segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Gould, ultra-Darwinismo e falsas medidas



O darwinismo, como um conjunto de idéias, é amplo o suficiente e definido de uma forma tão variada que inclui uma abundância de verdades e pecados.
S.J.Gould em “Is a new and general theory of evolution emerging?” (1980, p.119)

Um dos meus heróis intelectuais é o paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002). Ele foi um dos maiores divulgadores do evolucionismo na segunda metade do século XX, árduo defensor de uma visão materialista do mundo biológico, calcada nos trabalhos de Charles Darwin e dos evolucionistas que vieram depois dele (a despeito de sua posição respeitosa frente às religiões do mundo). Gould não se afiliava totalmente à tradição ortodoxa da teoria sintética da evolução, representada por luminares como Ernst Mayr (1904-2005), Theodosius Dobzhansky (1900-1975) e George G. Simpson (1902-1984), pois dava extraordinário peso ao papel do acaso na evolução da vida. Para ele, eventos não previsíveis como extinções em massa teriam importância quase tão grande para a evolução quanto a seleção natural de variedades pré-existentes, tida como o principal processo evolutivo responsável pela geração de diversidade biológica.

O primeiro artigo que li de S.J. Gould intitulava-se “Dinomania”. Originalmente publicado na The New York Review of Books de 12 de agosto de 1993, esse texto foi traduzido para o português pelo jornal Estado de São Paulo no mesmo ano seguinte e publicado no Caderno Especial dos dias 19 e 20 de setembro (ainda tenho os jornais amarelados nos meus arquivos). A prosa gouldiana me impressionou muito. Seu estilo elegante parecia algo a ser tomado como referência para um trabalho futuro. E foi a partir daí que comecei a delinear minha carreira e perceber que eu trabalharia com algum aspecto das ciências naturais. Esse artigo foi republicado na sétima coletânea de ensaios de Gould, “Dinossauro no palheiro”, originalmente lançada em 1995 sob o nome “Dinosaur in a Haystack” e lançada no Brasil há mais de uma década.

Apesar de ser uma influência constantemente presente na visão de mundo de boa parte dos evolucionistas e de ter um dos textos mais saborosos – senão o mais saboroso – entre todos os divulgadores científicos, S.J. Gould cometeu muitas falhas durante a sua carreira, foi intransigente, quase leviano, e um tanto personalista. Chegou a dedicar mais da metade de um dos seus livros (“Full House: the spread of excellence from Plato to Darwin”, de 1996, aqui traduzido em 2001 como “Lance de Dados”), que sintetizaria a história do pensamento evolutivo de Platão à Darwin, à análise de estatísticas de beisebol, um esporte que pouco diz fora do EUA e adjacências (com exceção talvez do Japão, Cuba e Venezuela). Por mais que as idéias de Gould sejam interessantes a esse respeito, é difícil chegar ao fim das suas 250 páginas sem um misto de desconforto e sensação de tempo perdido. O ensaio Chauvinismo humano e progresso evolutivo do livro “Capelão do diabo”, de Richard Dawkins (2003), é um comentário irônico sobre essa obra menor de Gould.


Outro ponto considerado por muitos como falho na carreira de S.J. Gould foi seu feroz ataque ao darwinismo a partir do final dos anos 1970 até quase meados da década de 1980. Juntamente com seu colega paleontólogo Niles Eldredge, Gould propôs a hipótese do equilíbrio pontuado. Em linhas gerais, eles contrapunham à concepção de processo evolutivo contínuo e gradual dos teóricos sintéticos da evolução a idéia de que os eventos de especiação, i.e., aparecimento de novas espécies, ocorreriam em curtos períodos de tempo geológico, seguidos de longos períodos de estase, com pouquíssimas alterações perceptíveis. Gould chegou a proferir que o darwinismo estava morto em um trabalho publicado em 1980 na revista Paleobiology. Essa demonstração de pretensão e arrogância obviamente não foi bem vista pela comunidade acadêmica, o que dificultou a discussão isenta sobre processos alternativos ao gradualismo darwiniano. Atualmente, há correntes que interpretam o equilíbrio pontuado como um gradualismo ocorrendo em curtos intervalos de tempo, seguidos por períodos longos em que as modificações se acumulariam, mas não seriam agraciadas com explosões de diversidade.

Recentemente, em um artigo publicado em junho de 2011 na revista PLoS Biology por Jason Lewis e colaboradores, Gould foi acusado de falsificar dados de medidas de crânios apresentados originalmente pelo físico americano Samuel Morton no século XIX. Em 1978, na revista Science, e posteriormente no seu livro “A falsa medida do homem” (de 1981), Gould teria fraudado de forma deliberada algumas das medidas feitas por Morton para corroborar a sua hipótese de que os resultados deste seriam enviesados por conta de preconceito – para Morton, haveria uma relação direta entre o tamanho do cérebro e a inteligência, com os Caucasianos assumindo uma posição privilegiada nestes quesitos. Por irônico que pareça, a tese de Gould aplica-se ao próprio trabalho em que ele a descreve, revelando como a visão de mundo de um cientista pode influenciar nas observações, experimentos e na apresentação das suas idéias...

