no planeta há mais de três bilhões de anos. A descoberta dos Pandoravirus também abre perspectivas para novos estudos sobre a possibilidade de existência de uma “biosfera oculta” na Terra, formada por potenciais formas alternativas de vida, com um bioquímica radicalmente distinta da conhecida.


É consenso dizer que os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios. Eles têm seu genoma composto por DNA ou RNA, que dirige a síntese e a “montagem” dos componentes virais, formando novos vírus, usando a maquinaria metabólica da célula parasitada. Em termos estruturais, os vírus são extraordinariamente simples, as máquinas de sobrevivência e reprodução mais eficientes e otimizadas de todo o planeta. Eles são pouco mais do que um envoltório formado por proteínas (o capsídeo) envolvendo o material genético. 

Como citado acima, a despeito do seu sucesso evolutivo, os vírus não se encaixam em nenhuma posição tradicional entre os superdomínios da vida, que são três, seguindo a classificação de Carl Wöese: (1) Archaea, composto pelas bactérias extremófilas, que vivem em ambientes de alta salinidade, temperaturas altíssimas ou profundidades abissais; (2) Eubacteria, as bactérias “clássicas”; e (3) Eukarya, que reúne todos os seres vivos que portam um envoltório nuclear, a carioteca, incluindo aí organismos tão distintos quanto amebas, sequóias, moscas e dinossauros. Por não terem metabolismo próprio (conjunto de reações químicas através das quais os seres vivos constroem e mantêm seus corpos, crescem e realizam tarefas como locomoção e reprodução) e serem replicados por montagem de partes pré-formadas ao invés de se multiplicarem por fissão binária, os vírus tradicionalmente não se ajustam aos sistemas de classificação biológica. Alguns autores nem mesmo os consideram como seres vivos. Eles não são capazes de importar nutrientes e energia do meio ambiente, não se movem, não se dividem, não crescem... No entanto, vírus se reproduzem, interagem com o aparato metabólico da célula hospedeira e subvertem o metabolismo desta, utilizando-o na produção das suas réplicas. 

Os Pandoravirus não se encaixam exatamente na descrição dos vírus tradicionais. Eles têm genes comuns aos de vírus gigantes e têm um ciclo de vida tipicamente viral, com absorção, penetração, liberação do material genético do vírus no interior da célula hospedeira, transcrição e replicação do material genético viral, montagem dos novos vírus e liberação. Nos Pandoravirus faltam muitas das características de organismos celulares como as bactérias (eles não produzem suas próprias proteínas, não produzem energia via ATP ou se reproduzem por divisão). No entanto, eles são maiores que muitas bactérias, não apenas em tamanho como na quantidade de bases nitrogenadas do seu material genético, como mostra a figura abaixo – P. salinus tem 1.9 milhão de bases enquanto P. dulci tem 2.5 milhões. Os Pandoravirus têm apenas 7% dos seus genes semelhantes aos genes conhecidos para qualquer espécie classificada entre os três superdomínios da vida.

A falta de similaridade poderia ser um indicativo de que eles se originaram de um organismo anterior ao surgimento do ancestral comum de toda a vida reconhecida no planeta. Seria essa espécie viral o primeiro organismo descrito da “biosfera oculta”? Tal biosfera – ainda hipotética já que não há qualquer confirmação da sua existência – seria formada por microorganismos com processos bioquímicos e moleculares radicalmente diferentes das formas de vida conhecidas. Esse termo foi cunhado pelos pesquisadores Carol Cleland and Shelley Cooper em 2005. Para eles:
Encontrar uma forma de vida que difere daquela que conhecemos em sua arquitetura molecular e bioquímica seria profundamente importante tanto de uma perspectiva científica quanto filosófica. Há uma quantidade convincente de evidências de que a vida conhecida hoje na Terra compartilha um ancestral comum universal [no inglês, LUCA, abreviação de Last Universal Common Ancestor]. É improvável que o LUCA tenha sido a primeira forma de vida uma vez que ele já seria muito sofisticado, tendo ácidos nucléicos e proteínas, assim como processos metabólicos complexos. Em suma, a vida como a conhecemos representa um exemplo único de um estágio muito avançado (Cleland & Cooper, 2005, p. 165).  
Organismos de uma “biosfera oculta” poderiam ter sobrevivido de forma independente, em seu próprio sistema de relações predador-presa, tornando-se adaptados a ambientes menos hospitaleiros para a vida microbiana que conhecemos. Ao invés de serem eliminadas, essas formas de vida talvez tivessem evoluído de maneira a não competir com os organismos familiares a nós.

É possível que os Pandoravirus pertençam a alguma linhagem muito distinta dos três domínios tradicionalmente aceitos para a vida no planeta, constituindo, quem sabe, representantes de um quarto domínio. Talvez estejamos às vésperas de encontrar toda uma nova biosfera, provavelmente muito distinta dos seres vivos que a ciência já descreveu. Parafraseando o bardo William Shakespeare, pode haver mais entre os mares e a Terra do que os biólogos evolutivos e seus microscópios eletrônicos poderiam imaginar.

Referência sugerida
Cleland, C. & Copley, S. D. 2005. The possibility of alternative microbial life on Earth. International Journal of Astrobiology, 4, 165-173.
Nadège Philippe et al. 2013. Pandoraviruses: amoeba viruses with genomes up to 2.5 Mb reaching that of parasitic eukaryotes. Science, 341, 281-286.

