terça-feira, 4 de setembro de 2012

Grupos monofiléticos, Bombons Paraenses e as belezas do Norte

Manaus é quente, muito quente. As temperaturas chegam sem alarde aos trinta e oito, trinta e nove graus, e a sensação térmica ainda é aumentada pela umidade superior a 90% em boa parte do ano. Entretanto, o que torna a capital amazonense um quase literal caldeirão é menos o seu clima e mais a notável diversidade humana que lá encontramos.

Estive na cidade nas duas últimas semanas de agosto, ministrando um curso de Sistemática Filogenética para a pós-graduação em Entomologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Um dos centros de excelência em pesquisa brasileiro, o INPA reúne professores e alunos de todas as regiões do país. Na minha sala de aula havia desde um mineiro de Pratápolis (!) a uma gaúcha obrigada a traduzir descrições em alemão arcaico de espécies de louva-deus, passando por um paraense ex-vocalista de uma banda cover do Kiss (!) e uma capixaba especialista em insetos aquáticos que descobriu seu talento como coiffeur picotando o cabelo dos colegas pós-graduandos que queriam economizar no cabeleireiro. Em entomologia, todos os caminhos parecem mesmo levar à Manaus...

No intervalo de uma das minhas aulas, ofereci a um grupo de alunos um drops que eu havia aberto. Disse que quem quisesse poderia se servir das balas. Um dos alunos (vamos chamá-lo aqui de Sr. Graça) virou-se para a sala e perguntou: “Alguém aí quer um bombom?”. Ouvindo isso, respondi: “Sr. Graça, isso não é um bombom. É um Halls!”. E ele: “É, professor, mas Halls é um bombom!”. Eu: “Como assim, Sr. Graça? Bombom é chocolate!”. Ele: “Não, professor. Bombom é o que vende em Bomboniere. Halls vende em Bomboniere. Portanto, Halls é um bombom!”. O ex-cover do Paul Stanley reforçou a definição do seu colega de Estado (ambos nativos do Pará) e eu fiquei por alguns instantes sem fala. Poderíamos mesmo dizer que um drops ou qualquer bala são bombons por conta de compartilharem o estabelecimento em que são vendidos? Como estávamos em uma aula de Sistemática Filogenética, achei que poderíamos discutir com alguma propriedade científica o que passei a chamar de “Problema dos Bombons paraenses”.

Segundo meus alunos, guloseimas como “Sonho de Valsa”, “Serenata do Amor”, “Halls” e “FreeGells” devem ser todos considerados bombons pelo fato de compartilharem o caráter “venda em Bombonieres”. Para mostrar como “Bombons paraenses” NÃO era um grupo-natural, ou seja, era um grupo não-monofilético, preparei uma lista de caracteres, entre intrínsecos (que seriam aqueles sujeitos aos mecanismos de herdabilidade) e extrínsecos (aqueles não sujeitos a tais mecanismos) – obviamente em tom de brincadeira porque ninguém espera que balas e chocolates tenham material genético... Escolhi atributos como presença de cacau, oleosidade, presença de farinha na composição, consistência, presença de açúcar, etc. A partir do levantamento de dez hipóteses de homologia primária, preparei uma matriz utilizando 10 táxons terminais como grupo-interno (“Sonho de valsa”, “Serenata do Amor”, “Diamante Negro”, “Hershey’s”, “Halls”, “Freegells”, “Bala de Hortelã”, “Chicletes”, “Bolacha Tipo-Wafer” e “Bolacha Tipo-Passatempo”) e um grupo-externo (“Bolachas Salgadas”). Essa matriz foi analisada em um software para análise filogenética, utilizando os mesmos parâmetros que estávamos considerando nos nossos exercícios com dados biológicos. O resultado é o que mostra a figura abaixo:
A análise feita claramente aponta para a condição não-natural do grupo “Bombons Paraenses”. Sendo assim, a adoção da hipótese filogenética da figura implicaria na restrição do grupo “Bombons” (que poderíamos chamar “Bombons stricto sensu”) apenas aquelas guloseimas caracterizadas pelo formato esférico e por compartilharem, juntamente com “Chocolates lato sensu” da presença de oleosidade. Além disso, “Bombons s.s.” apresentam cacau, caráter compartilhado não apenas com chocolates mas também com o grupo “Bolacha Recheada lato sensu”. O caráter anteriormente considerado como característica compartilhada derivada (no jargão filogenético, sinapomorfia) do grupo “Bombons Paraenses”, que seria a possibilidade da sua venda em Bombonieres, mostrou-se simplesiomórfico (que é uma condição ancestral ou plesiomórfica compartilhada por um conjunto de populações ou espécies). Assim, a análise filogenética demonstrava claramente que o caráter utilizado pelo Sr. Graça não poderia ser invocado para sustentar o monofiletismo do grupo “Bombons Paraenses”! Se fosse, também bolachas recheadas, bolachas salgadas e chicletes deveriam ser chamados de bombons, o que não faria o menor sentido. Depois de relutar um pouco – e me ameaçar com a possibilidade de uma réplica usando “um conjunto de dados muito mais robusto e não obsoleto” – o Sr. Graça aceitou a nova proposta de classificação.

