A ciência é a busca de curvas simples, previsíveis, formas compactas de apresentar os dados. Existe sempre, porém, o perigo de que as curvas que vemos sejam ilusórias, como imagens de animais nas nuvens. A verdade é que sempre ficamos com uma dúvida angustiante: estamos deixando de lado algo importante?
George Johnson, Fogo na mente (1997)
Há alguns meses, fui visitar a casa da minha mãe no interior do estado junto com meu irmão. No carro, começamos a conversar sobre cinema. Em certo momento, discutíamos a respeito de Hellraiser: Renascido do Inferno, um filme britânico de horror escrito e dirigido por Clive Barker em 1987. Discordamos frontalmente a respeito da qualidade do filme (para meu irmão, é uma porcaria; penso que a película tem momentos interessantes, especialmente se consideramos seu orçamento restrito de apenas 1 milhão de dólares).
A peça chave da história é um quebra-cabeça em forma de caixa chamado “Caixa de Lemarchand”. No universo criado por Barker, a mais conhecida dessas caixas recebe o nome de Configuração do Lamento. Essa caixa é um mecanismo místico que funciona como uma porta, ou uma chave, para outro plano de existência. A resolução do quebra-cabeças cria uma ponte para essa nova dimensão, um reino de prazer eterno e inimaginável. No filme, Frank Cotton resolve o quebra-cabeças e abre o cubo, penetrando em um mundo labiríntico habitado por cenobitas, criaturas demoníacas vestidas de couro, deformadas, com escarificações e lacerações pelo corpo, que levam ao extremo o ideal sadomasoquista: alimentam-se de sensações, sobretudo dor e sofrimento, impingidas a outras pessoas. A única emoção que conhecem é o êxtase experimentado pela flagelação. Preso nessa dimensão – uma versão contemporânea e bondage do inferno bíblico –, Frank tem seu corpo dilacerado por ganchos e correntes, que rasgam sua carne em pedaços, fazendo-o experimentar o máximo de prazer através da tortura infinita (essa é a premissa do filme, não é culpa minha!).
A caixa de Lemarchand, supostamente criada pelo arquiteto e artesão francês Phillip Lemarchand em 1749, também é conhecida como Caixa Miraculosa ou Caixa de Pandora. Na mitologia grega, Pandora – palavra derivada de pan, “todo”, e dõron, “presente” – é a primeira mulher, sobre a qual pouco se sabe. Pandora foi feita no céu por Hefasto e Atena, e cada um dos deuses teria a aperfeiçoado. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio, a persuasão, Apolo, a música. Assim dotada, Pandora fora enviada à Terra e oferecida a Epimeteu. Ele tinha em sua casa uma caixa, em que guardava os artigos que considerava malignos. Pandora, tomada de curiosidade para conhecer o conteúdo daquela caixa, certo dia destampou-a. Com isso, ela liberou uma multidão de pragas que atingiram o homem, tais como a gota, o reumatismo, a cólica, a inveja, o despeito e a vingança. Vendo o que tinha causado, Pandora apressou-se em colocar a tampa na caixa, mas todo seu conteúdo havia escapado, com exceção da esperança, que ficara no fundo.
Em julho de 2013, uma descoberta extraordinária “abriu a caixa de Pandora” da biologia evolutiva, levando ao questionamento de uma série de pressupostos aceitos há mais de cem anos. Desde o On the origin of species de Charles Darwin (publicado em 1859), imagina-se que todos os organismos existentes no planeta estejam conectados em uma imensa árvore de vida em que cada galho corresponderia a uma espécie. É possível que tenham existido, desde o organismo primordial, mais de um bilhão de espécies, todas elas aparentadas, em graus diferentes. Tem sido difícil, ou mesmo impossível, posicionar os vírus nessa árvore. A descrição do Pandoravirus salinus e do Pandoravirus dulcis, dois super-vírus encontrados em amostras de água coletadas respectivamente no Chile e na Austrália, com cerca de 1 micrômetro de comprimento e 0.5 micrômetros de diâmetro (maiores até que alguns organismos eucariotos!), trouxe a discussão à tona mais uma vez. Eles se assemelham aos demais vírus conhecidos, mas também têm particularidades que fizeram alguns pesquisadores considerarem-nos como pertencente a um domínio exclusivo, um grupo que pode ter se diferenciado dos demais seres vivos existentes no planeta há mais de três bilhões de anos. A descoberta dos Pandoravirus também abre perspectivas para novos estudos sobre a possibilidade de existência de uma “biosfera oculta” na Terra, formada por potenciais formas alternativas de vida, com um bioquímica radicalmente distinta da conhecida.
É consenso dizer que os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios. Eles têm seu genoma composto por DNA ou RNA, que dirige a síntese e a “montagem” dos componentes virais, formando novos vírus, usando a maquinaria metabólica da célula parasitada. Em termos estruturais, os vírus são extraordinariamente simples, as máquinas de sobrevivência e reprodução mais eficientes e otimizadas de todo o planeta. Eles são pouco mais do que um envoltório formado por proteínas (o capsídeo) envolvendo o material genético.