Imagens:

domingo, 13 de abril de 2014

Não havia evidências suficientes, Deus!*

Uma vez que uma pessoa se deixa contagiar por uma ideologia ou um cientista por uma hipótese, é difícil não encontrar confirmação em toda parte.
George Johnson, Fogo na mente (1997)
A ferramenta básica para se manipular a realidade é a manipulação das palavras. Se você puder controlar o significado das palavras, você poderá controlar as pessoas que precisam delas.
Philip K. Dick, Como construir um universo que não desmorone em dois dias (1978)
Entre 1988 e 1989, foi publicada uma edição especial do Surfista Prateado, escrita por Stan “The Man” Lee (1922– ) e ilustrada por Jean Giraud Moebius (1938–2012), intitulada Parábola. Nela, Galactus, uma entidade cósmica conhecida como “o Devorador de Mundos”, vem à Terra para destruí-la e se alimentar da sua energia. Para isso, Galactus permite que as pessoas façam o que bem desejarem em seu nome para, assim, encontrarem a salvação – o plano é permitir que a humanidade se aniquile por meios próprios. Nesse ínterim, surge seu ex-arauto, o Surfista Prateado, questionando o direito de Galactus de atacar a Terra com um estratagema tão ardiloso.


Ao final, o vilanesco semideus galáctico parte deixando nosso planeta incólume. O Surfista, alçado à categoria de herói planetário, é recebido na sede das Nações Unidas e fala para o mundo. O diálogo, em uma página tocante, é esse:
Embaixador: Nós fomos visitados por dois seres do espaço. Um, tratado como um deus. O outro, para nossa perpétua vergonha, desprezado e condenado. Mas, finalmente, enxergamos a verdade. O surfista é o verdadeiro salvador das estrelas.
Surfista: Não! Nenhum homem pode ser colocado acima dos demais. A chama divina está em todos... ou em ninguém.
Plateia: Que humildade. A verdade essência da pureza. Só pode ser um santo. Você deve nos liderar! Oriente-nos. Seremos seus discípulos.
Surfista (pensando): Isto é loucura! Eles desejam um líder. Assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas. Por que eles não procuram a verdadeira fé em sim mesmos? Por que buscam outro que lhes mostre o caminho?
Parábola é uma belíssima história em quadrinhos, tanto pela espetacular arte de Moebius quanto pela profundidade das questões levantadas pelo roteiro de Stan Lee. 

Theodore Sturgeon (1918–1985) foi um escritor norte-americano de ficção científica. Ficou muito conhecido pela chamada “Lei de Sturgeon”: “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de tudo o que se escreve é lixo”. Em 1967, publicou um artigo na Cavalier Magazine, em que escreveu (na página 38):
Todo avanço que essa espécie já alcançou é o resultado de alguém, em algum lugar, olhar o mundo, sua vizinhança, seu vizinho, sua caverna ou a si mesmo e fazer a próxima questão. Todo erro mortal que essa espécie cometeu, todo pecado contra si e seu destino, é o resultado de não se fazer a próxima questão ou de não se ouvir aqueles que a fizeram.
Certa vez, quando perguntado a respeito do significado da sua marca registrada pessoal (uma letra Q com uma seta apontando para a direita), Sturgeon respondeu: 
Ela significa Faça a próxima questão, e a seguinte, e a seguinte. É o símbolo de tudo que a humanidade criou e é a razão pela qual as coisas são criadas. O sujeito está sentado na caverna e diz ‘Por que um homem não pode voar?’. Bem, essa é a questão. A resposta pode não ajudá-lo, mas agora a questão foi formulada. Qual é a próxima questão? Como? E assim, através das gerações, as pessoas têm tentado encontrar a resposta para aquela questão. Nós encontramos a resposta e nós voamos. Isso é verdade para qualquer realização humana, seja na tecnologia ou na literatura, na poesia, nos sistemas políticas ou em qualquer outro assunto. É isso. Faça a próxima questão. E a outra depois dela.
Com uma das prosas filosóficas mais elegantes do século XX, Bertrand Russell (1872–1970) foi filósofo, lógico, matemático e escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1950. Defensor do racionalismo e do ceticismo, Russel escreveu, no primeiro parágrafo do seu ensaio O valor do ceticismo, que pode ser encontrado na coletânea Ensaios Céticos (publicada no Brasil em 2010): 
Gostaria de propor para apreciação favorável do leitor uma doutrina que pode, temo, parecer bastante paradoxal e subversiva. A doutrina, nesse caso, é a seguinte: não é desejável acreditar em uma proposição quando não existe nenhum fundamento para supô-la verdadeira. Devo, é claro, admitir que se essa opinião se tornasse comum transformaria completamente nossa vida social e nosso sistema político; uma vez que ambos são no momento irrepreensíveis, esse fato poderia exercer pressão contra eles. Estou, também, ciente (o que é mais grave) de que tenderiam a diminuir os ganhos dos futurólogos, corretores de apostas, bispos, entre outros, que vivem das esperanças irracionais daqueles que nada fizeram para merecer sorte aqui ou em outro mundo.
Como é possível depreender dos exemplos supracitados, que vêm de autores tão diferentes quanto quadrinhistas, filósofos e escritores de ficção-científica, o ceticismo não é uma perspectiva exclusiva das ciências. Ser cético é questionar qualquer conhecimento, fato, opinião ou crença estabelecida como fato. Filosoficamente significa aceitar apenas informações suportadas por evidências. Até mesmo as religiões podem se beneficiar dele, através, por exemplo, de autoanálises periódicas – ou, de preferência, constantes – que levem ao refinamento das premissas que constituem seu conhecimento de fundo. No entanto, essa me parece uma visão de mundo otimista demais, quase ingênua. As religiões, quando tomadas no geral, não fazem um esforço sincero para depurar o que alguns chamam de suas “superstições infundadas”. Adotar o ceticismo religioso significaria, por exemplo, colocar em dúvida princípios religiosos básicos como a imortalidade, a reencarnação ou a evolução espiritual.

