quinta-feira, 26 de março de 2015

Por uma ciência livre para errar


Na ciência fala-se muito em “contexto da descoberta” e “contexto da justificação”. Dentro de uma perspectiva hipotético-dedutiva, o primeiro corresponde à maneira pela qual uma teoria científica é concebida, sua gênese e suas origens históricas. O segundo relaciona-se às evidências empíricas e suportes teórico-prático que formam o arcabouço da nova ideia, essenciais para dar forma à teoria e para apresentá-la ao público.

Segundo o filósofo da ciência Paul Feyerabend (1924-1994), não há método específico válido para toda criação científica: de fato, tudo vale, de sonhos - diz-se que o químico orgânico August Kekulé (1829-1896) propôs a estrutura do anel de benzeno após acordar de um sonho em que via uma cobra engolindo seu próprio rabo - a insights psicológicos. Qualquer referencial pode ser utilizado nessa primeira etapa: arte, música, filosofia, metafísica, ciência básica, sociologia, psicologia... A livre associação, muitas vezes, permite que novos caminhos científicos sejam trilhados, ainda que terminem em “ruas sem saída” ou sugiram direções alternativas. 

O grande divulgador, bioquímico e escritor de ficção científica Isaac Asimov (1920-1992), em um texto sobre criatividade inédito até o ano passado, discute como o contexto é importante para o desenvolvimento de novas ideias. Para ele, além de boa formação na área de estudo (não basta apenas querer propor uma teoria revolucionária, é crucial estudar a literatura pertinente e estar a par do que acontece no campo) e de trabalho incessante (dependendo da área de pesquisa, um tanto solitário), a criação na ciência demanda a busca por conexões entre tópicos ou assuntos que antes não pareciam relacionados. A maioria dos cientistas está sempre revolvendo no seu cérebro alguma questão que lhe interesse, ainda que inconscientemente. É da fusão entre os itens 1 e 2 (ou 3 e 8, ou 12 e 1456) que pode emergir um novo conceito, uma abordagem original a um problema ou simplesmente uma maneira mais objetiva e assertiva de descrever um fenômeno natural.

Argumentar com os pares é uma forma de refinar uma hipótese científica, de aparar suas arestas, de aprofundá-la (ou mesmo de abandoná-la). Essa é das maiores diversões da minha atividade: “jogar” com teorias e conceitos, torcê-los, alterá-los mentalmente, testá-los à luz de experimentos mentais. Para isso, ter um contraponto é importante. 


Recentemente, estava discutindo com a bióloga Leticia Alabi (minha ex-aluna de pós-graduação e atualmente na Universidade do País Basco, na Espanha) a respeito de árvores filogenéticas e definições de vida. É possível existir vida sem evolução? Quando um sistema não-biológico torna-se vivo? O que seria uma biologia universal? A conversa, sem amarras, foi muito interessante:

Charles: Quando falamos "vida como tipo natural" significa algo que não vai mudar, como "água é um tipo natural". É essencialista no sentido de não mudar no tempo. Se não quiser fazer referência a algo fixo, não use o termo “tipo”. O cluster pode mudar no tempo mas dentro de parâmetros (assim, há algo de definido). Pense bem: um cluster de XXX genes e processos regulatórios define o indivíduo Y. Mas, se a evolução é um contínuo, os genes e processos regulatórios mudam continuamente no tempo. Se for um contínuo, não vamos conseguir definir o indivíduo Y a não ser que determinemos "isso aqui é o cluster do indivíduo Y". Entendeu? Em um contínuo, qualquer definição é tipológica. Por isso nossas representações da evolução sempre serão heurísticas, modelos eminentemente falhos.

Letícia: No fim, ontologicamente falando, espécies não existiriam, nem tampouco "vida".

Charles: A vida é a única "descontinuidade". As espécies ontologicamente falando não existem, mas existe vida. Por isso ela é o único tipo. A vida é descontinuidade entre certas propriedades da matéria até a emergência de um todo diferente. Aqui, estamos usando “tipo” como algo definido, fixo, que não muda, que vale em qualquer situação.

Letícia: Se conseguirmos entender um "tipo" historicamente, com essas regras...

