domingo, 25 de novembro de 2012

A perigosa ideia de Darwin - parte 1



A natureza mostra-nos apenas a cauda do leão. Mas eu não tenho dúvida de que o leão lá está, mesmo que ele não possa se revelar por inteiro de uma vez. Nós o vemos apenas da maneira como um piolho que mora nele o veria
Albert Einstein (1914)
Na última semana, uma das minhas alunas finalmente entregou seu trabalho de conclusão de curso (que é um dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Ciências Biológicas na universidade em que leciono). O trabalho traz uma análise histórica sobre a seleção natural e seu papel na teoria evolutiva, desde Charles Darwin (1809-1882) e Alfred R. Wallace (1823-1913) até a contemporaneidade, detendo-se nas discussões contemporâneas cada vez mais acirradas sobre alguns dos argumentos fundamentais da teoria evolutiva.

É certo que a teoria da evolução não surge com Darwin e Wallace em meados do século XIX. Ideias sobre o transformacionismo no mundo orgânico já apareciam na literatura ao menos desde o século anterior, com autores como Pierre Louis Maupertuis (1698-1759), Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788) e Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829).


Mesmo o mecanismo da seleção natural, descrito independentemente por Darwin e Wallace em dois trabalhos publicados conjuntamente em 1858 no número 3 da Journal of the Linnean Society of London sob o título “Sobre a tendência das espécies de formar variedades; e sobre a perpetuação das variedades e espécies através de meios naturais de seleção”. Autores antes deles, como William Charles Wells (em 1818) e Patrick Matthew (em 1826), tinham apresentado de forma nítida um principio análogo à seleção natural (o que foi reconhecido por Darwin no prefácio da sua obra-prima de 1859, On the origin of species). 

Segundo Darwin, a variação existiria em larga escala e estaria disponível para a ação da seleção natural, que beneficiaria os seres mais aptos na luta pela sobrevivência. As características que favoreceriam tais organismos seriam transmitidas para as futuras gerações, que teriam vantagens sobre as outras variantes. Por um processo de acumulação de variações benéficas, surgiriam organismos altamente adaptados aos seus ambientes. Wallace chegou a conclusões semelhantes de forma quase concomitante à Darwin.

A despeito da sua centralidade na obra de Darwin-Wallace, a seleção natural como mecanismo de mudança evolutiva só foi universalmente adotada pelos biólogos após a Síntese Moderna da Evolução (entre 1930 e 1950). Nos últimos cinquenta anos, hipóteses acessórias teoria sintética foram desenvolvidas. Desde o neutralismo de Motoo Kimura, que descreve mudanças nas frequências genotípicas das populações a partir de eventos aleatórios, sabe-se que é preciso incorporar outros processos além da seleção natural para explicar a evolução biológica. Atualmente, discute-se a necessidade de uma significativa extensão da teoria evolutiva no que seria chamado de Síntese Estendida da Evolução (discutida aqui nesse blog em O que Dawkins não sabia e em As três flechas do jovem samurai). Autores como Stuart Newman e Ramray Baht defendem uma nova perspectiva sobre a seleção natural, diminuindo seu papel “criativo” na evolução e tomando-a como responsável apenas pela manutenção da variação, que não seria ilimitada, pois não dependeria somente de mutação e recombinação cromossômica para existir. 

O questionamento constante em torno do papel da seleção natural na evolução orgânica evidencia sua importância como um dos principais mecanismos responsáveis pela diversificação biológica. No entanto, mesmo seus fundamentos da seleção natural permanecem desconhecidos ou pouco conhecidos por uma enorme fatia da população, apesar desta ser, como defende Daniel Dennett (1996), a maior ideia científica jamais concebida pela nossa espécie. Problemas de compreensão deste e de outros conceitos evolutivos atingem até mesmo professores de ciências e biologia, levando a um preocupante cenário de desinformação científica. Um artigo da edição de novembro da Scientific American Brasil comenta resultados de diferentes pesquisas de opinião sobre evolucionismo e criacionismo realizadas junto à população brasileira, incluindo professores de ensino fundamental e médio, e sugere um cenário futuro tenebroso para o nosso ensino de ciências (Souza et al., 2012).