Não se quer criticar aqui as religiões ou fazer generalizações sobre elas, até porque doutrinas religiosas existem aos milhares, muitas delas absolutamente diferentes entre si (compare, por exemplo, os fundamentos do budismo com os da cientologia ou do nuwaubinismo). Religiões são poderosas atividades humanas e provavelmente remontam a tempos remotos pré-científicos, muito antes da invenção de qualquer tipo escrita. Para muitos, a fé pode ser uma fonte de conforto para suas vidas – a devoção ao divino, independente de como ele se expressa, funciona como a tábua de salvação. Pode-se até mesmo construir um cenário adaptacionista para explicar o surgimento e desenvolvimento do misticismo: se funcionava como fator organizador dos agrupamentos sociais primitivos, aparecendo por vezes associado às primeiras tentativas do homem de interpretar os fenômenos naturais, essas protorreligiões teriam sido selecionadas, propagando-se na descendência. O evolucionista britânico Richard Dawkins considera as religiões como memes, ou unidades de evolução cultural, que podem se autopropagar – meme, termo criado por Dawkins em seu clássico O gene egoísta (de 1976), análogo ao gene, seria a unidade mínima de informação transmitida entre representantes da nossa espécie, através de conexões cérebro-cérebro ou entre locais onde essa informação possa estar armazenada, como livros, revistas, páginas de internet, músicas ou programas de TV.


O objetivo deste breve ensaio não é questionar a validade das religiões como formas de conhecimento humano, mas sim comentar impressões a respeito da importância de uma postura cética frente a realidade. É isso que faz o escritor e apresentador pelo comediante norte-americano Bill Maher no documentário Religulous, de 2008. Maher abusa do sarcasmo para enfatizar os aspectos cômico-trágicos das crenças religiosas, em especial do fundamentalismo cristão disseminado por toda a América profunda. Ele faz um trabalho semelhante ao de Dawkins no seu documentário The Root of All Evil (uma síntese das idéias presentes em Deus, um Delírio, de 2006). Em tom satírico, nem por isso pouco sério ou raso, Mahler mostra que, se interpretadas literalmente, muitas das religiões não passam de rascunhos mal feitos de histórias de ficção. Algumas passagens do filme são marcantes:
(...) a religião deve morrer para a humanidade sobreviver. Está ficando tarde demais para deixarmos decisões tão importantes serem tomadas por religiosos, por irracionalistas, por aqueles que tomariam as decisões do estado não com uma bússola, mas pelo equivalente à leitura das tripas de uma galinha.
(...) A religião é perigosa porque permite aos seres humanos, que não têm todas as respostas, acreditar que eles as têm.
(...) A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas.
(...) É por isso que pessoas racionais, anti-religiosas, devem perder a timidez, sair do armário e se expressar. E os que se consideram moderadamente religiosos precisam olhar no espelho e reconhecer que o alívio e conforto que a religião lhes traz na verdade vem a um custo muito alto. Se você pertencesse a um partido político ou a um clube social que estivesse ligado a tanta inveja cega, ódio a mulheres, homofobia, violência e desvio de ignorância como é a religião, resignar-se-ia em protesto. Agir de outra forma é ser um conivente, uma esposa da máfia, com os verdadeiros demônios do extremismo que extraem legitimidade dos bilhões de seus companheiros de viagem.
Ao terminar de assistir Religulous, veio a minha mente um conto de Isaac Asimov (1920–1992), um dos mais prolíficos divulgadores das ciências e grande escritor de ficção científica (lembro-me bem que a morte de Asimov, quando eu tinha 12 anos, provocou-me uma inexplicável sensação de vazio. Guardo até hoje a primeira página jornal de cultura com a notícia triste). A história curta é Ao cair da noite (no original, Nightfall), publicada pela primeira vez em 1941 na revista Astounding Science Fiction. Um trecho em especial me chama a atenção sempre que releio o conto:
__ A sua suposta explicação apóia os nossos dogmas mas, ao mesmo tempo, torna-os desnecessários. O senhor transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isso é uma blasfêmia!
__ Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
__ Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
__ Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
__ Eu sei!
“Saber” a respeito de um fenômeno natural sem que esse conhecimento esteja calcado em evidências empíricas observacionais, experimentais (ou mesmo teóricas) é uma postura contrária ao ceticismo. Grande parte das doutrinas religiosas baseia-se em dogmas, fundamentos doutrinários inquestionáveis pretensamente revelados por deuses, anjos ou espíritos iluminados, todos eles manifestações do imponderável. Visto que seriam as palavras divinas em si, apesar de transcritas e interpretadas por homens, e uma vez tidas como certos pela alta hierarquia da igreja, congregação, seita e similares, elas se transformam em ditos sagrados. Como tal, pouco se prestam a indagações sobre seus fundamentos e passam a corresponder à verdade absoluta. Nesse sentido, o desenvolvimento de uma postura cética torna-se pouco provável no âmbito das religiões, pois o questionamento dos dogmas pode levar à dúvida quanto à validade de um ou outro preceito, conseqüentemente erodindo os pilares sustentadores de parte do pensamento religioso.


