Tenho três gatos (minha mulher insiste que esse número tem que aumentar mas ainda não estou plenamente convencido disso): Titilo, Brigite e Yuki. O Titilo é um gato bonachão, gordo e carinhoso; a Brigite é austera, séria e cheia de particularidades adoráveis; a Yuki... bem, a Yuki é indescritível! São todos muito caseiros, preferindo um pufe velho a uma visita à garagem. Apesar de um grande número de características compartilhadas com os demais felinos, os gatos domésticos também apresentam uma série de atributos que os fazem especiais, tanto para quem gosta dos bichanos quanto para os que querem entender um pouco da sua história evolutiva.
Gatos domésticos são mamíferos da família Felidae. Os primeiros carnívoros semelhantes aos felinos apareceram no Oligoceno (Cenozóico, a era mais recente quando olhamos a tabela do tempo geológico), há aproximadamente 35 milhões de anos. A subfamília Felinae, que reúne os gatos viventes, originou-se no Mioceno (cerca de 9 milhões de anos atrás) e tornou-se um dos grupos de mamíferos carnívoros de maior sucesso no planeta. Hoje em dia, podem ser encontrados em todos os continentes, exceto na Antártida. Atualmente, quatro linhagens de Felidae distribuem-se nas suas prováveis regiões de origem: a linhagem do gato de Borneo e a dos leopardos (na região Oriental), os caracals (na África) e as jaguatiricas (na região Neotropical). Além dessas linhagens endêmicas, há outras espalhadas pelos diferentes continentes: guepardos, pumas, panteras, jaguares, leões, gatos selvagens e gatos domésticos. No entanto, nem sempre esses nomes são utilizados de forma não ambígua na literatura especializada e há uma linha tênue entre a definição de uma e outra espécie. A ampla distribuição de alguns grupos, além disso, pode ter permitido um grande fluxo gênico entre agrupamentos filogeneticamente aparentados, o que contribui para que os limites entre as várias linhagens de felinos se assemelhe a um borrão.
Uma das questões que mais atormenta os evolucionistas diz respeito à origem da domesticação nos grupos animais. A questão da seleção artificial de linhagens com o objetivo de ressaltar determinados atributos úteis para o homem foi uma das principais linhas de argumentação utilizadas por Charles Darwin no “Origem das espécies”, lançado em 1859. Criadores vêm selecionando características animais provavelmente desde a aurora da nossa espécie. Esse processo é, em geral, análogo à seleção natural de variedades pré-existentes, responsável, juntamente com eventos aleatórios e mutações neutras, pela diversidade orgânica existente no planeta. Dentre todos os animais domesticados, o gato é o menos compreendido. Um estudo recente vem jogar alguma luz nessa controvérsia.
É de amplo conhecimento que os gatos convivem com nossa espécie desde pelo menos o Egito Antigo. Na mitologia egípcia, a deusa da fertilidade, protetora das mulheres grávidas, é Bastet, representada tradicionalmente como uma mulher com cabeça de gato (às vezes, apenas como um gato). Em Bubastis, centro de culto da deusa, no Delta do Nilo oriental, foram encontradas diversas múmias de felinos, que eram tratados em vida como seres sagrados. Se os gatos foram primeiramente domesticados no Egito, a convivência entre Homo sapiens e Felis silvestris catus remonta há algo em torno de 5000 anos. Uma descoberta arqueológica recente ampliou esse período em 4500 anos.
Foi desenterrado na ilha de Chipre, 70 quilômetros ao sul da Turquia, um esqueleto de um gato morto aos oito meses de idade há 9500 anos. Isso seria um achado arqueológico pouco relevante se junto a ele não tivesse sido encontrado o corpo humano de um adulto com cerca de 30 anos, enterrado na mesma posição do felino, juntamente com ferramentas e utensílios de pedra. Ambos estavam na mesma posição. Aliado a isso, sabe-se que os gatos não são cipriotas de origem, o que significa que eles foram levados até a ilha, provavelmente como animais domésticos. Ou quase domésticos...
