quinta-feira, 2 de julho de 2009

Que os elos permaneçam perdidos!

Muito se fala a respeito de elos-perdidos. Esse talvez seja um dos maiores clichês utilizados pela grande mídia ao tratar da teoria da evolução, especialmente no contexto da descoberta de um novo fóssil de um grupo taxonômico importante. Há pouco, em março do presente ano, foi publicada a descrição de um novo anomalocarídeo, Hurdia victoria, uma espécie aparentada aos gigantes predadores dos mares do Cambriano, os Anomalocaris. Pela proximidade evolutiva, os Hurdia podem ser considerados artrópodes (ou pelo menos pertencentes a um possível grupo-irmão de Arhtropoda, os Lobopoda). As notícias dos jornais não costumam ser assim tão contidas: muitos tomaram os Hurdia como um novo "elo-perdido" da evolução dos animais com apêndices locomotores articulados e exoesqueleto rígido. Apesar de disseminados, a utilização desses lugares-comuns é oriunda principalmente do desconhecimento, por parte dos jornalistas, de alguns dos fundamentos da teoria da evolução, particularmente da sistemática filogenética, a principal ferramenta utilizada para sistematizar o conhecimento biológico em diagramas hierárquicos que refletem o processo de descendência com modificação a partir de um ancestral comum (uma pequena provocação: talvez não tenha sido assim tão ruim a desregulamentação da profissão de jornalista - pelo menos isso abre a possibilidade teórica do jornalismo científico ser feito por quem entende pelo menos um tanto sobre o que está falando...).

Por que não existem elos-perdidos? Alguém pode dizer, com um sorriso amarelo, que quando um elo-perdido é encontrado, ele deixa de ser perdido para ser elo-encontrado...

Quando os organismos são dispostos em cladogramas - árvores evolutivas resultantes de análises filogenéticas - apenas as relações colaterais de parentesco são reveladas. Um cladograma resolvido que apresenta três grupos terminais, como o da figura 1, só pode ser interpretado da seguinte maneira: o grupo A é mais próximo do grupo B em relação ao grupo C. Em um contexto evolutivo, pode-se dizer que A e B compartilham um ancestral comum exclusivo não compartilhado com C.

Analisando uma hipótese simplificada para o posicionamento do gênero extinto Hurdia, percebe-se que ele está próximo aos Panarthropoda, grupo formado por artrópodes, tardígrados e onicóforos (Figura 2). No entanto, os Arthropoda são mais próximos de Onycophora e Tardigrada do que de Hurdia. Nesse sentido, Panarthropoda tem um ancestral comum exclusivo não compartilhado por Hurdia. Em nenhum momento o raciocínio foi "Hurdia é o elo-perdido dos Arthropoda" ou "Hurdia é o ancestral dos Arthropoda". Na biologia evolutiva, nunca se pode delimitar um ancestral com certeza. O ancestral é SEMPRE uma hipótese! O ancestral é SEMPRE hipotético! Independentemente da quantidade de informações disponíveis, não somos aptos a determinar, de forma peremptória ou definitiva, se um determinado grupo foi o ancestral de qualquer outro grupo. Os fósseis, assim, sujeitam-se aos mesmos limites de interpretação dos organismos vivos.

No período entre os primeiros levantes da teoria sintética da evolução (em meados dos anos 1930) até o lançamento, em 1966, do Phylogenetic Systematics (Sistemática Filogenética) do entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976), imperou na biologia uma escola de pensamento sistemático chamada Taxonomia Evolutiva ou Taxonomia Clássica. Seu principal representante foi o ornitólogo Ernst Mayr (1904-2005). Para os taxonomistas clássicos, as árvores evolutivas poderiam representar as relações de ancestral-descendentes – Charles Darwin (1809-1882) pensava dessa forma, o mesmo valendo para o criador do termo filogenia, o alemão Ernst Haeckel (1834-1919). Para Mayr, não seria errado dizer que os Hurdia correspondem ao grupo ancestral do Panarthropoda. A sistemática filogenética demonstrou que essa interpretação está incorreta.

Um exemplo clássico, utilizando o grupo de estudo de Mayr, pode ilustrar bem o problema. Talvez um dos fósseis mais famosos do mundo, o Archaeopteryx lithographica é tido como a ave mais antiga dentre todas as conhecidas. O primeiro espécime fóssil de A. lithographica foi descoberto em 1861, na formação Solnhofen (sul da Alemanha), proveniente de rochas do período Jurássico, de 150 milhões de anos de idade. Foi um achado extraordinário. Em uma mesma espécie, apareciam características típicas dos répteis tradicionais juntamente com atributos exclusivos das aves! O espécime apresentava bico com dentes, estrutura esquelética em parte semelhante a do grupo dos lagartos, cobras e tartarugas e em parte a dos pássaros modernos, e penas (!). O Archaeopteryx era um candidato óbvio a elo-perdido entre os répteis e as aves. E assim foi tratado por muito tempo. Hoje sabe-se que Archaeopteryx é o grupo-irmão das aves recentes e compartilha com elas um ancestral comum exclusivo. Atentem para o que foi dito: Archaeopteryx é grupo-irmão das aves recentes, não o ancestral do grupo (Figura 3).