O ceticismo e o estímulo à reflexão individual deveriam fazer parte de qualquer currículo escolar, desde os primeiros anos da educação formal. Mas como defender alterações curriculares desse tipo quando 89% dos brasileiros gostariam que o criacionismo (cristão) fosse ensinado nas escolas, e 75% prefeririam que a ideia de criação especial fosse apresentada pelos professores no lugar da teoria evolutiva quando eles fossem discutir a respeito da origem e diversificação dos organismos no planeta? Esses são dados de uma pesquisa feita pelo IBOPE em dezembro de 2004 (código OPP992 – pode ser acessada clicando aqui). Dez anos depois, podemos acreditar em um cenário muito diferente desse? Na edição número 126 da revista Scientific American Brasil, publicada em dezembro de 2012, Rogério de Souza e seus colaboradores da Universidade Estadual de Londrina, revelam que: 
(...) ao menos em parte, a aceitação dessas teorias científicas depende da compreensão que os estudantes têm da metodologia científica. E que ela não é completamente compreendida por uma parte significativa deles. Por outro lado, dados preliminares obtidos junto a professores de ciências e biologia do ensino fundamental e médio indicam que 66% deles concordam que o criacionismo também deva ser abordado em sala de aula como uma teoria alternativa ao darwinismo.
A questão é ainda mais ampla e extrapola a frágil dicotomia ciência-religião. Qual seria o objetivo de se estimular a reflexão individual (ou coletiva), o “pensar com a própria cabeça”, se tudo parece já estar escrito, refletido e pensado? É muito mais cômodo transferir o ato de raciocinar para o padre, o pastor, o papa... ou o jornalista, o professor, o cientista, o intelectual, o escritor...

Como professor, as frases dos estudantes mais desanimadoras que ouço são do tipo “Professor, o que eu tenho que saber?” ou “Professor, o que o senhor quer que eu estude?” ou ainda “Professor, como eu devo pensar a respeito desse assunto?”. Essa atitude sugere a negação do ato de pensar, e é extremamente perigosa. Como conta David Shenk, em seu livro O jogo imortal: o que o xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano (na página 233 da edição publicada no Brasil em 2006):
Temos (...) um abismo crescente entre os indivíduos com o pensamento iluminado e cético e os ideólogos fundamentalistas de mentalidade estreita. Estamos também, literalmente, no meio de uma guerra cujas raízes se encontram nessas diferenças. Temos de lutar uma guerra de verdade, com armas de verdade, é claro. Mas também temos de enfrentar esse abismo subjacente a ela. O perigo maior, tanto para nós quanto para as futuras gerações, é o de pararmos de pensar; cabe a nós fazer todo o possível para estimular as mentes afiadas e céticas. 
Parece que é da condição humana ansiar por um führer, um condutor para revelar como agir perante o vazio infinito da existência. Esse guia não precisa, necessariamente, estar personificado: ele se apresenta sob distintas formas, muitas das quais se apoiam abertamente no desestímulo ao livre-pensar. Isso vale para muitos dos formadores de opinião, que por vezes mais reforçam estereótipos do que incitar o espírito crítico do seu público. A democratização da internet, nesse ínterim, tem papel ambíguo (ou paradoxal, dependendo do ponto de vista adotado). Apesar de possibilitarem a veiculação de conteúdo diversificado, por mais obscuro que seja, blogs e redes sociais podem funcionar como ferramentas para a reiteração de informações baseadas em fontes desconhecidas, tendenciosas e até mesmo cheias de interesses sub-reptícios.

Ainda que impressas em uma forma de arte ainda tida como menor ou infantil, as sábias palavras do Surfista Prateado bem se encaixam nesse quadro: “Eles desejam um líder, assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas”.


* “Não havia evidências suficientes, Deus!” foi uma frase proferida por Richard Dawkins na Feira Literária de Paraty (a FLIP), em 2011, quando perguntado pelo entrevistador Silio Boccanera o que ele diria caso encontrasse o criador, caso ele existisse. Dawkins estava parafraseando Bertrand Russell. Parte da entrevista pode ser vista clicando aqui

domingo, 2 de março de 2014

Exploração animal: a ignorância não é uma benção

Como muitas crianças brasileiras nascidas entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, eu e meu irmão crescemos lendo gibis. De todos os tipos: Marvel, DC, Turma da Mônica, Disney, Trapalhões, Recruta Zero ou qualquer outra história em quadrinhos que caísse em nossas mãos. A maioria delas publicada nos saudosos formatinhos da Editora Abril, que comprimiam a arte original, cortavam quadros e recriavam diálogos e personagens. Obviamente adorávamos super-heróis. O Demolidor era um dos nossos favoritos, especialmente nas histórias escritas pelo Frank Miller.

Em 1992, na edição 124 da revista Superaventuras Marvel, uma HQ do personagem, com os desenhos estilizados de John Romita Jr., pareceu-nos completamente deslocada, pois não trazia vilões convencionais e uma profusão de tiros, socos e pontapés. Intitulada Genetrix, a trama discutia, entre outros temas, ganância e exploração animal.

Escrita pela jornalista norte-americana Ann Nocenti, desde os primeiros quadros a postura da história ficava clara: nossa espécie se caracteriza pela ignorância e, por conta dela, é explorada por seus pares (e explora as demais espécies do globo). Fiz uma tradução livre dos balões e recordatórios (clique para ver em tamanho maior)...