Qualquer pessoa que tem um gato (ou vários), ou apenas gosta desses bichos, sabe que eles são plenos em idiossincrasias. Nós não afagamos um gato. Eles só aceitam os carinhos quando querem. Foi Antonie Rivarol, escritor francês do século XVIII, quem disse: "O gato não nos acaricia; o que faz é acariciar-se em nós" (a literatura é plena de exemplos de aforismos “felinos”. Para o romancista norte-americano Mark Twain, “Se o homem pudesse ser cruzado com o gato, isto melhoraria o homem, mas deterioraria o gato". Jim Davis, o criador do Garfield, foi outro dos que capturou como poucos o que é ter um bichano em casa. Nas suas palavras: "Os gatos sabem o momento em que seus donos vão acordar - e os despertam dez minutos antes"). O que isso nos diz quanto à evolução desses animais? Muita coisa.
Cães e cavalos foram selecionados artificialmente por portarem inúmeros atributos interessantes ao homem. São animais que podem ser utilizados na caça ou no transporte, por exemplo. E os gatos? Os gatos não foram domesticados pelo homem. Na verdade, eles permitiram a domesticação! É claro que esse não é o raciocínio evolutivo mais correto, mas dá uma noção do que pode ter acontecido na história evolutiva dos Felidae. O que os evolucionistas têm interpretado é que, com o florescimento das sociedades e, conseqüentemente, com o aumento das aglomerações humanas, também deve ter aumentado a quantidade de lixo. Isso deve ter atraído ratos, abundantes também nas áreas de depósito de cereais e outros recursos alimentares. Se pensarmos em um cenário adaptativo, seria vantajoso para alguns grupos de gatos uma convivência pacífica com os humanos. Assim, eles teriam fontes abundantes de alimento, o que permitiria proles mais copiosas. Um cenário plausível para esses primeiros passos da domesticação felina é o Oriente Médio, na região do Crescente Fértil (que compreende Israel, Cisjordânia, Líbano, partes da Jordânia, da Síria, do Iraque, do Egito e do sudeste da Turquia). Gatos têm sido nossos companheiros há mais de 9000 anos.
Apesar dos meandros dessa domesticação ainda continuarem um tanto obscuros, novas descobertas têm permitido compreender melhor o que pode ter levado à nossa convivência tão próxima com esses animais. No convívio do dia-a-dia, é mais fácil entender o fascínio que sentimos por eles: ter sua atenção não é trivial; quando se consegue, percebe-se o que é o afeto verdadeiro e fiel.
As fotos que ilustram esse texto são de Patricia Kiss. Na ordem: Brigite, Titilo e Yuki.
Post scriptum: há vários artigos interessantes sobre o tema. Alguns técnicos, outros para divulgação ampla. Segue uma pequena lista de referências que podem guiar os interessados:- Driscoll, C.A. Menotti-Raymond, M. Roca, A.L., Hupe, K. Johnson, W.E., Geffen, E., Harley, E.H., Delibes, M., Pontier, D. Kitchener, A.C., Yamaguchi, N. O’Brien, S.J. & Macdonald, D.W. 2007. The Near Eastern Origin of Cat Domestication. Science, 317, 519-523.
- Driscoll, C.A., Clutton-Brock, J. Kitchener, A.C. & O’Brien, S.J. 2009. A longa (e incompleta) domesticação do gato. Scientific American Brasil, 86.- Driscoll, C.A., Macdonald, D.W., O’Brien, S.J. 2009. From wild animals to domestic pets, an evolutionary view of domestication. PNAS, 106, 9971–9978.
- Johnson,W.E., Eizirik, E., Pecon-Slattery, J. Murphy, W.J., Antunes, A., Teeling, E. & O’Brien, S.J. 2006. The Late Miocene Radiation of Modern Felidae: A Genetic Assessment. Science, 311, 73-77.
- Pennisi, E. 2004. Burials in Cyprus Suggest Cats Were Ancient Pets. Science, 304, 189.
- Vigne, J.-D. Guilaine, J. Debue, K., Haye, L. & Gerard, P. 2004. Early Taming of the Cat in Cyprus. Science, 304, 259.