O trabalho de Lewis e equipe vem causando controvérsia na comunidade acadêmica e reações exaltadas, como a do blogueiro e professor associado de Antropologia da Universidade de Wisconsin, John Hawks, que taxa Gould de cometer deslealdade consciente (para dizer o mínimo). Esse pode não ser um fato isolado na obra do evolucionista, mas me parece exagero taxar Gould de má-fé em toda sua obra, dadas as suas sérias contribuições ao debate das ciências naturais.

No final dos anos 1980, o discurso de Gould perdeu muito do seu caráter corrosivo, o que, em conjunto com o sucesso de seus livros e a popularização da paleontologia através de filmes como Jurassic Park (que foi o mote do ensaio “Dinomania” supracitado), transformaram-no em um ícone pop – Gould inclusive fez uma aparição no desenho Simpsons, no episódio “Lisa, a cética”, em que a filha mais velha de Homer encontra um esqueleto que lembra um anjo, que é testado pelo paleontólogo (os resultados são inconclusivos!). A massificação do trabalho de Gould não significou o fim das controvérsias e polêmicas: poucos meses depois da sua participação na série animada, ele se viu em meio a uma discussão com autores do quilate de psicólogo evolucionista Daniel Dennet (autor de “A perigosa idéia de Darwin”) e Dawkins, acerca da sua crítica exacerbada ao que ele chamou de fundamentalismo darwinista, representado por aqueles que consideravam que TODA a evolução poderia se resumir em adaptação via seleção natural.

Desde meados do século XX, após a bem sucedida Síntese da Teoria Evolutiva, existe uma tendência generalizada dos biólogos enxergarem na seleção natural o processo responsável por toda a diversidade e disparidade orgânica existente no planeta. Esse conceito, que praticamente qualquer pessoa letrada nas bases das ciências biológicas conecta à figura de Charles Darwin, é de fato central na teoria da evolução mas não dá conta de todas as alternativas necessárias para a reconstrução de cenário evolutivos confiáveis. Gould chama essa “fé” na seleção natural de ‘programa adaptacionista’ – sua talvez mais famosa incursão no tema, em colaboração com o também biólogo evolucionista Richard Lewontin, foi publicada em 1979 com o título The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: a critique of the adaptationist programme e se transformou em um clássico da literatura evolucionista. Nesse artigo, Gould & Lewontin (1979, p. 83) apresentam o tema nos seguintes termos:
Nós gostaríamos de questionar um hábito de pensamento profundamente enraizado entre os estudantes de evolução. Nós os chamamos de programa adaptacionista ou paradigma Panglossiano. Ele se fundamenta na noção popularizada por A.R. Wallace e A. Weismann (...) em fins do século XIX: a quase onipotência da seleção natural em forjar o design orgânico e talhar o melhor entre os mundos possíveis. Esse programa considera a seleção natural tão poderosa e as restrições sobre ela tão pequenas que a produção direta de adaptação através de sua operação se torna a causa primária de praticamente todas as formas orgânicas, funções e comportamentos.
Para Gould & Lewontin, estudos sob a égide do programa adaptacionista dividem os organismos em atributos, que são explicados como estruturas desenhadas pela seleção natural de forma ótima para desempenhar suas funções; caso essa otimização falhe, os organismos são interpretados como melhor resultado possível dada a existência de demandas competidoras. A despeito da admissão de alternativas à seleção natural, a tendência é a de separar os organismos em partes, contando histórias adaptativas particulares para cada uma delas – se um argumento do tipo falhar, tenta-se outro.

Niles Eldredge, em seu livro “Reinventing Darwin”, de 1995, chama os defensores do programa adaptacionista de ultra-Darwinistas. Para ele (Eldredge, 1995, p. 4):
Os ultra-Darwinistas adotaram a posição de que a seleção natural é o processo evolutivo central. Mas, ao fazer isso, eles alteraram significativamente o conceito básico da seleção natural. Em suma, ultra-Darwinistas veem a seleção natural como competição (entre membros da mesma espécie) para o sucesso reprodutivo. Mas isso não é tudo. Ultra-Darwinistas veem toda competição, inclusive competição por alimento e outros recursos econômicos, como fundamentalmente um epifenômeno da competição real: competição por sucesso reprodutivo.

Eldredge, na sequência, cita Richard Dawkins como o ultra-Darwinista por excelência, lembrando que a tese principal do “Gene Egoísta” de Dawkins (1976) é que são os genes, e não os organismos, que estão em uma competição titânica e constante para deixar cópias de si mesmos para as gerações futuras.