Como aqueles que acompanham esse blog sabem, sou biólogo e meu principal foco de interesse em pesquisa é a teoria da evolução, em seus mais diversificados aspectos. É provável que qualquer pessoa interessada nessa área conheça a importância da alimentação para a evolução dos hominídeos, família de animais cuja história iniciou-se no mínimo há 14 milhões de anos, e que inclui quatro gêneros viventes – Pan (chimpanzés e bonobos), Gorilla, Pongo (orangotangos) e Homo (humanos). Nas palavras de Vaclav Smil, autor do livro “Should we eat meat? Evolution and consequences of modern carnivory” (Devemos comer carne? Evolução e consequências da carnivoria moderna), publicado em 2013:
Não há dúvida que a evolução humana esteve conectada à carne de muitas maneiras fundamentais. Nosso trato digestório não é obrigatoriamente de um herbívoro; nossas enzimas evoluíram para [sic] para digerir carne cujo consumo levou a um aumento da cefalização e maior crescimento físico. A caça cooperativa promoveu o desenvolvimento da linguagem e da socialização; a evolução das sociedades do Velho Mundo foi, em certa medida, baseada na domesticação de animais; em sociedades tradicionais, comer carne, mais do que o consumo de qualquer outro gênero alimentício, tem levado à preferências fascinantes (...); e as agriculturas ocidentais são obviamente muito orientadas para a produção de carne.
(...) Matar animais e comer carne têm sido componentes significantes da evolução humana com uma relação sinérgica com vários outros atributos que nos fazem humanos, tais como cérebros maiores, estômagos menores, bipedalismo e linguagem. Cérebros maiores se beneficiaram do consumo de proteínas de alta qualidade, contidas em dietas baseadas em carne; além disso, a caça e a matança de animais grandes, o desmembramento de suas carcaças e o compartilhamento de carne inevitavelmente contribuíram para [sic] a evolução da inteligência humana, em geral, e para o desenvolvimento da linguagem e capacidade de planejamento, cooperação e socialização, em particular.    
Compreender a importância da ingestão de proteína animal para a evolução dos hominídeos é muito diferente de defender coisas como essas:







Essas são fotos retiradas de fazendas industriais da Smithfield Foods, a maior e mais lucrativa produtora de carne de porco do mundo. Em 2006, ela foi responsável pela morte de 26 milhões de animais. Segundo Jeff Tietz, autor do artigo “Boss Hog”, publicado na Rolling Stone, o peso desses porcos abatidos seria o equivalente ao da população das trinta e duas maiores cidades dos Estados Unidos. Em apenas um ano! Ainda nesse mesmo artigo, Tietz levanta uma série de dados assustadores:

- porcos produzem três vezes mais excrementos que a nossa espécie. No total, a Smithfield Foods produz mais de 26 milhões de toneladas de fezes por ano;

- em 2006, o total de vendas da Smithfield Foods foi de 11.4 bilhões de dólares. Caso a companhia tratasse seu lixo fecal como a maioria dos governos civilizados faz, o investimento seria tão alto que ela PERDERIA dinheiro. As lagoas de merda das fazendas industriais da Smithfield Foods – descritas como um contínuo de poluentes semelhante a uma piscina radioativa – cobrem aproximadamente 120.000 metros quadrados de um líquido rosa resultante da mistura de ossos esmagados, carne podre, cartilagens, hormônios, sangue, seringas de antibióticos, fezes, pelos, urina, produtos de limpeza, latas de inseticidas e drogas diversas. É um ambiente propício para a proliferação de salmonella, cryptosporidium e estreptococos (cada grama de merda da Smithfield contém mais de 100 milhões de coliformes fecais);

- Essas lagoas contêm altas quantidades de amônia, sulfeto de hidrogênio, monóxido de carbono, cianeto, fósforo, nitratos e metais pesados. As lagoas são tão venenosas que há dezenas de relatos de empregados da empresa que morreram ao cair em uma delas (ou ao tentarem salvar companheiros que sofreram tamanho infortúnio);

- os porcos da Smithfield vivem em celeiros semelhantes a grandes armazéns, em intermináveis fileiras. São inseminados artificialmente em gaiolas tão pequenas que eles não podem sequer mudar de posição, sem acesso a luz do sol, palha, ar fresco ou terra;

- as temperaturas são altíssimas e o ar no interior dos armazéns é saturado de gases provenientes dos produtos químicos e das fezes dos animais. Dessa forma, os porcos são muito suscetíveis a doenças diversas, parasitas e fungos. A solução encontrada pela Smithfield Foods foi aumentar as dosagens dos antibióticos, vacinas e inseticidas, que mantêm os porcos em um estado zumbi, até o momento em que são abatidos.

Para Joseph Lutter III, CEO da companhia por 31 anos (ela foi vendida para o grupo chinês Shuanghui em setembro de 2013), “Os defensores dos direitos animais querem impor uma sociedade vegetariana nos Estados Unidos”. Ainda segundo ele, a maioria dos vegetarianos é neurótica! Possuidor de uma das 500 maiorias fortunas do mundo (a empresa figura na posição de número 213 em maio de 2013, segundo a revista Fortune), Lutter III parece desconhecer que grande parte da população mundial sofre de algum tipo de ansiedade, neurose ou outras desordens psicossomáticas...

Porcos sofrem na Smithfield Foods, mas a exploração animal não se resumo a eles: aves e bovinos, criados exclusivamente para servirem de comida, também vivem em condições por vezes piores do que as descritas acima. O livro de Jonathan Safran Foer, Comer Animais, resenhado brevemente aqui, faz um apanhado desses cenários.

Apesar de nunca ter sido um carnívoro estrito ou exagerado, desses que salivam apenas em pensar na ida à churrascaria no próximo sábado, por 33 anos comi carne em boa parte das minhas refeições diárias. Na maioria absoluta das vezes, sem nem ao menos refletir a respeito do que estava comendo. Por mais que eu conhecesse as implicações – médicas, evolutivas, econômicas, morais, etc. – foi só há mais ou menos treze meses que suspendi completamente a ingestão de carne. Em janeiro de 2013, um vídeo, apresentado por Steve O, me fez ver como não podemos ceder à ignorância. Se você que está lendo essa postagem tiver 10 minutos, assista-o:


É difícil pensar em um utópico planeta em que não se consuma carne, de qualquer tipo. Enquanto nossa espécie se pautar pela lógica do consumismo extremado e do capitalismo sem rédeas, liberal e exploratório, resta-nos discutir, dentro da perspectiva de uma moralidade pós-darwiniana, alternativas ao consumo desenfreado de proteína animal. A questão mais importante passa a ser a diminuição do consumo desenfreado de carne (que só é possível através da criação intensiva, ou seja, em confinamento, de aves, porcos e vacas).