Gatos domésticos são mamíferos da família Felidae. Os primeiros carnívoros semelhantes aos felinos apareceram no Oligoceno (Cenozóico, a era mais recente quando olhamos a tabela do tempo geológico), há aproximadamente 35 milhões de anos. A subfamília Felinae, que reúne os gatos viventes, originou-se no Mioceno (cerca de 9 milhões de anos atrás) e tornou-se um dos grupos de mamíferos carnívoros de maior sucesso no planeta. Hoje em dia, podem ser encontrados em todos os continentes, exceto na Antártida. Atualmente, quatro linhagens de Felidae distribuem-se nas suas prováveis regiões de origem: a linhagem do gato de Borneo e a dos leopardos (na região Oriental), os caracals (na África) e as jaguatiricas (na região Neotropical). Além dessas linhagens endêmicas, há outras espalhadas pelos diferentes continentes: guepardos, pumas, panteras, jaguares, leões, gatos selvagens e gatos domésticos. No entanto, nem sempre esses nomes são utilizados de forma não ambígua na literatura especializada e há uma linha tênue entre a definição de uma e outra espécie. A ampla distribuição de alguns grupos, além disso, pode ter permitido um grande fluxo gênico entre agrupamentos filogeneticamente aparentados, o que contribui para que os limites entre as várias linhagens de felinos se assemelhe a um borrão.
Uma das questões que mais atormenta os evolucionistas diz respeito à origem da domesticação nos grupos animais. A questão da seleção artificial de linhagens com o objetivo de ressaltar determinados atributos úteis para o homem foi uma das principais linhas de argumentação utilizadas por Charles Darwin no “Origem das espécies”, lançado em 1859. Criadores vêm selecionando características animais provavelmente desde a aurora da nossa espécie. Esse processo é, em geral, análogo à seleção natural de variedades pré-existentes, responsável, juntamente com eventos aleatórios e mutações neutras, pela diversidade orgânica existente no planeta. Dentre todos os animais domesticados, o gato é o menos compreendido. Um estudo recente vem jogar alguma luz nessa controvérsia.
É de amplo conhecimento que os gatos convivem com nossa espécie desde pelo menos o Egito Antigo. Na mitologia egípcia, a deusa da fertilidade, protetora das mulheres grávidas, é Bastet, representada tradicionalmente como uma mulher com cabeça de gato (às vezes, apenas como um gato). Em Bubastis, centro de culto da deusa, no Delta do Nilo oriental, foram encontradas diversas múmias de felinos, que eram tratados em vida como seres sagrados. Se os gatos foram primeiramente domesticados no Egito, a convivência entre Homo sapiens e Felis silvestris catus remonta há algo em torno de 5000 anos. Uma descoberta arqueológica recente ampliou esse período em 4500 anos.
Foi desenterrado na ilha de Chipre, 70 quilômetros ao sul da Turquia, um esqueleto de um gato morto aos oito meses de idade há 9500 anos. Isso seria um achado arqueológico pouco relevante se junto a ele não tivesse sido encontrado o corpo humano de um adulto com cerca de 30 anos, enterrado na mesma posição do felino, juntamente com ferramentas e utensílios de pedra. Ambos estavam na mesma posição. Aliado a isso, sabe-se que os gatos não são cipriotas de origem, o que significa que eles foram levados até a ilha, provavelmente como animais domésticos. Ou quase domésticos...
Qualquer pessoa que tem um gato (ou vários), ou apenas gosta desses bichos, sabe que eles são plenos em idiossincrasias. Nós não afagamos um gato. Eles só aceitam os carinhos quando querem. Foi Antonie Rivarol, escritor francês do século XVIII, quem disse: "O gato não nos acaricia; o que faz é acariciar-se em nós" (a literatura é plena de exemplos de aforismos “felinos”. Para o romancista norte-americano Mark Twain, “Se o homem pudesse ser cruzado com o gato, isto melhoraria o homem, mas deterioraria o gato". Jim Davis, o criador do Garfield, foi outro dos que capturou como poucos o que é ter um bichano em casa. Nas suas palavras: "Os gatos sabem o momento em que seus donos vão acordar - e os despertam dez minutos antes"). O que isso nos diz quanto à evolução desses animais? Muita coisa.
