No clássico da ficção científica Solaris, publicado em 1961, o escritor polonês Stanislaw Lem (1921-2006) discute algumas das questões mais profundas já levantadas pela nossa espécie em seus devaneios e investigações filosófico/científicas: O que é vida? Como identificar o que é vivo em comparação ao que não é? Por que parte das coisas que existem são vivas? Por que as coisas vivas são encontradas em uma grande diversidade de formas? Por que alguns seres vivos têm consciência e de que maneiras ela pode se manifestar? Toda vida no cosmo depende de informação codificada em moléculas de DNA ou de processos baseados na bioquímica do carbono? Como encontrar uma definição de vida que se aplica não somente ao que conhecemos? Reconheceríamos algum tipo de vida extraterrestre?
Lem não responde a praticamente nenhum desses questionamentos (e nem é essa a intenção do seu romance). Solaris trata do contato humano com formas de vida alienígenas e se poderíamos, uma vez encontrado um organismo extraterrestre, transcender o antropomorfismo e o antropocentrismo inerentes à nossa cognição na tentativa de compreendê-lo. A saga do psicólogo Kris Kelvin e de seus companheiros solaristas Sartorius e Snow demonstra a dificuldade que nossa espécie tem de se despir dos seus preconceitos e enxergar o lado do outro, alheio à nosso referencial e concepções prévias. Para Istvan Csicsery-Ronay Jr., professor do Departamento de Inglês da DePauw University (EUA), a ciência reflete as questões que os cientistas são impelidos a fazer sobre a natureza. O antropocentrismo é fundamento para a construção de hipóteses e, consequentemente, acaba por pré-selecionar os dados a serem estudados.
É com base nesse antropocentrismo – ou mais precisamente em um “terracentrismo”, considerando o problema em uma perspectiva cósmica – que buscamos uma definição mais precisa de vida. Os requisitos para ela são difíceis de ser alcançados: universalidade, para abranger todas as formas possíveis de vida e não apenas aquela baseada em carbono, DNA e proteínas; coerência com o conhecimento atual sobre os sistemas vivos; e especificidade, para diferenciar o que é vivo do que não é.
A partir das propriedades dos sistemas orgânicos conhecidos (organização complexa e adaptativa, singularidade química, individualidade e variabilidade, presença de um programa genético, natureza histórica), imaginamos que todos os seres vivos:
- devem ser capazes de se reproduzir;
- herdam características de seus ancestrais por um processo de transferência de informação, que pode ser genética ou não (através dos chamados caracteres epigenéticos, tais como os relacionados à evolução cultural);
- apresentam variação em virtude de mutações aleatórias das suas moléculas armazenadoras de informação;
- têm as chances de deixar descendentes determinadas pelo sucesso da combinação de propriedades (genótipo / fenótipo) nas circunstâncias ambientais nas quais vivem.
Segundo esse cenário, uma forma de vida deve possuir algum tipo de metabolismo (sem o qual o sistema regrediria para um estado de homeostase em que modificações posteriores não seriam possíveis), material genético, algum tipo de estrutura celular e a capacidade de evoluir. A presença desses atributos é suficiente ou mesmo necessária para uma definição universal do conceito biológico de vida?
Diz Stanislaw Lem, em Solaris:
Baseando-se em análises efetuadas, admitiram que o oceano era uma formação orgânica (naquele tempo ninguém ainda havia ousado declará-lo vivo). Mas, enquanto os biólogos o consideravam uma formação primitiva - uma espécie de todo gigantesco, uma célula fluida, única e monstruosa (que eles chamavam "formação pré-biológica"), que envolvia o globo numa camada coloidal que podia atingir, em certos lugares, uma espessura de algumas milhas -, os astrônomos e físicos afirmavam que ele devia ser uma estrutura organizada, extraordinariamente evoluída.(...) o oceano era o resultado de um desenvolvimento dialético. Partindo de sua forma primária de pré-oceano, solução de corpos químicos de reação lenta, e pela força das circunstâncias (as mudanças de órbita que ameaçavam sua existência), ele chegara, com um único salto, ao estado de "oceano homeostático", sem passar por todos os graus da evolução terrestre, evitando as fases unicelular e pluricelular, a evolução vegetal e animal, a constituição de um sistema nervoso e cerebral. Dito de outra forma, ao contrário dos organismos terrestres, ele não se havia adaptado ao seu meio em algumas centenas de milhões de anos, para dar nascimento, finalmente, aos primeiros representantes de uma espécie dotada de raciocínio, mas havia dominado aquele meio de imediato. (Lem, 1961, p. 28-29)
Seríamos capazes de reconhecer um oceano inteligente, sem estrutura celular, sem material genético ou metabolismo como uma forma de vida?
