sexta-feira, 18 de novembro de 2011

As três flechas do jovem samurai

Abertura e conectividade podem, no final das contas, ser mais valiosas para a inovação que mecanismos puramente competitivos
Steven Johnson em De onde vêm as boas idéias (2010)
A vida é uma extensão do ser para a geração seguinte, para a espécie seguinte. É a engenhosidade de tirar o máximo proveito da contingência
Lynn Margulis & Dorion Sagan em What is life? (1992)

Na primeira seqüência de Ran, obra-prima do diretor japonês Akira Kurosawa livremente inspirada no Rei Lear de Shakespeare, o lorde samurai Hidetora, cansado de guerras e conquistas, em reunião com seus principais comandados, decide delegar a liderança ao seu primogênito, Taro. Sob o olhar atônito dos assessores e do bobo da corte, Hidetora faz a partilha do império, incumbindo a Jiro e Saburo, seus dois outros filhos, a tarefa de escudar o irmão mais velho. Para demonstrar a necessidade da colaboração, o velho lorde dá a cada um deles uma flecha de madeira e pede que tentem quebrá-la, o que fazem de pronto. Hidetora, então, agrupa três flechas em um único feixe e repete o pedido. O conjunto resiste às investidas dos irmãos, corroborando a tese do pai, até que o mais jovem, Saburo, consegue quebrar as flechas apoiando-as no joelho. O comportamento cooperativo funciona mas não é inquebrantável: a competição sempre surgirá, de uma ou outra forma.

Assim como no filme de Kurosawa, também a evolução das espécies é marcada por esses dois extremos. No ambiente natural, os organismos estão à procura de alimento, água, território, parceiros reprodutivos. Diferentemente do preconizado pelo senso comum e pela biologia neodarwinista ortodoxa, que vê os organismos na natureza engalfinhados em sanguinolentas batalhas pela sobrevivência, nas quais apenas os fortes obtêm sucesso, a competição acontece em diferentes níveis e é por vezes sutil e não “declarada”. Desde os naturalistas britânicos Charles Darwin e Alfred Wallace, no século XIX, sabe-se que as populações naturais têm altas taxas de variação e que, em resposta a pressões seletivas, alguns grupos podem tornar-se mais representativos em razão de portarem características que os diferenciem e que sejam vantajosas à medida que garantam a manutenção da sua prole. Tais grupos são selecionados positivamente, o que significa a continuidade de uma parte considerável de seu patrimônio genético nas gerações subseqüentes. É uma falácia biológica afirmar que são os fortes os melhores competidores, uma vez que força não garante sobrevivência.

Para a sobrevivência diferencial, não se pode desconsiderar o valor da cooperação para a evolução. Associações entre organismos são comuns e amplamente difundidas na biologia. A cooperação aparece em vertebrados, artrópodes, cnidários e mesmo em organismos unicelulares, como as colônias do protista Choanoflagellata, espécie evolutivamente aparentada aos animais. Formigas, abelhas e cupins têm estrutura social com divisão de castas e de trabalho no interior das suas colônias – em geral, os soldados cuidam da defesa do ninho e as operárias da limpeza dos túneis e da obtenção de alimento, ficando a reprodução destinada somente à rainha e aos machos reprodutores (utiliza-se o termo operária apenas no caso dos himenópteros, pois todas são fêmeas. Para cupins, usa-se operários, uma vez que a casta é composta tanto por fêmeas quanto por machos). Entre os cnidários, o grupo formado pelas águas-vivas, pólipos e corais, a caravela portuguesa é um exemplo excepcional de associação. O organismo observado sobre as águas como um conjunto transparente de bexigas gelatinosas é de fato formado por milhares de indivíduos diferentes, muito modificados, com funções específicas relacionadas à captura de alimento, movimentação da colônia, defesa e reprodução.