Cães e cavalos foram selecionados artificialmente por portarem inúmeros atributos interessantes ao homem. São animais que podem ser utilizados na caça ou no transporte, por exemplo. E os gatos? Os gatos não foram domesticados pelo homem. Na verdade, eles permitiram a domesticação! É claro que esse não é o raciocínio evolutivo mais correto, mas dá uma noção do que pode ter acontecido na história evolutiva dos Felidae. O que os evolucionistas têm interpretado é que, com o florescimento das sociedades e, conseqüentemente, com o aumento das aglomerações humanas, também deve ter aumentado a quantidade de lixo. Isso deve ter atraído ratos, abundantes também nas áreas de depósito de cereais e outros recursos alimentares. Se pensarmos em um cenário adaptativo, seria vantajoso para alguns grupos de gatos uma convivência pacífica com os humanos. Assim, eles teriam fontes abundantes de alimento, o que permitiria proles mais copiosas. Um cenário plausível para esses primeiros passos da domesticação felina é o Oriente Médio, na região do Crescente Fértil (que compreende Israel, Cisjordânia, Líbano, partes da Jordânia, da Síria, do Iraque, do Egito e do sudeste da Turquia). Gatos têm sido nossos companheiros há mais de 9000 anos.
Apesar dos meandros dessa domesticação ainda continuarem um tanto obscuros, novas descobertas têm permitido compreender melhor o que pode ter levado à nossa convivência tão próxima com esses animais. No convívio do dia-a-dia, é mais fácil entender o fascínio que sentimos por eles: ter sua atenção não é trivial; quando se consegue, percebe-se o que é o afeto verdadeiro e fiel.
As fotos que ilustram esse texto são de Patricia Kiss. Na ordem: Brigite, Titilo e Yuki.
Post scriptum: há vários artigos interessantes sobre o tema. Alguns técnicos, outros para divulgação ampla. Segue uma pequena lista de referências que podem guiar os interessados:- Driscoll, C.A. Menotti-Raymond, M. Roca, A.L., Hupe, K. Johnson, W.E., Geffen, E., Harley, E.H., Delibes, M., Pontier, D. Kitchener, A.C., Yamaguchi, N. O’Brien, S.J. & Macdonald, D.W. 2007. The Near Eastern Origin of Cat Domestication. Science, 317, 519-523.
- Driscoll, C.A., Clutton-Brock, J. Kitchener, A.C. & O’Brien, S.J. 2009. A longa (e incompleta) domesticação do gato. Scientific American Brasil, 86.- Driscoll, C.A., Macdonald, D.W., O’Brien, S.J. 2009. From wild animals to domestic pets, an evolutionary view of domestication. PNAS, 106, 9971–9978.
- Johnson,W.E., Eizirik, E., Pecon-Slattery, J. Murphy, W.J., Antunes, A., Teeling, E. & O’Brien, S.J. 2006. The Late Miocene Radiation of Modern Felidae: A Genetic Assessment. Science, 311, 73-77.
- Pennisi, E. 2004. Burials in Cyprus Suggest Cats Were Ancient Pets. Science, 304, 189.
- Vigne, J.-D. Guilaine, J. Debue, K., Haye, L. & Gerard, P. 2004. Early Taming of the Cat in Cyprus. Science, 304, 259.
6 comentários:
Adorei!!
E as fotos da Patrícia estão lindíssimas.
hahuahuahuahua gato é meio coisa de boiola hein!!! huahuahuahuahu
Olá, Charles....Vou te dizer...só quem tem um gato sabe o que é ter um gato...tem uma frase que li em algum lugar na net: Os cachorros tem donos os gatos tem servos...é isso ai...eles não são nossos, somos deles...hehehehe
Estou adorando seus textos. Tenho sugerido a leitura de seu blog por alguns alunos aqui da Paraíba...
Amplexos e ósculos
Olá, Olivia e Luanda!
Bom que vocês gostaram do texto. Realmente os gatos são sui generis... por isso mesmo são encantadores. Entender um pouco da evolução do grupo torna-os ainda mais interessantes!
Quanto ao Fernando, só posso ter pena da sua pessoa. Como disse o historiador francês do século XIX Hippolyte Taine: "Eu conheci muitos pensadores e muitos gatos, mas a sabedoria de gatos é infinitamente superior".
Abraço a todos!
Vc tem três gatos:
o primeiro é o que vc é,
o segundo é o que vc pensa que é,
o terceiro é a imagem que vc gostaria que os outros lhe vissem.
Um abraço
G.
Ola Charles
Sou biologa e adoro "bioblogs". Muito bacana o seu ! Vou voltar sempre... Adorei saber que vc gosta ( e tem) gatos. Tenho varios e concordo com vc: eles são únicos!
Abraços
Paula
=)
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