Em termos gerais, o que hoje conhecemos por darwinismo corresponde ao cerne da teoria evolutiva contemporânea e foi apresentado no On the Origin of Species de Darwin (1859). O grande ornitólogo Ernst Mayr (1904-2005), em seu One long argument, de 1993 (o título do livro, assim como do blog que estão lendo, deriva de uma frase de Darwin do Origin), divide o darwinismo em cinco teorias intrinsecamente relacionadas entre si:   

I – A teoria da evolução em si: É a defesa de que o mundo natural não é constante e estático e sim o produto contínuo de mudanças dinâmicas ocorrendo durante longos intervalos. Como citado acima, essa ideia não é original de Darwin ou Wallace, já estando presente, de alguma forma, nas obras de Maupertuis, Buffon, Lamarck, Robert Chambers, entre outros. 

II – Evolução por ancestralidade comum: Todos os organismos procedem de um ancestral comum por um processo contínuo de ramificação. É uma hipótese revolucionária porque reconhece que a totalidade do mundo orgânico – inclusive nossa espécie – está conectada em algum nível. A única figura do Origin é uma representação hipotética de uma árvore evolutiva que procura ilustrar a ancestralidade comum: 
III – Gradualismo da evolução: Para Darwin – e também para Wallace – “Natura non facit saltus” (a natureza não dá saltos). O processo de descendência com modificação é lento e gradual, não ocorrendo mudanças bruscas que levem à origem de novos tipos ou espécies. As descontinuidades da natureza seriam apenas exceções. 

IV – Variação intra-específica (nas populações): a observação do mundo natural revela que existe uma enorme variação nas populações. Se tomarmos, por exemplo, uma sala de aula repleta de alunos, notaremos que são todos diferentes entre si, a despeito de todos pertencerem à mesma espécie, Homo sapiens (excetuando-se ETs disfarçados ou algum Homo superior que fugiu da escola para superdotados do professor Xavier). Não são os indivíduos que mudam no correr da evolução, mas as populações. Dessa forma, não é correto dizer que as espécies evoluem e sim que as populações evoluem. Visto que a evolução é cumulativa, as diferenças que tornam populações distintas, em longos períodos de tempo, terminam por gerar espécies diferentes.

 A seleção natural: para Darwin e Wallace, é o mecanismo que explica a origem e diversificação das espécies. Ambos dizem ter se inspirado na obra de Thomas Malthus publicado em 1803 (Um ensaio sobre o princípio da população ou uma visão de seus efeitos passados e presentes na felicidade humana, com uma investigação das nossas expectativas quanto à remoção ou mitigação futura dos males que ocasiona). Em linhas gerais, Malthus defendia que o tamanho das populações humanas cresceria exponencialmente, enquanto a produção de recursos alimentares cresceria de forma bem mais lenta, em progressão aritmética. 


Partindo do raciocínio malthusiano, Darwin apresenta o mecanismo da seleção natural. No seu livro de 1993, Mayr criou um esquema explicativo preciso que permite compreender tal mecanismo a partir de cinco fatos e três inferências:

Fato 1: As espécies possuem um grande potencial de fertilidade. Se todos os indivíduos nascidos realizassem esse potencial, ou seja, se todos reproduzissem o máximo possível, o tamanho da sua população cresceria exponencialmente.

Fato 2: As populações são normalmente estáveis, com o tamanho populacional flutuando apenas de maneira esporádica.

Fato 3: Os recursos disponíveis (como alimento e espaço) são limitados. Num meio ambiente estável, eles permanecem relativamente constantes.

Esses três fatos levam à primeira inferência:

Inferência 1: Já que é produzido número maior de indivíduos do que podem suportar os recursos disponíveis, deve haver uma luta pela existência entre os indivíduos da população, resultando na sobrevivência de apenas parte dos descendentes de cada geração.

Seguida de outros dois fatos:

Fato 4: Toda população ostenta uma abundante variabilidade. A variação intraespecífica (dentro da espécie) é enorme.

Fato 5: Grande parte dessa variação é herdável, estando também presente entre os descendentes.

Para Mayr, tais fatos, juntamente com a inferência inicial, têm como conseqüência as duas inferências finais, que constituem, em síntese, o mecanismo da seleção natural:

Inferência 2: A sobrevivência dos organismos depende da constituição hereditária daqueles sobreviventes. Ocorre, portanto, sobrevivência diferencial das populações, que permite o aumento das taxas de reprodução.