Charles: Se usarmos tipo como "definição fixa válida pra qualquer situação", já matamos a charada. Baseando-nos nesse conceito, o que teríamos é a biosfera como único "grupo monofilético" ontologicamente válido. Se definirmos o que é a vida como um "tipo", a única árvore filogenética ontologicamente válida seria a árvore universal da vida (no sentido de conectar todas as biosferas existentes, todas as biosferas em todo o universo). Isso se repetiria só no nosso universo, com as nossas leis, parâmetros físicos e constantes. Não daria pra extrapolar para o multiverso. É isso que penso como sendo a "biologia universal". O que temos que criar é um modelo teórico de vida (como um "tipo") na qual se encaixe os seres vivos conhecidos por nós na esperança de encontrarmos outros for a da Terra. Só dá pra testar essa hipótese se encontrarmos vida extraterrestre (como te falei, o "teto" do fractal – sei que isso não existe mas acho que dá pra entender – é a árvore universal da vida, reunindo todas as biosferas).

Letícia: Daria pra testar se encontrarmos a “shadow biosphere”.

Charles: Se existe biosfera oculta, ela tem que se encaixar no modelo. Seria uma maneira de testá-lo, de fato. Aqui, podemos considerar que a “shadow biosphere” equivale à “vida extraterrestre”.

Letícia: Para encontrar essa “biosfera oculta” em algum nível tem que seguir nosso padrão ou ela vai passar batida embaixo dos nossos narizes e ninguém vai se dar conta, nunca.

Charles: O padrão pra detecção da vida tem que ser universal, mais do que apenas nosso. Aí entra a auto-organização, que não depende, necessariamente, da definição de "vida como conhecemos". Ela parte do pressuposto que a física é igual em qualquer parte do universo. O resto é idiossincrasia de cada biosfera. A vida começa e evolui no equilíbrio tênue entre convergência e contingência, nem só uma, nem só outra.

Letícia: O que define a vida? Talvez seja uma convergência no sentido funcional...

Charles: É a autonomia que define a vida. Um sistema auto-organizativo passa a ser considerado vivo se emerge como um indivíduo, i.e. algo com autonomia. É a autonomia que vai fazer emergir a capacidade de reprodução e de manter metabolismo separado do entorno. A origem da vida, nesse sentido, é a emergência da autonomia de um sistema auto-organizativo. O interessante é que o surgimento da autonomia não pressupõe o início da evolução pois podemos pensar em um sistema auto-organizativo autônomo que não muda (portanto, não evolui). O universo pode estar cheio deles. Dessa forma, vida no sentido universal (como tipo) NÃO pressupõe evolução. Por isso o Dawkins está completamente errado quando define seu Darwinismo Universal. Vida sem a capacidade de evoluir pode ser muito instável mas, a priori, não é teoricamente impossível. Nunca havia pensando nisso.

Letícia: No começo pode ter havido realmente uma variação muito limitada.

Charles: Não só no começo. Pensa comigo: uma biosfera em que todos os organismos sejam geneticamente idênticos, como em Janus (o planeta criado pela Jablonka & Lamb no “Evolução em quatro dimensões”). Eles podem mudar por fatores epigenéticos/ambientais. Em Janus, a biosfera pode ser diferente a cada geração, mesmo sem qualquer tipo de sistema hereditário. Por isso a definição de vida não deve pressupor evolução (não no sentido de mudança no passar do tempo).

Letícia: Os organismos, então, apenas seriam limitados em termos variacionais?

Charles: Sim. Mesmo sem variação genética, as mudanças ambientais e sua influência sobre os sistemas de informação garantiriam a flexibilidade do sistema vivo contra mudanças estocásticas (i.e., eventos contingentes). O que é diferente de pressupor evolução no sentido de descendência com modificação a partir de um ancestral comum. Talvez a evolução seja uma idiossincrasia do nosso planeta ou de certos tipos de vida.

Letícia: Dessa forma, existiria “vida” antes de “vida que evolui”?

Charles: Sim. Deixamos a definição de vida "mais básica", mais fundamental, tipológica.

Letícia: O oceano do “Solaris” entraria nessa definição! O Stanislaw Lem estava certo. [mais sobre esse assunto pode ser lido aqui]

Charles: É exatamente o que eu estava pensando... oceano vivo, que muda sem mudar.

Letícia: Quanto tempo esses tipos de sistema se manteriam? A informação, como seria retida?

