"Uma das ironias da história da biologia é que Darwin
não explicou realmente a origem de novas espécies
no Origem das espécies porque ele não sabia como
definir uma espécie"
Douglas Futuyma (1983)
Apesar das dificuldades, a biologia moderna é quase unânime em reconhecer a existência de descontinuidades reais natureza. Isso quer dizer que podem ser identificadas entidades naturais, as quais damos o nome de espécies. Fica claro, portanto, que qualquer área das ciências biólogicas baseia-se em, ou pelo menos utiliza, espécies. Zoólogos, obviamente, lidam dia-a-dia com espécies, assim como botânicos. Geneticistas, apesar de estarem distantes da imagem popular do pesquisador naturalista, também fazem uso de espécies: há quem trabalhe com genética de populações de Drosophila melanogaster (uma espécie de dípteros antes conhecidos como moscas-das-frutas), há quem faça clonagem de Ovis aries (ovelhas, como a famosa Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de células adultas)... Assim, o conceito de espécie é um dos fundamentos de todas as disciplinas biológicas.
Para o ornitólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005), em seu livro Toward a new philosophy of biology: observations of an evolutionist (Em direção a uma nova filosofia da biologia: observações de um evolucionista), publicado em 1988, “a diversidade da vida orgânica, consistindo de espécies e grupos de espécies (...), é produto da evolução. Isso torna necessário o estudo da origem e história evolutiva da cada espécie e cada táxon superior. O estudo das espécies é, portanto, uma das preocupações fundamentais da biologia”.
Entendi, você pode dizer. Lidar com espécies é condição sine qua non para o estudo da biologia. Isso está claro. Mas, o que é uma espécie? A dificuldade para responder à essa simples pergunta levou ao desenvolvimento de uma série de conceitos diferentes que tentaram definir o que essa entidade natural. O objetivo aqui não é descrever cada um deles mas apenas separá-los em classes reconhecidas na literatura biológica.
Segundo o conceito tipológico, uma espécie é uma entidade que difere de outra espécie por apresentar características diagnósticas identificáveis constantes. Dessa forma, espécies corresponderiam a agregados aleatórios de indivíduos que têm em comum algumas propriedades essenciais. O conceito remonta ao eidos platônico - o primeiro significado de eidos, presente na obra do poeta grego Homero (autor da Ilíada e da Odisséia), é "aquilo que se vê", "aparência", "forma" ou ainda "propriedade característica". Para a filosofia aristotélica, corresponderia à “essência” ou “natureza” de algum objeto ou organismo, no caso, da espécie-tipo. Aqui, a palavra “espécie” significa “tipo de” e designa um certo grau de similaridade. Do conceito tipológico deriva o conceito morfológico: uma morfoespécie é uma espécie reconhecida apenas com base na sua morfologia. Na prática, é o mais utilizado pelos sistematas e taxonômos. Qualquer um que já viu uma descrição de espécie publicada deve ter notado que um novo nome de espécie proposto sempre vem relacionado à um espécime, chamado de holótipo, e a uma diagnose, que aponta os atributos necessários para identicar aquela nova espécie.
Durante a Idade Média, especialmenta a partir do século VII, um dos problemas filosóficos muito discutido foi a questão dos universais ou o problema da correspondência entre nossos conceitos intelectuais e as coisas que existem fora do nosso intelecto. Apesar dos objetivos serem determinados e individuais, nossas representações mentais são realidades infependentes de qualquer determinação particular. A questão se resumo em descobrir em que extensão os conceitos da mente correspondem às coisas que eles representam: o quanto o sapo que concebemos representam do sapo que existe na natureza? Os conceitos apenas palavras ou são mesmo realidade? Uma das respostas para esse tipo de questão quase esotérica vem de uma escola de pensamento medieval chamada nominalismo.
Para os nominalistas, as idéias gerais não têm realidade fora do que é concebido por nossa mente - elas não passam de simples nomes. Real é o objeto considerado. Não há um universal per se. Ele é apenas um nome sem conteúdo concreto, um vocábulo com significado geral. O que isso tem a ver com o conceito de espécie? Bem, há um conceito nominalista de espécie. De acordo com ele, apenas objetos individuais existem na natureza. Tais objetos ou organismos são mantidos unidos por um nome – espécies, dessa maneira, seriam construções mentais arbitrárias, nada mais que isso. Elas não teriam realidade na natureza.