Como discutido anteriormente nesse blog, a vida extraterrestre pode não guardar qualquer semelhança com o que atualmente consideramos os atributos essenciais dos seres vivos. É possível que os organismos em outros planetas sejam tão estranhos que talvez não consigamos reconhecê-los caso mantivermos nossas expectativas rigidamente em padrões terrestres.
No entanto, somos todos Homo sapiens e, obviamente, incapazes de nos colocarmos em uma perspectiva que não a humana. Essa é a abordagem adotada pela comunidade científica astrobiológica: procurar, no cosmo, pelo tipo de vida que conhecemos e que podemos conceber, com possíveis adaptações específicas diferentes ambientes.
Em Encontro com Rama, publicado em 1973, Arthur C. Clarke (1917-2008) descreve o primeiro contato humano com uma inteligência alienígena. Em certo trecho do livro, um dos personagens encontra algo que poderia (ou não) ser um organismo extraterrestre. Ele adota um procedimento não muito distante do que preconizados pelo nosso atual estado da pesquisa astrobiológica:
Até agora, todos esses padrões tinham sido puramente teóricos. Ele seria o primeiro homem a testá-los na prática.– Não corra enquanto não tiver certeza de que ele é hostil – respondeu o Controle Central.(...) Lentamente, Jimmy ergueu as mãos abertas com as palmas para a frente. Havia duzentos anos que se discutia sobre esse gesto: qualquer criatura, em qualquer parte do universo, o interpretaria como “Está vendo? Não tenho armas"? Mas ninguém tinha algo melhor a sugerir. (Clarke, 1973, p. 122)
Não temos nada melhor a sugerir! Isso significa que, se somos capazes de identificar vida em outros planetas, ela deve estar dentro dos limites humanos que definem como é um ser vivo e a quê ele se assemelha.
O que diríamos se encontrássemos um planeta tal qual Solaris, com seu inclassificável oceano? É certo que coisas completamente distintas do que consideramos a priori como vivas possam de fato existir. Dado um universo visível com um diâmetro aproximado de 92 bilhões de anos-luz (cerca de 920 sextilhões de quilômetros), não parece nem um pouco improvável a existência de formas de vida inimagináveis para a nossa espécie. Retomando a pergunta feita na postagem anterior supracitada, se existirem tais organismos, como conseguiremos dizer que são vivos, uma vez que não se encaixam na nossa definição pré-estabelecida?
O que devíamos ter levado em conta e não o fizemos foi a possibilidade de uma sobrevivência não biológica. (...) Essa façanha está ainda um pouco além das nossas capacidades, mas não apresenta nenhum problema teórico. Sabemos que os circuitos em estado sólido, ao contrário da matéria viva, podem sem nenhuma perda, guardar informações durante períodos indefinidos de tempo. (Clarke, 1973, p. 158)
A perspectiva astrobiológica atual demanda que extrapolemos nossa Biologia – e as suas condições de existência – para o universo como um todo. Astrobiologia funde os termos gregos astron (estrela, constelação), bios (vida) e logia (estudo de). A despeito da sua pretensão cósmica, plenamente justificável, a astrobiologia sempre será balizada pelos limites do conhecimento humano. Não é objetivo desse tipo de pesquisa dizer como aparece a vida em qualquer parte do cosmo. À nossa espécie será perpetuamente vetada uma definição universal de vida.