Segundo Eldredge, Gould e Lewontin, o ultra-Darwinismo fere o espírito pluralista de Darwin. Eldredge (1995) vê a seleção natural como um filtro: os organismos competem por recursos; como efeito de tal competição, os mais eficientes terão maior chance de sucesso reprodutivo e a sua prole tenderá a herdar a informação genética responsável pelo sucesso dos seus pais. Gould & Lewontin (1979) apresentam uma série de alternativas ao selecionismo estrito dos ultra-darwinistas, a saber:

1) Evolução sem adaptação e sem seleção natural: é a mudança da frequência de alelos através da deriva genética aleatória, que pode levar à diferenciação genética de populações e à fixação de alelos em determinados locus gênicos na completa ausência de qualquer força seletiva.

2) Ausência de adaptação e seleção na estrutura sob análise: a evolução da forma de uma estrutura pode estar correlacionada à seleção em outra estrutura, uma vez que os organismos são todos integrados, não passíveis de decomposição em porções independentes otimizadas. Há inúmeros exemplos da biologia evolutiva do desenvolvimento que se encaixam aqui.

3) Desacoplamento de seleção e adaptação: para Gould & Lewontin (1979), há seleção sem adaptação e adaptação sem seleção. No primeiro caso, citam um exemplo hipotético (p. 90):
Uma mutação que dobre a fecundidade dos indivíduos irá se espalhar rapidamente pela população. Se não houver mudança na eficiência da utilização de recursos, os indivíduos não terão prole maior que antes, mas simplesmente botarão duas vezes mais ovos, o excesso morrendo devido à limitação de recursos. Em que sentido estão os indivíduos ou a população como um todo melhor adaptadas que antes? De fato, se um predador de formas imaturas estiver presente agora que os imaturos são abundantes, o tamanho da população vai diminuir como consequência, apesar da seleção natural sempre favorecer indivíduos com maior fecundidade.
No caso de adaptação sem seleção, eles citam os casos de modificações nos organismos que são puramente fenotípicas, notando que existem diferentes interpretações do que adaptação significa – adaptações fisiológicas, como a resposta do sistema circulatório às grandes altitudes; adaptações culturais, herdadas pelo aprendizado; e adaptação Darwiniana via mecanismo de seleção a partir de variação genética. “A mera existência de uma boa adequação entre organismo e ambiente é insuficiente para inferir a ação da seleção natural” (Gould & Lewontin, 1979, p. 91).

4) Adaptação e seleção mas sem base seletiva para diferenças entre adaptações: é a questão dos múltiplos picos adaptativos. Muitas vezes, espécies de organismos relacionados chegam a diferentes soluções para os mesmos problemas. Assim, é impossível dizer que uma solução é melhor que a outra.

A conclusão de Gould & Lewontin (1979, p. 95) é uma defesa à pluralidade no estudo da evolução:
Sentimos que as recompensas potenciais de abandonar o foco exclusivo no programa adaptacionista são de fato grandes (...) Damos as boas vindas à riqueza que a abordagem pluralista, tão afeita ao espírito de Darwin, pode proporcionar. Sob o programa adaptacionista, os grandes temas históricos da morfologia do desenvolvimento e Bauplan [termo em alemão que significa plano estrutural] foram largamente abandonados; se a seleção pode quebrar qualquer correlação e otimizar as partes separadamente, então a integração de um organismo conta muita pouco. Muito frequentemente, o programa adaptacionista nos dá uma biologia evolutiva de partes e genes, mas não de organismos. Ele assume que todas as transições podem ocorrer passo a passo e subestima a importância de blocos de desenvolvimento integrados e restrições importantes da história e arquitetura. Uma visão pluralista pode colocar os organismos de volta, ainda que com toda a sua recalcitrante ainda que obstinada complexidade, de volta à teoria evolutiva.

Uma vez que o programa adaptacionista não é suficiente para explicar a evolução, como Gould, Lewontin, Eldredge (e muitos outros antes e depois deles) defendem, certamente não tem sentido limitar a definição de vida apenas aquilo que, independentemente do lugar que ocupa no universo, passa por um processo natural de seleção, no sentido Darwiniano do termo.

Gould nos mostra que, para entendermos a história da vida no planeta Terra, precisamos transcender o ultra-Darwinismo (como o próprio Darwin apontava, já no século XIX). Se assim for no nosso quintal, é muito provável que também o seja no restante do cosmo.



Referências sugeridas:
Dawkins, R. 2007 [1976] O gene egoísta. Companhia das Letras, São Paulo.
Eldredge, N. 1995. Reinventing Darwin: the great debate at the High Table of Evolutionary Theory. John Wiley & Sons, New York.
Gould, S.J. 1980. Is a new and general theory of evolution emerging? Paleobiology, 6 (1), 119-130.
Gould, S.J. 1997 [1995]. Dinossauro no palheiro: reflexões sobre história natural. Companhia das Letras, São Paulo.
Gould, S.J. & Lewontin, R.C. 1979. The Spandrels of San Marco and the Panglossian paradigm: a critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of London B, 205, 581–598.
Lewis, J.E., DeGusta, D., Meyer, M.R., Monge, J.M., Mann, A.E. & Holloway, R.L. 2011. The Mismeasure of Science: Stephen Jay Gould versus Samuel George Morton on Skulls and Bias. PLoS Biol, 9(6): e1001071. doi:10.1371/journal.pbio.1001071.