A história do pensamento evolutivo mostra que muitos outros autores quase "chegaram lá" quando o assunto é seleção natural: antes do naturalista escocês Patrick Matthew, (1790-1874) sobre o qual comenta Osame Kinouchi no seu blog SemCiência, no século XVIII, o naturalista, cosmólogo, matemático e enciclopedista Georges Louis de Buffon (1707-1788) havia aventado essa possibilidade no seu monumental Histoire Naturelle (apesar dos escritos desse francês não primarem pela consistência). William Charles Wells (1757-1817) já havia falado de seleção natural na espécie humana, no começo do século XIX (e, inclusive, Charles Darwin (1809-1882) o cita nominalmente no sua obra magna Sobre a origem das espécies). Não só Alfred Russel Wallace, (1823-1913) mas também Henry Walter Bates (1825-1892), trabalhando na Amazônia, chegaram à mesma conclusão de Darwin a respeito do processo evolutivo, especialmente considerando a importância da distribuição geográfica no processo de especiação.
Agora, como aponta o professor Kinouchi, quais são as condições para se reconhecer quando alguém é o "descobridor" de uma idéia?
Wallace e Bates trabalharam de forma obsessiva-compulsiva, talvez até mais do que Darwin (Darwin fez apenas UMA viagem relevante na sua vida, no Beagle). Tanto Wallace quanto Bates trabalharam infinitas horas no calor amazônico (há relatos de coletas por 18 horas seguidas!). Bates viveu no Brazil durante onze anos, enviando mais de 8 mil novas espécies de insetos para a Inglaterra durante o período - mesmo os não zoólogos e quem não trabalha com descrição de espécies percebe que esse número é astronômico. Wallace passou outro longo período no arquipélago Malaio, sempre compilando suas toneladas de informações em trabalhos de grande monta. Ele talvez não tivesse a reputação científica suficiente, é verdade (que vem sendo resgatada recentemente). No entanto, isso nada teria a ver com a qualidade do seu trabalho e sim com a genealogia: Darwin era de família abastada, Wallace não era. O primeiro trabalhava em sua casa de campo; o segundo ganhava a vida no campo de fato.
O pendor espiritualista de Wallace (ele aceitava que todos os organismos passavam pelo processo da seleção natural, menos o homem, "ungido" pelo divino com sua capacidade cognitiva extraordinária) pode ser colocado como algo que o deixou um pouco longe das primeiras sínteses históricas do evolucionismo. Mas o homem trabalhou, e muito! Além do que, as principais referências sobre a história da teoria da evolução, especialmente para os não familiarizados com a literatura técnica da área, vem dos trabalhos dos teóricos sintéticos da evolução, do qual o ornitólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005) é seu maior representante. Os livros de Mayr são bastante tendenciosos - ele, por exemplo, pouco considerava a importância da sistemática filogenética de Willi Hennig para a biologia, e dizia que a teoria da deriva continental, do meteorologista alemão Alfred Wegener, não havia provocado tanto impacto nos estudos da evolução (o que está longe de corresponder a verdade, como qualquer pessoal que estuda a distribuição dos organismos pelo globo pode comprovar).
Quando falamos em ciência biológica do século XIX, é óbvio que um livro chamaria muito mais atenção que um artigo (que Wallace publicou em 1858, juntamente com um texto de Darwin). Tanto isso é verdade que o presidente da Royal Society à época disse que no ano de 1858 nenhuma novidade científica relevante havia sido proposta...
Charles Darwin foi o "descobridor" da seleção natural? Difícil dizer ao certo. Darwin foi um grande compilador, além de um pensador original, e soube comparar o que parece intangível (a seleção natural) com algo que todos sabiam do que se tratava (a seleção artificial de variedades animais e vegetais).
Vale dizer, contudo, que muito espaço é dado para discussões a respeito da seleção natural, quando hoje se sabe que ela é apenas um dos processos relacionados à descendência com modificação a partir de ancestrais comuns. Darwinismo NÃO é sinônimo de Evolucionismo! A teoria da evolução, atualmente, está anos à frente do que Darwin dizia (ou mesmo do que ele teria condições de pensar, com base na ciência do seu período).
Muitos tentam relacionar alguns comentários de Darwin como possíveis precursores de descobertas das quais ele reconhecidamente não fez parte - como os primórdios da genética mendeliana. Dizer que essas extrapolações apenas aumentam, de forma falaciosa, o mito ao redor de Darwin não é desrespeitar o legado desse fantástico cientista mas sim preservar a importância sua obra sem deturpações whiggistas (uma perspectiva que analisa a história a partir do referencial moderno). Devemos desconstruir Darwin para que a essência do seu gênio prevaleça.
(Este post faz parte da discussão de março do "Roda de Ciências". Por favor, comentários aqui)
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