domingo, 25 de maio de 2008

Ensaio: Deuses e novos sacerdotes

Esse pequeno ensaio é antigo, mas parte das opiniões ainda valem (e a discussão continuará procedente ainda por muito tempo). Saiu na Gazeta de Ribeirão do dia 04 de julho de 2004.
Alguns livros interessantes que tratam da contraposição entre pensamento científico e atividade religiosa: Pilares do Tempo, do paleontólogo e evolucionista S.J. Gould (cuja edição original é de 1999) - talvez um pouco conservador e verborrágico, ainda assim bem argumentado, faz a exposição original da idéia de dois magistérios não sobrepostos; Deus, um delírio, do ultra-darwinista (não em um sentido pejorativo, mas devido à sua insistência reducionista na primazia do gene como agente da evolução) Richard Dawkins (edição original de 2006) - trazendo uma defesa apaixonada e radical da ciência contra o pensamento dogmático religioso e suas conseqüências para as sociedades humanas; e Quebrando o encanto (edição original de 2006), do filósofo evolucionista Daniel Dennett - tentando demonstrar que a religião é um fenômeno natural, produto da atividade humana como a arte e a ciência.

Deuses e novos sacerdotes

Charles Morphy D. dos Santos

Retas perfeitamente paralelas e distintas, diz um conhecido postulado matemático, jamais se cruzam. Por mais que se aproximem, coincidirão apenas no infinito inatingível. Da mesma forma, visões de mundo científicas e metafísicas não se contrapõem e não devem ser postas em confronto direto.

Religiões tratam da moral do homem, da ética e da sua condição na existência. Elas são importantes para um sem número de pessoas que buscam na teologia algum conforto para suas vidas. Cientistas buscam conhecer o mundo através da razão, e só aceitam hipóteses falseáveis, ou seja, aquelas que tenham a possibilidade de serem testadas, segundo critérios delimitados e passíveis de repetição.

As visões de mundo desses dois magistérios são diametralmente opostas, apesar das discordâncias de ambos os lados. Elas tratam de aspectos exclusivos à sua prática. O conceito de alma, por exemplo, está fora do escopo da ciência, bem como nossas motivações existenciais ou idéias sobre o pós-morte. Da mesma forma, a teoria da evolução, proposta por Charles Darwin e Alfred Wallace em meados do século XIX, não é contrária à existência Deus, simplesmente porque Ele não é um objeto de estudo científico. A teoria de Darwin-Wallace é materialista e, portanto, deixa de fora do seu corpo de discussão qualquer aspecto que fuja dessa perspectiva. Deus não pode ser matéria, o que infelizmente nunca foi percebido pelos milhares de críticos das idéias evolucionistas durante os últimos cento e cinqüenta anos.

Em alguns países, idéias científicas muitas vezes são deturpadas nas escolas ou mesmo omitidas dos livros didáticos, em prol de um crescente conservadorismo, travestido de crença na criação especial por uma mente superior. Isso cria um viés perigoso. A ciência diz que nossa espécie está conectada com todas as outras no nosso planeta, vivas ou extintas, pois resultamos todos de um mesmo processo de descendência com modificação. O homem apareceu há pouco tempo na história biológica. Por bilhões de anos, a Terra foi povoada exclusivamente por uma enorme diversidade de bactérias, e a elas seguiram (não nessa ordem) grupos de insetos, peixes, medusas, moluscos, dinossauros e outros. Sob uma ótica científica, não há sentido crermos que o mundo biológico foi criado para nosso uso, para o nosso prazer. Alçar nossa espécie a algum tipo de pináculo da evolução, uma posição privilegiada no meio da diversidade, é um erro grosseiro e revela um desconhecimento cabal da intrincada rede de conexões entre os seres vivos, além de justificar preconceitos e racismos (basta lembrar como negros e indígenas eram tratados como espécies inferiores até há bem pouco tempo).

Religiosos e cientistas caminham em linhas finas muito próximas, mas que não se contrapõem. Isso impede qualquer conclusão definitiva sobre benefícios e desvantagens de uma ou outra perspectiva. Somente o convívio harmonioso entre ciência e religião, respeitados os seus limites de abrangência, pode aproximá-las de seu objetivo comum: o conhecimento.

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