Com a oferta gigantesca de proteína animal à mão em qualquer supermercado, a maioria se acha bem nutrido porque come carne. Se déssemos mais atenção à variedade de itens alimentares que podemos consumir, a situação seria menos tétrica e mais ambientalmente sustentável, tanto do ponto de vista da exploração animal quanto em termos nutricionais.

Os hominídeos, evolutivamente, tiveram no consumo de carne um fator externo extraordinariamente potente relacionado ao aumento da sua capacidade cerebral. No entanto, há alguns milhares de anos, não comíamos da forma como o fazemos hoje... Precisamos ser educados a conhecer o que comemos, para evitar que essa tradição de coisificação da natureza se perpetue indefinidamente. Para o filósofo australiano Peter Singer:
Precisamos que as pessoas sejam informadas sobre essas questões e de um sistema político que responda às preocupações públicas sobre os animais. Questionários com a opinião pública mostram uma forte oposição contra a crueldade com os animais, mas, no geral, as pessoas não são bem informadas sobre o que acontece a eles em lugares escondidos, em fazendas, laboratórios ou matadouros. Precisamos de informação (...)
Em uma sequência central do filme Matrix, Cypher, um dos passageiros da nave Nabucodonosor que havia sido extraído do mundo on-line por Morpheus, diz que “a ignorância é uma benção”. Fora da matriz, tornamo-nos impotentes quando optamos pela ignorância.

Referências:
Foer, Jonathan Safran. 2011. Comer Animais. Editora Rocco, 320 páginas.
Singer, P. 2012. Uma filosofia para consertar o mundo. Filosofia, Ciência e Vida, 69, abril.
http://www.rollingstone.com/culture/news/boss-hog-the-dark-side-of-americas-top-pork-producer-20061214

sábado, 9 de novembro de 2013

Breves resenhas: Comer Animais, de Jonathan Safran Foer (2011)

O que podemos entender como uma moralidade pós-Darwiniana? Para alguns, ela trata também do direito de espécies não-humanas (ou mesmo pós-humanas, como discutido aqui).

Dentro dessa perspectiva, é premente discutir alternativas ao consumo desenfreado de proteína animal - além das questões sócio-culturais que levam muitos a considerar que está bem nutrido apenas aqueles que comem grandes quantidades de carne.

Em seu primeiro livro de não ficção, Jonathan Safran Foer, autor de Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (adaptado para as telas em 2011), retrata, com detalhes muitas vezes horripilantes, a agricultura agroindustrial nos Estados Unidos, mostrando a realidade subjacente à criação intensiva de porcos, bois, aves e a pesca em larga escala. Diante do quadro descrito por Foer em Comer Animais, parece-me desonesto simplesmente optar pela ignorância.

Selecionei alguns trechos da obra, que reproduzo abaixo:

p. 37
A internet está abarrotada de vídeos de pesca. Rock de segunda como trilha sonora para homens se comportando como se acabassem de salvar a vida de alguém após terem trazido a bordo um exausto marlim ou um atum-azul. E ainda existem os subtipos: mulheres de biquíni com bicheiros [um tipo de picareta usada para puxar peixes maiores quando eles ficam ao alcance do pescador], crianças pequenas com bicheiros, usuários de primeira viagem. Olhando para além do ritualismo bizarro, minha mente se volta a toda hora para os peixes nesses vídeos, para o momento em que o bicheiro está entre a mão do pescador e os olhos da criatura... 
Nenhum leitor deste livro toleraria alguém balançando uma picareta na cara de um cachorro. Nada seria tão óbvio ou menos carente de explicação. Seria essa preocupação moralmente inaplicável aos peixes, ou nós é que somos tolos por ter essa preocupação inquestionável com os cachorros? Será que o sofrimento de uma morte prolongada é cruel o suficiente para ser infligido a qualquer animal capaz de experienciá-lo ou apenas a alguns animais?