Há uma série de argumentos que justificam o porque da impossibilidade de se imputar o status de ancestral a qualquer espécie, fóssil ou recente. Alguns são de uma simplicidade flagrante. Sabemos que, para cada espécie animal viva (são mais ou menos um milhão de espécies animais descritas), provavelmente existiram outras 100. Isso significa que, desde a aurora dos metazoários, há cerca de 600 milhões de anos, devem ter passado pelo nosso planeta em torno de 100 milhões de espécies. Dessas, apenas uma parcela ínfima foi preservada nas rochas sob a forma de fósseis. O processo de fossilização não é trivial, por isso as descobertas paleontológicas, resultado de trabalho cuidadoso e detalhado, são quase sempre aclamadas, pela menos na comunidade acadêmica. É possível que no Jurássico tenham existido outras proto-aves, diferentes do Archaeopteryx, que não tiveram a oportunidade de se ver impressas na rocha. Em suma, muitas espécies não se fossilizaram. O que nos garante que uma dessas espécies não foi, de fato, a ancestral das aves recentes?

Façamos um experimento mental. O cenário é o seguinte: há um berçário com cinco bebês, sendo observados por três adultos. Esses adultos são duas enfermeiras e um médico. Os pais dos cinco bebês estão do lado de fora do berçário, ansiosos para abraçarem e beijarem seus rebentos queridos. Mas, de repente, uma catástrofe de proporções apocalípticas toma conta do planeta. É a vingança das plantas! Os cinco bebês e os três adultos do berçário são engolidos pela seiva de uma árvore monstruosamente gigante que fazia sombra à toda a cidade (não só ao hospital). Eles estão agora envoltos em âmbar. Os pais são esmagados por um galho e, pouco tempo depois, são comidos por chacais, seus restos se decompondo pela ação de fungos e bactérias. Toda a humanidade perece em questão de semanas.

Milhões de anos se passam. No futuro longínquo, alienígenas paleontólogos descobrem aquele cenário fossilizado. Como foram encontrados adultos perto dos bebês, eles automaticamente consideram esses adultos como os progenitores (os ancestrais) dos recém-nascidos. Parece lógico, mas não é. Os pais verdadeiros (os verdadeiros ancestrais) não se fossilizaram! Se formos montar uma genealogia com os fósseis encontrados, o máximo que poderíamos dizer é que os adultos são mais próximos dos bebês em relação a outro grupo distantemente relacionado - e nem isso seria absolutamente certo. Se a identidade dos três adultos fossilizados fosse desconhecida, poderíamos interpretá-los como os pais das crianças. No entanto, dizer isso com certeza seria leviano. Da mesma forma que os pais não ficaram preservados no âmbar, talvez os verdadeiros ancestrais das aves também não se fossilizaram. Isso vale para qualquer grupo biológico posto sob escrutínio.

A sistemática filogenética é um método elegante e poderoso porque ele reflete a própria natureza do pensamento científico. Os cladogramas procuram reconstruir as relações de parentesco sem perder de vista a idéia de que o que fazemos é postular hipóteses, com base em evidências, sobre como se deu a evolução desse ou daquele grupo. Essas hipóteses podem ser modificadas à luz de novas evidências ou de outras hipóteses com maior poder explanatório. A idéia de encontrar elos-perdidos pode resultar em uma boa manchete de jornal, e até ajudar a vender alguns exemplares para incautos transeuntes, mas passa longe do que podemos considerar boa ciência.
Post-scriptum: Informações complementares sobre alguns dos tópicos discutidos acima podem ser encontradas em:

- Daley, A.C., Budd, G.E., Caron, J.-B., Edgecombe, G.D. & Collins, D. 2009. The Burgess Shale Anomalocaridid Hurdia and Its Significance for Early Euarthropod Evolution. Science, 323, 1597-1600.
- Gould, S.J. 1989 (1990) Vida maravilhosa. Companhia das Letras, São Paulo.
- Prum, R.O. & Brush, A.H. 2003. A controvérsia do que veio primeiro, penas ou pássaros? Scientific American Brasil (11).
- Santos, C.M.D. 2008. Os dinossauros de Hennig: sobre a importância do monofiletismo para a sistemática biológica. Scientiae Studia, v. 6, p. 179-200.