segunda-feira, 16 de junho de 2008

Ensaio: Manipulando genes

Esse ensaio saiu na Gazeta de Ribeirão do dia 01 de agosto de 2004.

Manipulando genes
Charles Morphy Dias dos Santos


Quimeras, mantícoras, basiliscos, centauros. A literatura está repleta de seres fantásticos. Tecnicamente chamados de híbridos, são como uma colcha costurada a partir de retalhos de organismos diferentes, fundindo animais tão díspares quanto uma serpente e um escorpião. O medo e o fascínio provocados por essas extravagâncias zoológicas remontam à antiguidade grega, chegam ao apogeu nos bestiários medievais, e encontram eco nos nossos dias. Os outrora monstros imaginários, entretanto, são hoje organismos modificados em laboratórios de biologia molecular.
A célula é a unidade fundamental dos seres vivos (com exceção dos vírus, que são acelulares). Ela é basicamente um envoltório contendo uma solução aquosa e o material genético, o DNA. Torcidas em hélice, as duas fitas do DNA são compostas por pequenas unidades de informação, os genes, determinantes das características de um indivíduo (o ambiente também é essencial nessa caracterização. Se Einstein tivesse nascido entre beduínos, sem acesso à escola, dificilmente teria imaginado a teoria de relatividade).
Organismos geneticamente modificados, ou transgênicos, contêm genes de outras espécies incorporados ao seu DNA. Essa manipulação é decidida nas bancadas dos laboratórios, e, se aplicada à indústria alimentícia, pode criar híbridos com propriedades adicionais, tais como arroz com altas concentrações de betacaroteno (abundante na cenoura) e grãos de soja resistentes ao ataque de insetos.
Da forma como são mostrados ao público, esses alimentos seriam de grande valia. Por que não liberar a comercialização de farinha de trigo modificado, com alto teor nutricional? As discussões a respeito não giram apenas em torno de demagógicos jogos de poder? Infelizmente, por trás das camadas de tinta publicitária, o cenário é mais dramático.
A atual diversidade biológica resulta de quase quatro bilhões de anos de evolução, durante os quais ocorreram muitos processos de transferência de genes. A manipulação genética dos transgênicos, porém, ignora o impacto ambiental a longo prazo da criação de híbridos. Defensores dos alimentos geneticamente modificados justificam sua existência apresentando testes que perfazem as últimas décadas, um intervalo irrisório se comparado à escala de tempo geológica.
Acabar com a fome também não é um objetivo válido, apesar de louvável. Sabe-se que a produção atual de alimentos é suficiente para abastecer todo o planeta. Falta distribuí-los, o que esbarra em impedimentos estratégicos e interesses de grupos empresariais que lucram com a escassez. Não obstante, transgênicos são patenteados como qualquer produto da indústria. O seu monopólio é fonte certa de altas somas para poucos.
Longe de se esgotar em poucas linhas, a questão dos híbridos não-naturais é de suma importância no panorama político-científico mundial. Ser favorável aos transgênicos, diferente do que seus partidários apregoam, não é defender a liberdade científica. As conseqüências da inserção de organismos geneticamente modificados no ambiente natural são desconhecidas e talvez catastróficas, bem mais assustadoras do que o bater de asas de um grifo.

4 comentários:

Patricia Kiss disse...

Muito bons seus ensaios, Dr. Charles Morphy.

Luanda disse...

Charles, estou gostando bastante dos ensaios escritos por vc no seu blog. O ensaio: Manipulando genes é bem pertinente ao que está sendo discutido atualmente. O que muitos esquecem é da poluíção genética, causada pela produção de organismos trangênicos que são liberados no ambiente. Muitos discutem que a poluíção genética é mais maléfica do que a poluíção química porque o DNA é auto-replicável. Parabéns e vamos discutir mais assuntos...

Luis disse...

Charles,
gostaría de pedir gentilmente a licença para comentar.

É interessante criticar e argurmentar de um lado, a fim de formar uma visão crítica na população. Muito bom.
Só acho que você esqueceu de ponderar sobre a incompatibilidade entre as espécies cultivadas em determinadas regiões e as plantas nativas ao redor; sobre a distância de dispersão dos grãos de pólen, que se confere muito curta para muitas espécies; sobre toda a gama de análises, tanto ambientais, quanto as rigorosíssimas análises alimentares, feitas previamente à liberação de uma cultivar transgênica alimentícia ao consumo.
Mas concordo que análises rígidas e competentes precisam ser feitas para as plantas transgênicas alimentícias (este é outro ponto que gostaría de comentar, a definição de planta transgênica é muito ampla, abrangendo plantas modelo para estudos mecanisticos básicos, plantas para produção de fármaco, etc.)
E, sim, infelizmente interesses políticos e individuais estão por trás, pois afinal, ambos, a economia brasileira é relevantemente agrária e o Brasil é campeão em corrupção seguida de impunidade. Mas gostaría de ressaltar a importância da abertura de valiosas possibilidades provenientes da tecnologia do DNA recombinante.
Pois não fazer uso seria como mandarmos fechar a Tramontina devido ao alto indice de morte por esfaqueamento.
;)

Me desculpe por tomar a liberdade de comentar, e pelo comentário extenso. Mas espero que tenha aguçado pelo menos um pouquinho da razão.

Abraços
Luís

Charles Morphy D. Santos disse...

Olá, Luís!
Agradeço muito o comentário. É sempre bom ouvirmos uma análise ponderada, de ambos os lados - especialmente em temas que demandam discussão séria e pormenorizada, não podemos simplesmente nos deixar levar por paixões desmesuradas.
Esse texto foi publicado em um jornal há algum tempo e reproduzido aqui. Infelizmente, não havia muito espaço disponível e preferi dar uma visão geral do tema. A vantagem de postá-lo no blog é justamente a de vê-lo complementado pelos comentários dos potenciais interessados no tema!
Abraço e volte sempre!