Será que a familiaridade com os animais que passamos a conhecer como companheiros poderia nos servir de guia enquanto pensamos naqueles que comemos? Quão distantes são os peixes (ou vacas, porcos e galinhas) de nós no esquema da vida? Será um abismo ou uma árvore aquilo que define a distância? Será que a proximidade e a distância chegam a ser relevantes? Se algum dia encontrássemos uma forma de vida mais forte e mais inteligente do que a nossa, e ela nos considerasse como nós consideramos os peixes, qual seria nosso argumento contra virar comida? 
Nós nos importamos mais com o que está próximo e esquecemos com uma facilidade incrível tudo o mais.
p. 40
Em termos globais, aproximadamente 450 bilhões de animais terrestres são criados em escala industrial todos os anos. 
p. 51
De acordo com a ONU, o setor pecuarista é responsável por 18% das emissões de gás estufa, cerca de 40% a mais do que todo o setor de transportes... os onívoros contribuem com um volume de gases de efeito estufa sete vezes maior do que os veganos. 
p. 176
Todo esse imenso Golias que é a indústria de alimentos é, em última instância, impulsionado e determinado pelas escolhas que fazemos enquanto o garçom aguarda impaciente nosso pedido ou na qualidade prática ou extravagante daquilo que colocamos em nossos carrinhos no supermercado ou na sacola da feira. 
p. 177
As mais bem-sucedidas batalhas legais contra essas granjas industriais nos Estados Unidos focalizaram seu incrível potencial poluente. (Quando se fala nos danos ecológicos causados pela criação animal, essa é uma parte grande daquilo a que se referem). O problema é bastante simples: quantidades colossais de merda. Tanta merda e tão mal manejada que vaza para rios, lagos e oceanos, matando a vida selvagem e poluindo o ar, a água e a terra, de modos devastadores à saúde humana. 
p. 178-180
(...) animais de criações industriais nos Estados Unidos produzem 130 vezes mais excrementos do que a população humana – mais ou menos quarenta mil quilos de merda por segundo. (...) para compreender os efeitos da liberação dessa quantidade de merda no meio ambiente, precisamos saber um pouco do que há nela: (...) amônia, metano, sulfeto de hidrogênio, monóxido de carbono, cianeto, fósforo, nitratos e metais pesados. Junte-se a isso o fato de que os dejetos criam mais de cem patógenos microbianos que podem deixar os humanos doentes, incluindo salmonela, cryptosporidium, estreptococos e giárdia. (...) a merda se tornou um problema apenas quando nós (...) decidimos que queríamos comer mais carne do que qualquer outra cultura na história e pagar por isso um preço historicamente baixo. 
p. 183
Nossa atual forma de comer (...) recompensa as piores práticas concebíveis. 
p. 185-186
Problemas ambientais podem ser rastreados por médicos a agências governamentais cuja tarefa é cuidar de seres humanos. Mas como descobrimos o sofrimento de animais em criações industriais, que necessariamente não deixa rastros? 
Investigações secretas, realizadas por dedicadas organizações sem fins lucrativos, estão entra as únicas janelas significativas que o público tem para o imperfeito funcionamento cotidiano de criações e abatedouros industriais. Numa instalação para criação de porcos, na Carolina do Norte, filmes feitos por investigadores disfarçados mostraram alguns trabalhadores administrando surras diárias, dando pauladas em porcas grávidas com uma chave inglesa e cravando uma estaca de ferro trinta centímetros dentro do reto e da vagina de porcas. Nada disso tem a ver com melhor o gosto da carne ou em preparar os porcos para o abate, são mera perversão. Em outras dependências da granja, também gravadas, empregados serravam as pernas dos porcos e lhes tiravam a pele enquanto eles ainda estavam conscientes. Em outras instalações, operadas por um dos maiores produtores de carne de porco dos Estados Unidos, funcionários foram filmados atirando os porcos para cima, batendo neles e chutando-os; golpeando-os com força contra o chão de concreto e dando-lhes pauladas com bastões e martelos de metal. Em outra granja, uma investigação que durou um ano inteiro descobriu o abuso sistemático contra dezenas de milhares de porcos. A investigação documentou funcionários apagando cigarros na barriga dos animais, batendo neles com ancinhos e pás, estrangulando-os e jogando-os em poços de esterco para que se afogassem. Funcionários também enfiavam aguilhões elétricos nas orelhas, bocas, vaginas e ânus dos porcos. A investigação concluiu que os gerentes toleravam esses abusos, mas as autoridades se recusaram a processá-los. A ausência de processos é norma, não exceção. Não estamos num período de “negligência” – simplesmente nunca houve uma época em que as companhias pudessem esperar sérias ações punitivas ao serem surpreendidas maltratando animais. 
p. 197
Abrir mão do sabor do sushi ou do frango grelhado é uma perda que se estende para além de uma experiência gastronômica agradável. Mudar o que comemos e deixar os sabores sumirem gradualmente da nossa memória criam uma espécie de perda cultural, um esquecimento. Mas talvez valha a pena aceitar esse tipo de esquecimento e até mesmo cultivá-lo (o esquecimento também pode ser cultivado). Para me lembrar dos animais e da minha preocupação com seu bem-estar, eu talvez precise perder certos sabores e encontrar outros apoios para as memórias que eles um dia me ajudaram a carregar.
Referência
Foer, Jonathan Safran. 2011. Comer Animais. Editora Rocco, 320 páginas.

Crédito da Imagem: www.rollingstone.com

sábado, 25 de maio de 2013

Sobre especismo, inteligências artificiais e a posição do Homo sapiens

Cientificamente, avançamos muito na compreensão de como a senciência se distribui na árvore da vida. Entretanto, nossos princípios culturais e jurídicos são especistas por definição, e não levam em conta, ou contrariam frontalmente, as outras espécies do planeta. Visto que podemos estar às vésperas da singularidade tecnológica e da emergência de uma inteligência artificial sobre-humana, é premente a discussão de uma moralidade pós-Darwiniana que trate do direito de diferentes espécies, sejam elas não-humanas, humanas ou pós-humanas.

Senciência é a capacidade de sofrer, sentir prazer ou felicidade. Hoje, possuímos um amplo conhecimento sobre a distribuição da senciência na árvore da vida. Evolutivamente, as diferenças entre a capacidade cerebral e cognitiva do Homo sapiens e das demais espécies de vertebrados, em especial dos Mammalia, são de grau, não de tipo.

Desde a publicação do “On the origin of species”, de Charles Darwin (1859), sabemos que a evolução é um processo contínuo de descendência com modificação a partir de um ancestral comum. Apesar da existência de descontinuidades na história evolutiva – como explica a teoria do equilíbrio pontuado de Niles Eldredge e Stephen Jay Gould (de 1972), segundo a qual existem períodos curtos em termos geológicos de rápida diversificação biológica pontuados por longos períodos de estase em que eventos de especiação são menos frequentes –, há muitas evidências que suportam o compartilhamento de atributos entre todas as formas de vida no nosso planeta, desde aquelas mais mais simples, como bactérias e amebas, até as mais derivadas, com redes neuronais complexas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Ensinar a pensar: o desafio da alfabetização científica


Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre é impassível e duro. Quando uma árvore nasce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece, nunca vencerá.
do filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovski

Em 1831, então com 20 anos, o matemático francês Évariste Galois, publicou um artigo no Gazzete des Écoles intitulado "Sobre o ensino de ciências, os professores, os trabalhos, os examinadores". Galois, que morreria precocemente aos 21 anos, foi um dos pioneiros na teoria de grupos, fundamental para a compreensão do conceito de simetria.

