segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um pouco mais a respeito de elos perdidos

Continuando uma discussão iniciada aqui nesse blog...



Uma pesquisa rápida para "elo perdido" feita na área de ciências de qualquer jornal de grande circulação certamente vai resultar em um grande número de notícias relacionadas a esse tema. A wikipedia tem um artigo a respeito, que começa da seguinte forma: "Em paleontologia, dá-se o nome de forma ou fóssil de transição a um organismo conhecido apenas do registo fóssil que combina características dos seus descendentes e antecessores evolutivos. Estes fósseis são conhecidos popularmente como elos perdidos da evolução". Esse é um clichê utilizado por toda a mídia sempre que se discute a descoberta de um fóssil de algum grupo representativo. Infelizmente, ele está fundamentalmente incorreto.

Há uma série de relatos na literatura biológica a respeito de elos perdidos e ancestrais. Um dos mais famosos ficou conhecido como Homem de Piltdown, uma notória fraude do começo do século XX, formada por fragmentos de um crânio e de uma mandíbula recuperados de uma mina de cascalho em Piltdown, no condado inglês de Sussex - era um crânio de Homo sapiens moderno fundido à mandíbula de um orangotango, proposto à época de sua "descoberta" como o elo perdido entre esses dois grupos de primatas. Desde a proposição da teoria da evolução por meio da seleção natural por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), no século XIX, abriu-se a temporada de caça aos elos perdidos. Por que, então, criticar o uso desse termo? O que ele traz de problemático?

Costuma-se dizer que uma hipótese é científica se ela pode ser falseada ou pelo menos se ela está aberta a questionamentos, feitos com base em outras evidências observacionais ou hipóteses alternativas. Imputar o status de ancestral ou elo perdido a qualquer grupo biológico, seja ele fóssil ou recente, passa longe da boa ciência. O biólogo Edward Wilson (1929- ) diz em sua autobiografia que devem ter existido cerca de um bilhão de espécies de insetos desde o aparecimento do grupo, há mais de 350 milhões de anos. Desses, apenas uma ínfima parte se fossilizou. Como podemos ter certeza que um fóssil encontrado é de fato uma forma de transição entre um grupo antigo e um grupo recente? Não podemos! Não somos capazes de dizer se esse fóssil foi o ancestral de qualquer grupo reconhecido atualmente uma vez que, para cada espécie encontrada hoje no planeta, devem ter existido ao menos 100 outras que foram extintas sem deixar marcas da sua passagem. Toda inferência a respeito que qual teria sido o ancestral de um grupo é pouco mais que um palpite – a sistemática filogenética de Hennig incorpora essa impossibilidade ao definir que os ancestrais comuns dos grupos monofiléticos são sempre hipotéticos, correspondendo à construções teóricas sobre que características devem ter estado presentes no ancestral de fato do grupo sob análise.

A idéia de que fósseis devem ser tratados de forma especial quando comparados com organismos recentes começou a se tornar disseminada a partir de meados dos anos 1930, com a teoria sintética da evolução, tornada célebre por figuras como Ernst Mayr (1904-2005), Theodozius Dobzhansky (1900-1975) e George Gaylord Simpson (1902-1984). Esse último, um paleontólogo, acreditava que os fósseis seriam "janelas para o passado" e que somente a partir deles poderíamos compreender a evolução das espécies e os padrões de relações de parentesco. Grupos extintos mostrariam a partir de onde as espécies evoluíram. Dessa forma, um fóssil como o Archaeopteryx litographica, uma ave do Jurássico extinta há 150 milhões de anos, foi tomado como sendo o elo perdido entre os répteis e as aves e o ancestral dessas últimas. Os exemplos são abundantes na literatura técnica. Para ficarmos apenas em duas grandes descobertas dos últimos anos: em 2008, o Gerobatrachus hottoni foi chamado de elo perdido na evolução das rãs; em maio de 2009, foi descrito o Darwinius masillae, rapidamente tratado pela mídia como o elo perdido que explicaria a transição entre primatas e o homem (tratamento dado inclusive pela prestigiada revista de divulgação Scientific American).

A partir da publicação do Origem das espécies de Darwin, em 1859, a idéia da "cadeia do ser", que remonta aos trabalhos do filósofo grego Aristóteles, foi seriamente questionada. A melhor representação para a evolução é uma árvore ramificada, não um conjunto de organismos conectados entre si como elos em uma corrente – como não existem os tais elos, não precisamos fazer esforço algum para tentar encontrá-los! A evolução é mais complexa que uma seqüência de espécies organizada com base em um pretenso grau de aumento de complexidade. Os intermediários são TODOS os ramos da árvore da vida posicionados entre quaisquer dois grupos escolhidos. Dessa forma, não há apenas UM determinado elo: todas as espécies que fazem parte da hierarquia natural resultante do processo evolutivo são elos.

Basta um pouco de lógica e bom senso para se perceber que a a busca por pretensos “organismos-chave” para a evolução perde o sentido quando vista sob o prisma dos métodos filogenéticos de reconstrução das árvores evolutivas. Como a biologia faz pouco sentido a não ser à luz de filogenias, são elas que nos mostram os padrões de ramificação que fornecem o arcabouço para estudos sobre processos e mecanismos de evolução. Não há menor necessidade, nesse contexto, de apontar um ou outro organismo como sendo o ancestral de qualquer grupo, uma vez que, como resultado de uma análise filogenética, podemos sugerir como devem ter sido esses ancestrais, mesmo que não tenhamos qualquer fóssil dos grupos estudados. Há ferramentas que nos permitem postular até mesmo quais genes estavam presentes nesses ancestrais (a biologia evolutiva do desenvolvimento ou evo-devo é uma das áreas que têm fornecido impressionantes reconstruções sobre a evolução dos genes de vários grupos animais).

Diz-se que uma ciência está madura quando conceitos “primitivos” são substituídos por outros mais refinados e com maior estruturação filosófica. O abandono de concepções incorretas como a de fósseis como ancestrais e elos perdidos, arraigada à uma concepção ortodoxa da evolução, é indicativo de que a biologia evolutiva deixou de ser uma mistura de “arte e ciência”, como proferiu G.G.Simpson nos anos 1960. Ela não pode se basear na autoridade de um seleto grupo de pesquisadores sobre determinados temas mas tem que se esforçar cada vez mais na busca por hipóteses robustas, suportadas por evidências observacionais e empíricas, com grande poder explanatório, independentes do seu autor.