domingo, 18 de março de 2012

Breves resenhas: Caim, de José Saramago (2009)



O escritor português, prêmio Nobel de Literatura em 1998, faz uma versão literária de "Deus, um delírio", de Richard Dawkins. Caim - o irmão de Abel, do mito bíblico do Gênesis - é o personagem principal, transformado por Saramago em um Marty McFly do Velho Testamento, condenado a vagar eternamente pelo espaço e pelo tempo com uma marca na testa e munido apenas de um "Delorean" bem mais modesto (um jumento de pernas fortes).

É um romance breve, que pode ser lido como um exercício de lógica aplicada às fantasias absurdas e incongruentes da Bíblia. Saramago, no seu estilo tradicional com poucos parágrafos e nenhuma separação entre diálogo e ação, aproxima-se da oralidade espontânea em passagens bem-humoradas e absolutamente "heréticas" que podem ser lidas como um discurso anti-conformismo e anti-sectarismos cegos:
O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isca. No terceiro dia de viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes (p. 79)
Os desígnios de deus são inescrutáveis, nem nós, anjos, podemos penetrar no seu pensamento, Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar dessa contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama, Foi ele quem te deu a vida, A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto, Deus está em todo lado, Sobretudo quando manda matar, uma só criança das que morreram feitas tições em sodoma bastaria para o condenar sem remissão, mas a justiça, para deus, é uma palavra vã (...) (p. 135).
Então caim disse, Com estas dimensões e a carga que irá levar dentro, a arca [de Noé] não poderá flutuar, quando o vale começar a ser inundado não haverá impulso de água capaz de a levantar do chão, o resultado será afogarem-se todos os que lá estiverem e a esperada salvação transformar-se-á em ratoeira, Os meus cálculos não dizem isso, emendou o senhor, Os teus cálculos estão errados, um barco deve ser construído junto à água, não num vale rodeado de montanhas, a uma distância enorme do mar, quando está terminado empurra-se para a água e é o próprio mar, ou o rio, se for esse o caso, que se encarregam de o levantar, talvez não saibas que os barcos flutuam porque todo o corpo submergido num fluido experimenta um impulso vertical e para cima igual ao peso do volume do fluido desalojado (...) (p. 152).
Referência:
Saramago, José. 2009. Caim. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 172 páginas.

Crédito da fotografia:
Euler Paixão. José Saramago no lançamento mundial do romance A viagem do Elefante no SESC Pinheiros. São Paulo SP, 27/11/08.