A pergunta que cabe aqui é: por que a insistência na busca por grupos naturais ou monofiléticos através de análises filogenéticas?

A sistemática biológica é uma atividade humana voltada para o reconhecimento das afinidades naturais entre os organismos. Em meados do século passado, o entomólogo alemão Willi Hennig estabeleceu um método para o reconhecimento de grupos naturais como entidades históricas, isto é, classes de organismos que correspondem a linhagens evolutivas contínuas tanto espacial quanto temporalmente e não apenas ajuntamentos de espécies segundo um ou outro critério de similaridade. A sistemática filogenética de Hennig reconhecia as classificações como representações das afinidades genealógicas entre os organismos, baseando-se no conceito evolutivo da descendência com modificação a partir de um ancestral comum.

Para Hennig, um dentre todos os possíveis agrupamentos das espécies tinha que ser privilegiado: a hierarquia genealógica. Somente a partir daí poderíamos identificar na natureza quais grupos eram de fato naturais, com existência real, e quais seriam apenas construções artificiais humanas. Segundo a sistemática Hennigiana, apenas grupos monofiléticos são naturais, pois eles são os únicos que carregam a informação completa da história evolutiva de uma dada linhagem. Como evolução pode ser sintetizada como descendência com modificação no tempo a partir de um ancestral comum, é o grupo monofilético o único que corresponde ao conjunto total de descendentes de um ancestral comum, incluindo este, que compartilha as características exclusivas resultantes do processo evolutivo. Pode-se reunir quaisquer espécies em um grupo, mas apenas aquele que se mostrar monofilético reflete a realidade da evolução. É a presença das sinapomorfias, os caracteres derivados compartilhados, e não de similaridades simples, que sustenta os grupos monofiléticos.
A aceitação de grupos não-naturais (parafiléticos ou polifiléticos), que são aqueles que podem ou não conter o ancestral comum mais recente, mas não comportam todos os seus descendentes, é uma questão de arbitrariedade, apego à tradição ou inércia — como é o caso clássico da manutenção do grupo “Répteis” sem considerar as aves, apesar delas constituírem o grupo-irmão dos demais répteis terópodes. Ou, como descrito acima, do grupo “Bombons Paranenses”.

Um fato inusitado aconteceu no meu último dia em Manaus, enquanto esperava, em frente ao hotel, pelo táxi que me levaria ao aeroporto. Um menino, de uns oito ou nove anos, passou por mim com uma caixinha de drops. Ele me disse: “Tio, quer comprar um bombom?”. Quase respondi para ele que não aceitava grupos não-monofiléticos. Mas, no final, acabei comprando o “bombom” assim mesmo...


Referências

Santos, C.M.D. 2008. Os dinossauros de Hennig: sobre a importância do monofiletismo para a sistemática biológica. Scientiae Studia, 6, 179-200.
Santos, C.M.D. & Klassa, B. 2012. Despersonalizando o ensino de evolução: ênfase nos conceitos através da sistemática filogenética. Educação: Teoria e Prática, 22, 62-81.

Foto:
X-Caboquinho, lanche típico de Manaus, feito com pão francês, queijo coalho, tucumã e banana frita.

5 comentários:

Bruno Piato disse...

Acabo de ministrar uma aula exatamente sobre isso num terceiro colegial onde estou realizando minha prática de ensino. Acabei (fortuitamente) ficando com o tema evolução, já que a professora regular da classe resolveu que seria mais adequado se eu ministrasse esta matéria.
Construímos genealogias, analisamos a similaridade dos grupos, levantamos caracteres e hipóteses de homologias primárias, elaboramos uma matriz e desenhos algumas possibilidades de cladogramas. Apesar do tempo corrido (me foram designadas apenas aulas simples, ou seja, de cinquenta minutos por semana) conseguimos chegar a algumas conclusões.

Charles Morphy D. Santos disse...

Caro Bruno,
FIco feliz em saber que esse tipo de aula foi dada em um colegial! Precisamos mesmo que tal conhecimento se dissemine se quisermos incluir de verdade a evolução como eixo do ensino de Biologia.
Dê uma olhada nesse trabalho citado nas referências, que escrevi com a Bruna Klassa, porque talvez ele te ajude ou te dê alguma ideia sobre como tratar desse assunto na escola.
Abraço!

attalyafelix@gmail.com disse...

Essa foto do X-Caquinho maltratou. Saudade da culinária manauara.

Daniel Casali disse...

“Tio, quer comprar um bombom?”. Quase respondi para ele que não aceitava grupos não-monofiléticos. Mas, no final, acabei comprando o “bombom” assim mesmo...

HAhahahahahhahahahah!

Rodrigo Feitoza disse...

Falta checar a similaridade (ou "sinonimia") dos termos "bolacha" e "biscoito".