Esse pode ser um conceito filosoficamente interessante mas carece de substância, quando confrontado com situações corriqueiras. O reconhecimento das mesmas entidades como sendo espécies por culturas tão distintas quanto ocidentais brancos e nativos da Nova Guiné, como relatado por Mayr na sua obra de 1988, demonstra como o nominalismo não é a melhor saída para o nosso problema. Qual a chance de culturas tão diferentes, espacialmente separadas por um oceano, chegarem exatamente às memas construções arbitrárias, ou seja, à delimitação de espécies idênticas? Eu diria que ínfima.
O nominalismo foi a base do pensamento biogeográfico do jesuíta Athanasius Kircher (1602-1680). Hoje quase uma anedota, Kircher publicou uma descrição detalhada da Arca de Noé e de todos os compartimentos necessários para acomodar as 310 espécies de animais que ele reconhecia. Esse número é pequeno, mesmo para a época (século XVII), pois se sabia que a diversidade biológica existente era muito maior. Para Kircher, a linguagem natural era a linguagem divina. Na sua obra Arca Noë, de 1675, ele tentou explicar o grande número que teria aparecido após o dilúvio universal através da existência de “cópula promíscua” (hibridação) entre as espécies animais que foram escolhidas por Noé para sua arca, apoiado no conceito nominalista de espécie. Durante os 40 dias e 40 noites que a arca de Noé ficou à deriva, os mais extraordinários intercursos sexuais do mundo animal devem ter acontecido. O leopardo (cujo nome latino é leopardus), por exemplo, seria o resultado do cruzamento entre o leão (leo) e a pantera (pardus). À junção dos nomes do leão e da pantera corresponderia o nome do leopardo. Esse cruzamento é até fácil de ser aceito. Díficil é pensar na cópula entre um camelo e uma pantera, que originaria, nas palavra de Kircher, o "camelopardo" ou girafa, ou no sexo dantesco entre um camelo e um pardal, que resultaria em um avestruz...
Talvez o conceito de espécie mais aceito, especialmente fora da academia, seja o biológico. Ele é ensinado desde o ensino fundamental e está arraigado em nossa percepção sobre o assunto. Dizemos que dois indivíduos são de uma mesma espécie se, ao cruzarem, tiverem descendentes também aptos à reprodução. O grande popularizador do conceito biológico foi o já citado Mayr mas ele não foi o primeiro a descrevê-lo. Quem o fez foi naturalista britânico John Ray (1635-1672). Trabalhando com plantas no seu Historia plantarum (1686-1704), para Ray, se dois ou mais indivíduos se originavam das sementes de uma mesma planta, eles seriam da mesma espécie, não importando o quanto de variação apresentassem. Muito mais próximo do conceito biológico moderno esteve o aristocrata francês George-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), que foi superintendente do Le Jardim du Roi (Jardim do Rei). No curso dos 44 volumes da sua Histoire Naturelle (História Natural), Buffon fez vários comentários - por vezes de forma confusa e contraditória - a respeito da sua concepção de espécie. Para ele, dois animais pertenceriam à mesma espécie se, através da cópula, eles pudessem se perpetuar; seriam de espécies diferentes se fossem incapazes de produzir filhotes. Segundo ele, no segundo volume do Histoire, "Saber-se-á que a raposa é uma espécie diferente do cachorro se for provado o fato de que, a partir do cruzamento de um macho e uma fêmea desses dois tipos de animais, nenhuma prole nascer; e mesmo que daí nasça uma prole híbrida, um tipo de mula, isso seria suficiente para provar que a raposa e o cachorro não são da mesma espécie - contanto que essa mula seja estéril. Assumimos que, para que uma espécie seja constituída, há necessariamente reprodução contínua, perpétua e invariável".
Para a perspectiva biológica, portanto, uma espécie corresponderia a um grupo de populações naturais que podem cruzar entre si e que permanecem reprodutivamente isoladas de outros grupos. Uma nova espécie adquire isolamento reprodutivo como resultado de um processo de especiação, que só se realiza quando da aquisição, por parte dessa espécie, de um novo, estabilizado e integrado genótipo (o conjunto de genes de um indivíduo), que a possibilitará adquirir, em grande parte dos casos, também um modo de vida particular no seu habitat.
Os mecanismos de isolamento de uma espécie funcionariam como instrumentos de proteção da integridade dos genótipos - sem eles, o cruzamento entre espécies diferentes levaria ao esfacelamento do equilíbrio dos genótipos, que seriam rapidamente extirpados pela seleção natural. A coesão interna das espécies é continuamente reforçada pelo cruzamento. Organismos que pertencem a uma espécie são parte da espécie, não membros dela (uma vez que a espécie, nesse sentido, não é uma classe). A compatibilidade de genótipos de parceiros co-específicos – documentada pela produção de novos genótipos viáveis na sua prole – indica que a população dessa espécie tem o tipo de “harmonia interna” que se esperaria encontrar em partes de um sistema único.