O texto de Galois, segundo o astrofísico e matemático israelense (nascido na Romênia) Mario Livio, foi "um manifesto impressionante exigindo uma reforma completa no ensino das ciências" (Livio, 2008, p. 152). Ele seleciona dois trechos do artigo, que reproduzo aqui. Apesar de falarem da França do século XIX, são absolutamente atuais e válidos também para a realidade brasileira:

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Oceanos inteligentes e flores extraterrestres

No clássico da ficção científica Solaris, publicado em 1961, o escritor polonês Stanislaw Lem (1921-2006) discute algumas das questões mais profundas já levantadas pela nossa espécie em seus devaneios e investigações filosófico/científicas: O que é vida? Como identificar o que é vivo em comparação ao que não é? Por que parte das coisas que existem são vivas? Por que as coisas vivas são encontradas em uma grande diversidade de formas? Por que alguns seres vivos têm consciência e de que maneiras ela pode se manifestar? Toda vida no cosmo depende de informação codificada em moléculas de DNA ou de processos baseados na bioquímica do carbono? Como encontrar uma definição de vida que se aplica não somente ao que conhecemos? Reconheceríamos algum tipo de vida extraterrestre?

Lem não responde a praticamente nenhum desses questionamentos (e nem é essa a intenção do seu romance). Solaris trata do contato humano com formas de vida alienígenas e se poderíamos, uma vez encontrado um organismo extraterrestre, transcender o antropomorfismo e o antropocentrismo inerentes à nossa cognição na tentativa de compreendê-lo. A saga do psicólogo Kris Kelvin e de seus companheiros solaristas Sartorius e Snow demonstra a dificuldade que nossa espécie tem de se despir dos seus preconceitos e enxergar o lado do outro, alheio à nosso referencial e concepções prévias. Para Istvan Csicsery-Ronay Jr., professor do Departamento de Inglês da DePauw University (EUA), a ciência reflete as questões que os cientistas são impelidos a fazer sobre a natureza. O antropocentrismo é fundamento para a construção de hipóteses e, consequentemente, acaba por pré-selecionar os dados a serem estudados. 

domingo, 25 de novembro de 2012

A perigosa ideia de Darwin - parte 1



A natureza mostra-nos apenas a cauda do leão. Mas eu não tenho dúvida de que o leão lá está, mesmo que ele não possa se revelar por inteiro de uma vez. Nós o vemos apenas da maneira como um piolho que mora nele o veria
Albert Einstein (1914)
Na última semana, uma das minhas alunas finalmente entregou seu trabalho de conclusão de curso (que é um dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Ciências Biológicas na universidade em que leciono). O trabalho traz uma análise histórica sobre a seleção natural e seu papel na teoria evolutiva, desde Charles Darwin (1809-1882) e Alfred R. Wallace (1823-1913) até a contemporaneidade, detendo-se nas discussões contemporâneas cada vez mais acirradas sobre alguns dos argumentos fundamentais da teoria evolutiva.

É certo que a teoria da evolução não surge com Darwin e Wallace em meados do século XIX. Ideias sobre o transformacionismo no mundo orgânico já apareciam na literatura ao menos desde o século anterior, com autores como Pierre Louis Maupertuis (1698-1759), Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788) e Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829).

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Representando a evolução: a árvore da vida

Como é de conhecimento comum, a mais tradicional representação da teoria da evolução é uma fila indiana de hominídeos, liderada pelo Homo sapiens, tendo como maior retardatário um animal bípede de feições simiescas, o Australopithecus, ou mesmo um pequeno chimpanzé. Qualquer um já se deparou com tal ilustração, seja em peças publicitárias, charges humorísticas, outdoors, camisetas, obras religiosas que pretendem discutir conceitos científicos, e mesmo em livros e revistas de divulgação científica. Para a cultura pop, essa figura, chamada de iconografia canônica por Stephen Jay Gould no seu livro “Vida Maravilhosa”, é sinônimo de evolução darwiniana, e é igualmente equalizada à ideia de progresso. Apesar de onipresente, a iconografia carrega incorreções e ranços que empobrecem a concepção popular sobre as ciências da vida no geral, e sobre a teoria da evolução em particular.

Na interpretação corrente da iconografia da evolução, o primeiro indivíduo de uma série é tido como o mais primitivo, a partir do qual surge outro, "mais evoluído”, em um contínuo linear de transformações e substituições que culminaria no homem como ápice do processo evolutivo (algo como a obra prima da natureza).

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Grupos monofiléticos, Bombons Paraenses e as belezas do Norte

Manaus é quente, muito quente. As temperaturas chegam sem alarde aos trinta e oito, trinta e nove graus, e a sensação térmica ainda é aumentada pela umidade superior a 90% em boa parte do ano. Entretanto, o que torna a capital amazonense um quase literal caldeirão é menos o seu clima e mais a notável diversidade humana que lá encontramos.

Estive na cidade nas duas últimas semanas de agosto, ministrando um curso de Sistemática Filogenética para a pós-graduação em Entomologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Um dos centros de excelência em pesquisa brasileiro, o INPA reúne professores e alunos de todas as regiões do país. Na minha sala de aula havia desde um mineiro de Pratápolis (!) a uma gaúcha obrigada a traduzir descrições em alemão arcaico de espécies de louva-deus, passando por um paraense ex-vocalista de uma banda cover do Kiss (!) e uma capixaba especialista em insetos aquáticos que descobriu seu talento como coiffeur picotando o cabelo dos colegas pós-graduandos que queriam economizar no cabeleireiro. Em entomologia, todos os caminhos parecem mesmo levar à Manaus...