Charles: Se as possibilidades de variações epigenéticas forem muitas, elas não precisam ser retidas. Não estamos falando de hereditariedade clássica aqui, mas de variação sem herança. Poderíamos dizer que, em certas biosferas, existiria herança sem variação; em outras, nenhuma variação (ainda que existisse vida); em outras, herança sem variação em uma primeira etapa, seguida de variação com herança; e outras ainda, em um primeiro momento a vida apareceria como um sistema sem possibilidade de variação, depois surgiria variação sem herança (sem qualquer tipo de molécula informacional ou material genético), seguida de variação com herança (genética mais epigenética). Acho que é isso.

Letícia: Gostei da discussão. Ideias, ideias!


Vida sem evolução? Variação sem base hereditária? Biologia universal? Essas coisas podem realmente existir? Não sei ao certo. Na ciência, o processo é tão importante quanto o resultado, e as perguntas, mais fundamentais que as respostas. A partir da dúvida, seguimos em frente.

Infelizmente, a imagem do cientista difundida pelo cinema e pelas mídias de massa não corresponde à rotina dos laboratórios, universidades e institutos de pesquisa. A ciência não precisa ser vetusta ou carrancuda. Às vezes miramos em alvos móveis que não temos a menor certeza se serão ou não atingidos. Isso não importa tanto. Pelo contrário: questionar os pilares da nossa realidade e tentar explicá-los cientificamente é uma atividade prazerosa e divertida.

Não devemos temer o erro. Como disse o professor Dráulio Barros de Araújo, neurocientista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em um encontro da Academia Brasileira de Ciências ano passado: “o risco é inerente à boa pesquisa. Ciência não é sobre papers, é sobre curiosidade e descoberta”. Fracassar é parte indissociável do processo de construção de conhecimento. 

O caminho que temos para desvendar os mistérios do mundo natural é nos aventurarmos além dos limites do possível, permitindo à nossa imaginação adentrar os domínios do que alguns julgam impossível (ou improvável). Fica a mensagem do físico Richard Feynman (1918-1988): a natureza é tão absurdamente extraordinária que ela nunca vai deixar nossas mentes relaxarem.

Figuras
http://en.wikipedia.org/wiki/Self-organization
http://17rg073sukbm1lmjk9jrehb643.wpengine.netdna-cdn.com/wp-content/uploads/2014/11/calories10.gif