O exemplo dos Choanoflagellata é mais surpreendente, pois nos dá pistas de como se deu a formação de organismos multicelulares e como foram os primeiros passos da evolução anima. Essas colônias são as mais próximas, em termos filogenéticos dos metazoários, e apresentam divisão de trabalho entre os seus constituintes. As algas verdes do gênero Volvox também têm estrutura colonial. As células individuais de uma colônia de Volvox ficam encrustadas na superfície gelatinosa de uma esfera oca que pode atingir de 0.5 a 1 mm de diâmetro. Cada uma delas tem um núcleo, um par de flagelos e um único cloroplasto grande. As células adjacentes conectam-se entre si através de pontes citoplasmáticas. Nessa esfera oca coberta de indivíduos dispostos lado a lado, apenas alguns são responsáveis pela reprodução. Associações biológicas são muito antigas, remontando ao aparecimento dos eucariotos – o grupo de organismos com núcleo celular definido e delimitado por uma membrana, no interior do qual se encontra o material genético –, há quase dois bilhões de anos.

É certo que não apenas a opinião pública tende a descartar a cooperação biológica quando se trata de descrever a história da vida. Muitos entre os evolucionistas modernos defendem que a evolução se dá através de um selecionismo ferrenho. Em alguns dos clássicos de Richard Dawkins, como “O gene egoísta” (1976), “O relojoeiro cego” (1986) e “Escalando o monte improvável” (1996), esse raciocínio darwiniano extremado é recorrente. Para os ultra-darwinistas, o processo evolutivo dá-se através da seleção natural de variedades pré-existentes, surgidas a partir de mutações genéticas aleatórias e recombinações cromossômicas (crossing-over, trocas entre pedaços de DNA em cromossomos homólogos durante a formação das células reprodutivas, que acabam por aumentar a variedade do produto final, os gametas). Em linhas gerais, essas modificações seriam selecionadas caso promovessem algum tipo de vantagem adaptativa ao portador, garantindo a manutenção dos seus genes na descendência. Entretanto, o que se ignora nesse caso é que a sinergia (do grego synergos, trabalhar junto) constitui um fenômeno essencial para a evolução. A vida no planeta não teria o mesmo perfil, e talvez nem mesmo existisse nos moldes conhecidos, se a cooperação entre organismos não fosse mais do que uma simples nota ao pé da página da evolução biológica.

Partindo do pressuposto de que a sinergia está disseminada no ambiente natural, o biólogo russo Konstantin Mereschkovsky (1855-1921) criou o termo simbiogênese, na tentativa de explicar a origem dos cloroplastos a partir de algas verde-azuladas (cianobactérias). Em termos gerais, a simbiogênese refere-se à formação de novas formas de vida, novos órgãos ou novas organelas celulares através da associação permanente com formas de vida preestabelecidas e, conseqüentemente, mais antigas. Não se sabe exatamente como acontece o compartilhamento ou a influência entre o material genético dos componentes dessa associação, mas a simbiogênese é um fato: corais têm simbiontes dinoflagelados em seus tecidos, lulas associam-se a bactérias luminosas, fungos unem-se a algas verdes ou cianobactérias, originando os líquens, entre outros milhares de exemplos.

Em 1966, a bióloga Lynn Margulis (1938-2011), que viria ao Brasil em dezembro para a São Paulo Advanced School of Astrobiology (mas que, infelizmente, faleceu no dia 22 de novembro, aos 73 anos), retomou as idéias de Mereschkovsky para a sua proposição sobre como as bactérias fundiram-se diversas vezes durante a evolução, originando espécies diferentes através de simbiogênese. Ela escreveu um artigo sobre a origem das células eucarióticas – trabalho que foi recusado inúmeras vezes por revistas especializadas, até finalmente ser publicado. Para Margulis, muitas das características que organismos complexos apresentam derivam da junção de dois ou mais microorganismos diferentes que passaram a viver uma vida comum através da cooperação. De uma forma bem simplificada, podemos dizer que as organelas celulares que hoje conhecemos como mitocôndrias e cloroplastos foram, um dia, organismos bacterianos livres. Essas bactérias, precursoras da respiração celular e da fotossíntese, devem ter sido fagocitadas por outras, mas não digeridas. Provavelmente as enzimas digestórias não funcionaram a contento, ou nem mesmo começaram a agir, e o “alimento” foi incorporado, sem maiores danos, ao ambiente interno das bactérias ingestoras.

