segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O hipopótamo de Tahl

Certa vez, em uma entrevista, perguntaram ao enxadrista russo Mikhail Tahl se ele pensava em algo além do xadrez quando se encontrava sentado ao tabuleiro. “Certamente”, disse. E citou um exemplo: em um dos muitos campeonatos patrocinados pelo governo da ex-URSS, Tahl encontrava-se em uma posição delicada na partida. Seu primeiro impulso foi sacrificar um dos cavalos, apesar de desconfiar da própria variante. “Comecei a calcular e me horrorizei com a idéia de que o sacrifício dera errado”. Segundo Tahl, as idéias começaram a se amontoar em sua cabeça. Uma torrente caótica de possibilidades, às vezes sem nenhuma relação entre si, crescia sem parar de maneira monstruosa. Nesse momento, o jogador diz que se recordou de uma célebre poesia infantil soviética:

Oh, como é difícil o trabalho
De arrancar um hipopótamo do pântano!

“Não conseguiria explicar porque esse hipopótamo se meteu no tabuleiro, mas a verdade é que, enquanto os espectadores achavam que eu estava analisando as jogadas, eu pensava em como diabos poderia arrancar um hipopótamo do pântano”. Olhando para as peças, Tahl imaginava alavancas, arreios e helicópteros com escadas de corda. Depois de inúmeras tentativas, sem encontrar nenhum método aceitável de retirar o gigantesco artiodátilo do meio da lama, ele desistiu do seu experimento mental e pensou, com amargura “Então, que se afogue!”.

Mikhail Tahl (1936-1992) foi um dos maiores jogadores de xadrez que o mundo conheceu. Aprendeu a mexer os cavalos e torres aos 8 anos de idade e, aos 20, era pela primeira vez campeão soviético. As 23, sagrou-se campeão mundial, após derrotar mestres como Vasily Smyslov, Paul Keres e Bobby Fischer. De fato, Tahl é uma das unanimidades históricas das 64 casas, comparado em genialidade, criatividade e excentricidade aos também unânimes Paul Charles Morphy (sim, meu nome é uma homenagem a ele) e o já citado Fischer. Conhecido como o “mago de Riga” e dono de uma língua ferina, quando perguntado sobre seu estilo agressivo de jogo, Tahl respondeu: “Há três tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”. Como a maioria dos grandes campeões do esporte, Tahl confiava acima de tudo na sua própria capacidade de controlar uma situação surgida no tabuleiro de xadrez, contornando as dificuldades com maestria a fim de chegar a um desfecho favorável.



Mas, por que falar de Tahl? O que as atitudes do enxadrista têm a acrescentar para uma análise dos rumos da ciência e das suas particularidades?

Os maneirismos dos grandes jogadores de xadrez revelam muito sobre o que se pode esperar do comportamento intrínseco ao mundo científico e à divulgação que se faz dele. Diferentemente do jogo dos reis, a ciência nem sempre ganha com a excessiva autoconfiança dos seus praticantes – que por vezes escondem (mal) uma sede por reconhecimento midiático e celebridade instantânea. A complexidade do mundo natural é bem maior que o número de variantes possíveis em uma partida de xadrez, e não pode ser mensurada em uma bancada de laboratório. Aos cientistas cabem responsabilidades que fogem ao determinismo de suas fórmulas e protocolos de trabalho.

Parte dos cientistas acredita cegamente nos resultados de suas pesquisas e no seu absoluto controle sobre elas. Alguns o fazem por ingenuidade, outros por incompetência, alguns parecem nem mesmo se importar com os possíveis desdobramentos, futuros ou imediatos, das suas atitudes. Aliada à insensatez de parte dos pesquisadores, vem a grande mídia e as muitas ferramentas de popularização das ciências, que divulgam com desmedido entusiasmo os deslumbramentos científicos e pouco se prestam à consulta de fontes fidedignas ou segundas opiniões. Os delírios do projeto Genoma, a utilização de células-tronco para pôr um fim às doenças que afligem o homem, os alimentos transgênicos: é longa a lista de áreas promissoras da biologia alardeadas como furos jornalísticos. As possíveis e prováveis conseqüências desses estudos, seus pormenores e idiossincrasias, as dificuldades surgidas e os falsos positivos geralmente ficam fora das primeiras páginas e dos pronunciamentos em horário nobre. Assim, concepções errôneas são propagadas, fornecendo combustível para intermináveis questionamentos ocos.