sexta-feira, 6 de março de 2015

O avesso da vida - II

Quanto àqueles que negam os Nossos versículos, introduzí-los-emos no fogo infernal. Cada vez que a sua pele se tiver queimado, trocá-la-emos por outra, para que experimentem mais e mais o suplício. Sabei que Deus é Poderoso, Prudentíssimo.
Alcorão (4, 56)
A maior parte daquilo que atualmente consideramos sagrado só é sagrado por uma única razão: porque foi considerado sagrado ontem.
Nós temos nomes para definir pessoas que têm muitas convicções para as quais não há justificativa racional. Se essas convicções forem extremamente comuns, chamamos essas pessoas de “religiosas”; caso contrário, provavelmente serão chamadas de “loucas”, “psicóticas” ou “delirantes”. (...) a maioria das religiões meramente canonizou algumas manifestações de ignorância e loucura ancestrais e as passou para nós como se fossem verdades primordiais.
E assim é que, quando um terrorista muçulmano suicida destrói sua vida, juntamente com dezenas de inocentes em uma rua de Jerusalém, o papel que a fé religiosa desempenha nas suas ações é invariavelmente minimizado. O que se diz é que seus motivos devem ter sido políticos, econômicos, ou inteiramente pessoais; e que, mesmo excluindo a fé, pessoas desesperadas também fariam coisas terríveis.
Sam Harris (2004) A morte da fé: religião, terror e o futuro da razão
Durante quase duzentos anos, nós, norte-americanos, expulsamos ou exterminamos populações indígenas, isto é, milhões de pessoas; conquistamos a metade do México; saqueamos a região do Caribe e da América Central; invadimos o Haiti e as Filipinas - matando, na ocasião, 100 mil filipinos. Depois, após a II Guerra Mundial, estendemos nosso domínio sobre o mundo da maneira que se conhece.
Noam Chomsky (2001) Terrorismo: a arma dos poderosos
O governo dos Estados Unidos se recusa a julgar a si mesmo segundo os mesmos padrões morais com que julga os outros. (...) Sua técnica é posicionar-se como um gigante bem intencionado cujas boas ações são mal compreendidas pelos ardilosos nativos de países cujos mercados os Estados Unidos estão tentando libertar, cujas sociedades estão tentando modernizar, cujas mulheres estão tentando liberar, cujas almas estão tentando salvar. (...) O governo dos Estados Unidos conferiu a si mesmo o direito e a liberdade de assassinar e exterminar as pessoas “para o próprio bem delas”.
Arundhati Roy (2003), War talk 
De manhã cedo os soldados aterrissaram de helicóptero na aldeia [My Lai, no Vietnã]. Muitos disparavam enquanto se espalhavam, matando pessoas e animais. Não havia sinal do batalhão vietcongue e nenhum tiro foi disparado contra a Charlie Company o dia todo, mas eles prosseguiram. Queimaram todas as casas. Estupraram mulheres e meninas e depois as mataram. Esfaquearam algumas mulheres na vagina e evisceraram outras, ou cortaram-lhes as mãos e o escalpo. Mulheres grávidas tiveram o ventre rasgado e foram abandonadas à morte. Houve estupros organizados em gangues e matanças a tiros ou com baionetas. Houve execuções em massa. Dezenas de pessoas de uma só vez, inclusive velhos, mulheres e crianças, foram metralhadas numa vala. Em quatro horas, cerca de quinhentos aldeões foram assassinados.
Jonathan Glover (1999) Humanity: a moral history of the twentieth century
A intolerância é a companheira natural da fé vigorosa; a tolerância só viceja quando a fé perde a certeza; a certeza é assassina.
Will Durant (1950) The age of faith
Os condenados são então imediatamente levados para Riberia, o local da execução, onde há tantas estacas quanto são os prisioneiros a serem queimados. O ser relapso e negativo é primeiro estrangulado e depois queimado; os peritos montam as estacas perto de uma escada, e os jesuítas, depois de várias repetidas exortações para se reconciliarem com a Igreja, consignam-nos à destruição eterna, e depois deixam-nos com o demônio, que dizem estar ao lado delas para conduzí-los por seus tormentos. Nisso eleva-se um alto brado, e o brado é: “Vamos fazer a barba dos cães”; o que é feito aplicando-se tufos de arbustos em chamas, amarrados a longas varas, em suas barbas, até que seus rostos queimam até a negritude, a população ao redor enchendo o ar com as mais sonoras aclamações de alegria. Finalmente é ateado fogo aos arbustos ao pé da estaca, nas quais as vítimas estão acorrentadas, tão no alto que as chamas mal chegam ao assento onde estão posicionadas, e assim elas são mais assadas do que queimadas. Embora não possa haver um espetáculo mais lamentável e os sofredores gritem continuamente, enquanto conseguem, “Piedade pelo amor de Deus!”, ele é assistido por pessoas de todas as idades e de ambos os sexos, enlevadas de alegria e satisfação.
John Swain (1931) The pleasures of the torture chamber [narrando um auto de fé espanhol]
Mesmo para os padrões do Estados Islâmico, o mais recente vídeo de propaganda é particularmente macabro. A filmagem alterna imagens do piloto enquanto ele está vivo, com sequências mostrando os escombros de edifícios destruídos e os corpos queimados de sírios supostamente mortos em ataques aéreos da coalizão. Membros do Estado Islâmico foram ao Twitter para aplaudir a morte do piloto, chamando-a de "olho por olho". No final do vídeo de 22 minutos, um guerilheiro do Estado Islâmico acende o rasto de pólvora enquanto o tenente Kasasbeh assiste, suas roupas encharcadas de combustível. As chamas correm para dentro da jaula e o engolfam. A câmera se demora mostrando close-ups de sua agonia, antes de concluir com fotos do que o Estado Islâmico reivindicou serem outros pilotos da Jordânia e uma oferta de recompensa de 100 moedas de ouro para quem quer que mate um deles.
Rod Nordland e Ranya Kadri, New York Times, 3 de fevereiro de 2015

Figura 1. http://jesusismuslim.com/
Figura 2. http://images2.alphacoders.com/147/147450.jpg
Figura 3. http://planetoftheapes.wikia.com/
Figura 4. http://waterboarding.org
Figura 5. http://www.livetradingnews.com/