Nós voamos através do cosmo preparados para tudo, isto é, a solidão, a luta, a fadiga e a morte. O pudor nos impede de proclamar isto, mas, em certos instantes, julgamo-nos admiráveis. No entanto, olhado com calma, nosso entusiasmo não passa de blefe. Não queremos conquistar o cosmo, queremos apenas levar a Terra às fronteiras dele. Tal planeta será árido como o Saara, outro tão glacial como nossas regiões polares, outro tão luxuriante como a Amazônia. Somos humanitários e cavalheirescos, não queremos escravizar outras raças, queremos apenas transmitir-lhes nossos valores e, em troca, nos apoderarmos de seu patrimônio. Consideramo-nos os Cavalheiros do Santo Contato. É outra mentira. Só nos interessa o homem. Não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos. (Lem, 1961, p. 98)
A ciência não é arrogante a ponto de considerar que chegaremos de fato a responder quais são as condições para a vida em todo o universo. O que precisamos é ter a mente aberta para a possibilidade, nem um pouco remota, de nos deparamos com padrões completamente alheios à nossa compreensão.
Só quando chegou a poucos metros do objeto de sua curiosidade pôde ter certeza de que a vida, tal como a conhecia, se havia introduzido no mundo estéril e asséptico de Rama. Porque ali, em solitário esplendor na orla do continente meridional, havia desabrochado uma flor. (...) saía uma haste verde, mais ou menos da grossura de um dedo mínimo de homem, que trepava enroscando-se nos arames da latada. A um metro do solo, rebentava numa erupção de folhas azuladas, mais parecidas com penas do que com a folhagem de qualquer planta conhecida por Jimmy. A haste terminava, ao nível do olho, por aquilo que, a princípio, ele tomara por uma flor só. Agora via, sem nenhuma surpresa em absoluto, que eram, em realidade, três flores compactamente unidas.As pétalas eram tubos de cor viva, com uns cinco centímetros de comprimento; havia pelo menos cinquenta em cada flor, e rebrilhavam com azuis, violetas e verdes tão metálicos que mais pareciam asas de borboleta do que uma coisa pertencente ao reino vegetal. Jimmy não sabia praticamente nada de Botânica, mas intrigava-o a ausência de quaisquer estruturas que se assemelhassem a pétalas ou estames. A semelhança com as flores terrestres seria pura coincidência? Talvez houvesse mais afinidade com um pólipo de coral; fosse como fosse, parecia implicar a existência de pequenos seres voadores que serviriam ou como agentes fertilizantes – ou de alimento. Na verdade, isso não tinha importância. Qualquer que fosse a definição científica, para Jimmy era uma flor. (Clarke, 1973, p. 126-127)
A busca por uma definição abrangente de vida precisa ao menos considerar uma visão menos antropocêntrica do universo. Para alguns, onde não há homens, não pode haver motivos acessíveis ao homem. Em outras palavras: seríamos a medida de todas as coisas (por mais que uma flor extraterrestre se distancie de uma flor da Terra, ela será sempre uma flor). Será mesmo?
Ignoramus et ignorabimus. Continuaremos a ignorar como nosso planeta empalidece quando comparado à vastidão do cosmos? A busca por vida extraterrestre, quando feita nos moldes interdisciplinares da astrobiologia, responde negativamente a essa questão. Apesar do homem ser capaz de apreender apenas umas poucas coisas de cada vez, é dever da ciência vislumbrar além do que acontece na nossa frente, aqui e agora. Como diz a Segunda Lei de Clarke, o único caminho para desvendar os limites do possível é aventurar-se um pouco além dele, adentrando o domínio do (aparentemente) impossível.
Referências sugeridas
Clarke, A.C. 1973. Encontro com Rama. Editora Nova Fronteira,
Csicsery-Ronay Jr, I. 1985. The Book is the Alien: On Certain and Uncertain Readings of Lem's Solaris. Science-Fiction Studies, 35 (12), edição de março (disponível na íntegra em http://dpuadweb.depauw.edu/icronay_web/solaris.htm).
Lem, S. 1961 (2003). Solaris. Editora Relume Dumará.
Figuras:
Assymetriad, por Adam Gut (http://flickriver.com/photos/adamgut/3816920567/)
Rendezvous with Rama, por Jim Burns (http://lcart3.narod.ru/image/fantasy/jim_burns/1.htm)
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