Como citado acima, a despeito do seu sucesso evolutivo, os vírus não se encaixam em nenhuma posição tradicional entre os superdomínios da vida, que são três, seguindo a classificação de Carl Wöese: (1) Archaea, composto pelas bactérias extremófilas, que vivem em ambientes de alta salinidade, temperaturas altíssimas ou profundidades abissais; (2) Eubacteria, as bactérias “clássicas”; e (3) Eukarya, que reúne todos os seres vivos que portam um envoltório nuclear, a carioteca, incluindo aí organismos tão distintos quanto amebas, sequóias, moscas e dinossauros. Por não terem metabolismo próprio (conjunto de reações químicas através das quais os seres vivos constroem e mantêm seus corpos, crescem e realizam tarefas como locomoção e reprodução) e serem replicados por montagem de partes pré-formadas ao invés de se multiplicarem por fissão binária, os vírus tradicionalmente não se ajustam aos sistemas de classificação biológica. Alguns autores nem mesmo os consideram como seres vivos. Eles não são capazes de importar nutrientes e energia do meio ambiente, não se movem, não se dividem, não crescem... No entanto, vírus se reproduzem, interagem com o aparato metabólico da célula hospedeira e subvertem o metabolismo desta, utilizando-o na produção das suas réplicas.
Os Pandoravirus não se encaixam exatamente na descrição dos vírus tradicionais. Eles têm genes comuns aos de vírus gigantes e têm um ciclo de vida tipicamente viral, com absorção, penetração, liberação do material genético do vírus no interior da célula hospedeira, transcrição e replicação do material genético viral, montagem dos novos vírus e liberação. Nos Pandoravirus faltam muitas das características de organismos celulares como as bactérias (eles não produzem suas próprias proteínas, não produzem energia via ATP ou se reproduzem por divisão). No entanto, eles são maiores que muitas bactérias, não apenas em tamanho como na quantidade de bases nitrogenadas do seu material genético, como mostra a figura abaixo – P. salinus tem 1.9 milhão de bases enquanto P. dulci tem 2.5 milhões. Os Pandoravirus têm apenas 7% dos seus genes semelhantes aos genes conhecidos para qualquer espécie classificada entre os três superdomínios da vida.
A falta de similaridade poderia ser um indicativo de que eles se originaram de um organismo anterior ao surgimento do ancestral comum de toda a vida reconhecida no planeta. Seria essa espécie viral o primeiro organismo descrito da “biosfera oculta”? Tal biosfera – ainda hipotética já que não há qualquer confirmação da sua existência – seria formada por microorganismos com processos bioquímicos e moleculares radicalmente diferentes das formas de vida conhecidas. Esse termo foi cunhado pelos pesquisadores Carol Cleland and Shelley Cooper em 2005. Para eles:
Encontrar uma forma de vida que difere daquela que conhecemos em sua arquitetura molecular e bioquímica seria profundamente importante tanto de uma perspectiva científica quanto filosófica. Há uma quantidade convincente de evidências de que a vida conhecida hoje na Terra compartilha um ancestral comum universal [no inglês, LUCA, abreviação de Last Universal Common Ancestor]. É improvável que o LUCA tenha sido a primeira forma de vida uma vez que ele já seria muito sofisticado, tendo ácidos nucléicos e proteínas, assim como processos metabólicos complexos. Em suma, a vida como a conhecemos representa um exemplo único de um estágio muito avançado (Cleland & Cooper, 2005, p. 165).
Organismos de uma “biosfera oculta” poderiam ter sobrevivido de forma independente, em seu próprio sistema de relações predador-presa, tornando-se adaptados a ambientes menos hospitaleiros para a vida microbiana que conhecemos. Ao invés de serem eliminadas, essas formas de vida talvez tivessem evoluído de maneira a não competir com os organismos familiares a nós.
É possível que os Pandoravirus pertençam a alguma linhagem muito distinta dos três domínios tradicionalmente aceitos para a vida no planeta, constituindo, quem sabe, representantes de um quarto domínio. Talvez estejamos às vésperas de encontrar toda uma nova biosfera, provavelmente muito distinta dos seres vivos que a ciência já descreveu. Parafraseando o bardo William Shakespeare, pode haver mais entre os mares e a Terra do que os biólogos evolutivos e seus microscópios eletrônicos poderiam imaginar.
Referência sugerida
Cleland, C. & Copley, S. D. 2005. The possibility of alternative microbial life on Earth. International Journal of Astrobiology, 4, 165-173.
Nadège Philippe et al. 2013. Pandoraviruses: amoeba viruses with genomes up to 2.5 Mb reaching that of parasitic eukaryotes. Science, 341, 281-286.
Imagens:
Um comentário:
Genial... Simplesmente isso! Eu não tinha conhecimento desses trabalhos, e agora fiquei também remoendo várias de minhas angústias, que carrego desde a época da graduação (há mais de três copas!): afinal, onde se encaixam os vírus na árvore da vida (já que há muito tempo eu já os tratava como seres vivos)?
Que interessante...
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