Todos sabem que as espécies não estão soltas no espaço. Elas localizam-se espaço-temporalmente, ocorrendo em locais e períodos específicos. Dentro dessa localização espaço-temporal, espécies correspondem a conjuntos contínuos de organismos, como comentara Buffon no século XVIII. Após o estabelecimento da teoria da evolução no século XIX, ficou clara que a continuidade entre as espécies era decorrente da sua conexão histórica (uma vez que todas as espécies compartilhariam um ancestral comum em algum nível). É interessante notar que o conceito biológico de espécie adequa-se bem à perspectiva da descendência com modificação preconizada pela teoria evolutiva. Nada aqui lembra o idéario platônico de essências fixas e transcendentais já que, se as espécies realmente portassem tais essências, a evolução gradual seria impossível. O fato da evolução mostra que as espécies não têm essências. Sendo assim, espécies podem ser caracterizadas pela presença de variação de organismos dentro de uma população, variação na distribuição geográfica das populações e variação no tempo (evolução).
Apesar do conceito biológico de espécie funcionar para grande parte dos grupos biológicos, com especial ênfase em animais que se reproduzem apenas de forma sexuada, ele encontra problemas quando da definição de bactérias - que trocam material genético livremente, umas com as outras, através de processos de transferência horizontal de porções do DNA -, protistas, vírus ou plantas (muitas das quais formam híbridos reprodutivamente aptos).
Segundo o conceito evolutivo, uma espécie é uma linhagem (uma seqüência de populações ancestrais-descendentes) que evolui separadamente, mantendo sua identidade, a partir de outras espécies. Como característica especial, ela possui tendências evolutivas - o que quer que isso signifique - e destino histórico particulares. Esse conceito foi modificado de idéias de George Gaylord Simpson (1902-1984) e E.O. Wiley, e é utilizado especialmente na paleontologia e também por sistematas que fazem análises filogenéticas. Como aponta Mayr no seu livro de 1988, a definição evolutiva de espécie utiliza termos vagos. O que significaria “manter sua identidade”? Isso implicaria na manutenção das barreiras geográficas? E “tendência evolutiva”? Para muitos, eu estou entre eles, “tendências” só poderiam ser observadas em reconstruções históricas com base em um registro fóssil completo e, ainda assim, seriam meramente descrições da evolução de uma dada linhagem e de alguns dos seus atributos. E o que seria um “destino histórico” particular?
Há uma profusão de outros conceitos. Alguns reconhecem que todas populações isoladas geograficamente constituem espécies distintas ou que uma espécie ancestral deixaria de existir a partir do momento em que uma noca espécie se originasse dela, remontando, de certa maneira, à sistemática filogenética de Willi Hennig (1913-1976). Para outros, uma espécie é a mais extensa unidade na economia natural na qual ocorre competição reprodutiva, por recursos genéticos, entre suas partes. Há ainda conceitos "aberrantes" como o de agamoespécie, exclusiva para grupos biológicos assexuais, como no caso da ocorrência de partenogênese em alguns animais e apomixia em plantas, quando se formam sementes sem fecundação.
No parágrafo final do Origem das espécies, Darwin disse que "há uma grandeza nessa visão da vida". Ele estava falando da sua perspectiva evolutiva de um mundo em constante modificação a partir de processos materialistas, que não necessitavam de nenhum tipo de Deus ex machina ou interventor sobrenatural. As muitas percepções sobre um único conceito, o de espécie, também cabem nessa visão grandiosa do mundo natural, uma visão científica que se baseia no teste de hipóteses e no levantamento de evidências que possam suportá-las. As descontinuidades presentes na natureza tornam óbvia a existência de espécies como entidades naturais. Identificá-las, no entanto, não é tão simples. Cabe à ciência, a partir de trabalho árduo e contínuo, criar formas de descortinar toda a sutileza do mundo natural. Conhecer a natureza das espécies é passo essencial para respondermos à célebre pergunta: "De onde viemos?".
2 comentários:
Caro Charles,
Estendi essa sua discussão a meu blog: passe por lá!
Um abraço!
Excelente post!
Usarei como pesquisa escolar, e direi que minha pesquisa foi baseada num post de um doutor em ciências biológicas, de um blog de referência...
Abraços!
Postar um comentário