É certo que o conhecimento científico deve ser levado ao grande público - a ciência é o escudo contra o obscurantismo, um facho de luz na escuridão de um mundo assombrado por demônios, na metáfora do astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan. Entretanto, como qualquer atividade humana, ela tem sua própria sociologia, seus conflitos de interesse e contradições insolúveis que nunca sobem ao palco e que, quando muito, apenas se transformam em anedotas biográficas de livros nunca lidos. Como em um dramalhão televisivo, os bastidores do mundo científico escondem guerras de ego, brigas, vaidade, traições e cobiça. A realidade da academia não destoa do mundo fora dela. Afinal, como diz o policial Alex Murphy, ao final de Robocop II, "somos todos humanos".

Grandes mentes e grandes projetos muitas vezes rendem-se a grandes verbas oferecidas por grandes multinacionais. Organizam-se verdadeiras operações de guerra, com táticas publicitárias ferozes e lavagem de cérebros, para cooptar os corações e mentes do público e de quem quer que interfira com posições contrárias. Para os que insistem no embate resta o ostracismo ou o monólogo.

O projeto Genoma humano, por exemplo, por muitos considerado a maior realização científica do século XX, a mais extraordinária aventura da ciência na atualidade, a busca pelo verdadeiro cálice sagrado, na verdade é apenas o reconhecimento das bases nucleotídicas que compõem o material genético do Homo sapiens. Um esforço extraordinário mas distante das promessas feitas sobre ele. Em qualquer organismo vivo conhecido, o DNA é composto por quatro tipos de unidades básicas, os chamados nucleotídeos: adenina, guanina, timina e citosina (respectivamente, A, C, T e G). A dupla-hélice do DNA corresponde a um código criptográfico com quatro variáveis que podem ser aglutinadas em infinitas combinações de mensagens. O que se fez até o momento no projeto Genoma foi reconhecer como estão amontoados os nucleotídeos no DNA da nossa espécie. É como conhecer as letras impressas nas páginas de um imenso livro sem saber o que elas significam juntas ou em que língua foram escritas. O seqüenciamento dos nucleotídeos é a etapa inicial de uma empreitada mais ampla, que visa ao conhecimento das expressões fenotípicas dos genes, das relações entre eles e da importância dos fatores internos e externos (isto é, “ambientais”) na determinação das características dos organismos vivos. Há ainda muito trabalho a ser feito. Muitos cientistas, entretanto, são céticos a respeito das possíveis conseqüências científicas e das reais intenções de empreendimentos desse porte. O eminente geneticista Richard Lewontin, professor Alexander Agassiz de zoologia e biologia da Universidade de Harvard, vê no projeto Genoma o esforço lobista de organizações voltadas mais para atividades financeiras e administrativas do que para a pesquisa básica em busca do conhecimento sobre o mundo natural. O futuro do Genoma, da clonagem e de outras áreas da biologia molecular não pode ser desvinculado de interesses comerciais.

As discussões acerca do papel do homem no aumento global de temperatura constituem outro exemplo claro de desinformação, interesses econômicos subjacentes e manipulação da audiência pela mídia e pelas empresas patrocinadoras. Há dinheiro envolvido em ambos os lados - não existem vilões e mocinhos nessa história. Pode parecer uma teoria conspiratória porém ao grande público sobram os ditos imperiosos das sumidades que se presumem titereiros debruçados sobre as cordas e o destino de suas criações, mas que, no íntimo, estão vislumbrando como arrancar o hipopótamo de ouro do meio do lamaçal.

A ciência busca aproximar-se da verdade, apesar dela não ser diretamente reconhecível por nenhum método científico. É essa a razão do seu distanciamento dos dogmatismos religiosos e das crenças cegas. Aos pesquisadores, cabe reconsiderar suas percepções de grandeza e reconhecer que o poder e o controle em suas mãos é limitado. Suas verdades são transientes, visto que hipotéticas e baseadas nas evidências disponíveis. Não há como dominar em um laboratório todas as variáveis das equações da natureza, como Tahl fazia com seus peões, cavalos e torres, e essa impossibilidade precisa ser considerada também pelo público não especializado como parte do jogo científico. Assim, a população pode cobrar a verdade por trás das promessas de tantos admiráveis mundos novos que aparecem a cada dia.