Uma série de evidências ajuda a corroborar a teoria de Margulis. Tanto mitocôndrias quanto cloroplastos têm material genético próprio, fora do núcleo da célula, suas paredes e membranas internas assemelham-se às bicamadas fosfolipídicas da grande maioria das células conhecidas e sua forma de duplicação dá-se através do seu próprio material genético. Não obstante, há extraordinária semelhança entre o DNA dos cloroplastos e mitocôndrias com o de algumas bactérias fotossintetizantes e algumas que utilizam oxigênio na obtenção de energia. Apesar de não se ter esclarecido por definitivo como o processo aconteceu, eventos de simbiose são explicações extraordinariamente robustas para a origem de mitocôndrias e cloroplastos. Em um pólo oposto ao dos selecionistas radicais (o que não é exatamente o caso de Dawkins, vide as posições apresentadas na coletânea “O capelão do diabo”, de 2003, e em trabalhos posteriores), a contribuição de Margulis para o debate evolutivo enfatiza mais a sinergia entre as espécies do que a competição darwinista.

A hipótese da sinergia na evolução sugere que o individualismo exacerbado é uma negação da essência do ser vivo – as mitocôndrias e os cloroplastos das células eucarióticas seriam uma evidência clara para suportar tal afirmação. Tanto quanto a luta pela sobrevivência, também a cooperação é de fundamental importância para a vida desde os primórdios da evolução biológica, há aproximadamente quatro bilhões de anos. Infelizmente, aos olharmos para a janela, abrirmos os jornais ou assistirmos à qualquer noticiário da televisão, percebemos que o comportamento da espécie humana parece ignorar esse fato, gerando desequilíbrios não-naturais que afetam praticamente toda biota, do fluxo energético no planeta às nossas próprias relações sociais. 
O caminho para se compreender a evolução das espécies passa pela aceitação tanto do selecionismo de Dawkins quanto da sinergia de Margulis (e do papel do acaso, como discutido em outros momentos nesse blog, como aqui e aqui). Essa solução é coerente e lógica, como a percepção do jovem Saburo sobre o futuro do reino de seu pai. O filho do lorde samurai não estava de todo errado ao questionar o comportamento cooperativo, uma vez que ele também se insere em um contexto de competição. Algumas espécies têm condicionada a sua sobrevivência à vida cooperativa, o que não as exclui das relações competitivas no ambiente natural. Em grande parte das vezes, associações são selecionadas se conferirem um diferencial aos indivíduos, sob a forma de maiores taxas de reprodução e, conseqüentemente, maiores chances de permanência daquelas características herdáveis no correr da evolução do grupo.

Desde civilizações pré-históricas, as sociedades valorizam ao extremo a concorrência e a competição, por vezes desleal, em detrimento do comportamento cooperativo. É óbvio que, quando em conjunto, geralmente os grupos humanos agem em prol de interesses próprios, independente dos efeitos de suas atitudes no coletivo. Quanto maior o poder e a estatura social, mais se acompanha a regra tola da “lei do mais forte”, que tem pouco a ver com o processo evolutivo, por mais que tentem utilizá-lo como justificativa ou pretexto para a exploração, o racismo e o segregacionismo. Toma-se a cooperação apenas como escada imediata para a cobrança de favores futuros. 

O comportamento humano em relação ao ecossistema do qual o homem também faz parte é ainda mais individualista e estúpido, apoiado na ideia infundada de sua superioridade evolutiva. Se fomos todos criados à imagem e semelhança de um deus benevolente para conosco, e se todos os demais organismos viventes não têm esse mesmo privilégio, é correto pensar que eles foram, então, criados para nosso deleite e usufruto, uma vez que nada está mais próximo do divino do que nossa própria espécie? Por superficial que seja a análise, fica claro que essa idéia esconde um viés de ignorância desmedida. A vida na Terra é holárquica, uma grande rede de seres vivos conectados e coexistindo sem forma absoluta de controle de uns sobre os outros. Não há hierarquia alguma que alce a espécie humana ao topo. Em tempos duros como os atuais, descartar o individualismo cego e desestimular a competição que visa apenas à vitória unilateral parecem as únicas maneiras de se restabelecer o equilíbrio natural há muito perdido e de se chegar à compreensão de que somos apenas mais um dos componentes do mundo orgânico. 

Referências sugeridas: 
Dawkins, R. 1976. The selfish gene.
Dawkins, R. 1986. The blind watchmaker.
Gould, S.J. 2002. The structure of evolutionary theory.
Margulis, L. & Sagan, D. 1992. What is life?
Margulis, L. & Sagan, D. 2002. Acquiring genomes: a theory of the origin of species.