Inferência 3: No correr das gerações, esse processo de seleção natural conduzirá a uma mudança gradual e contínua das populações, podendo originar novas espécies.

A partir da explicação de Mayr, podemos criar uma representação esquemática da reprodução diferencial alterando as freqüências populacionais durante um dado intervalo de tempo. 

Na tabela abaixo são apresentadas duas populações de uma mesma espécie – podemos pensar em duas populações de Felis catus (o gato doméstico), as Nonas (colunas azuis) e as Franciscas (colunas vermelhas). As Nonas não são muito espertas, fogem das suas casas e vivem atravessando a rua. Como resultado, cada Nona consegue se reproduzir apenas uma vez antes de morrer (vamos considerar que cada gata prenha dá à luz a apenas um filhote). As Franciscas, por sua vez, são muito mais inteligentes, nunca saem das suas tocas protegidas e não atravessam a rua. Assim, sobrevivem por mais tempo e são capazes de engravidar duas vezes durante a vida (tendo um filhote em cada gravidez). Resumindo: cada indivíduo da população 1 (Nonas) tem um único descendente antes da morte; cada indivíduo da população 2 (Fransciscas), por sua vez, tem dois descendentes antes de morrer. Lembre-se que são duas populações de uma mesma espécie!


População 1 (Nonas)
% pop. 1 no total
População Total
População 2
(Franciscas)
% da pop. 2 no total
População inicial (T0)
100
50%
200
100
50%
Tempo 1
100
33,33%
300
200
66,67%
Tempo 2
100
20%
500
400
80%
Tempo 3
100
11,11%
900
800
88,89%
Tempo 4
100
5,89%
1700
1600
94,11%
Tempo 5
100
3,04%
3300
3200
96,96%


O que está acontecendo aqui? 

Estamos observando a mudança da constituição populacional dessa amostragem de Felis catus. No início, Nonas e Franciscas tinham igual representação na população total (50% cada um). Com o passar do tempo, houve uma redução da representatividade das Nonas na população e um aumento da representatividade das Franciscas. É fácil explicar o que ocorre nesse exemplo.

Apesar de membros da mesma espécie, as populações de Nonas e Franciscas são diferentes (as primeiras adoram atravessar a rua; as segundas não são tão bobinhas). Isso significa que existe variação intraespecífica prévia. Franciscas, por apresentarem uma característica vantajosa, permitindo que se reproduzam mais vezes antes de morrer, estão sendo selecionadas positivamente.  Com o passar do tempo, suas características herdáveis irão aumentar cada vez mais entre o total de descendentes. Isso pode levar à extinção das Nonas (ou não, visto que não é impossível que surjam variações nessa população que lhes deem alguma outra vantagem seletiva e permitam reverter a queda na sua representatividade na população total ou mesmo leve ao aparecimento de uma nova espécie).

O que nem Darwin nem Wallace sabiam era como a variação intraespecífica surgia. Ambos levantaram hipóteses equivocadas para tentar explicar esse fato óbvio da natureza. Por que existem, entre os Felis catus, populações distintas tais como as Nonas e as Franciscas do nosso exemplo hipotético? 

Essa pergunta começou a ser respondida ainda no século XIX. But this story shall also be told...

Referências sugeridas:
  1. Darwin, C.1859. On the origin of species by means of natural selection or the preservation of favored races in the struggle for life. Londres: John Murray.
  2. Dennett, D. 1996.Darwin's dangerous idea: evolution and the meanings of life. Simon & Schuster.
  3. Mayr, E. 1993. One long argument: Charles Darwin and the genesis of modern evolutionary thought. Harvard University ress 
  4. Newman, S.A. & Bhat, R. 2009. Dynamical patterning modules: a "pattern language" for development and evolution of multicellular form. Int. J. Dev. Biol., 53, 693-705.
  5. Souza, R.F., Ponzoni, S., Zaia, C.T.B.V. & Zaia, D.A.M. 2012. O conflito criacionista e evolucionista no Brasil. Scientific American Brasil, 126, 78-79. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro professor parabéns pelo ótimo texto. Se me permite, gostaria de atentar para o pequeno erro de digitação na data de falecimento de Pierre Louis Maupertuis, no terceiro parágrafo, quarta linha.