Desde 2013, sou representante docente no Conselho Universitário da universidade em que leciono. Um dia desses, apresentando o relato de uma proposta de pós-graduação neste conselho, sugeri que os coordenadores do projeto tomassem bastante cuidado com a produção científica/acadêmica dos seus docentes credenciados e que levassem em consideração a possibilidade de reduzir o número de disciplinas ofertadas, na tentativa de garantir uma alocação didática mais eficiente nos anos vindouros. Por isso, fui taxado de “direitista” e “alinhado com o imperialismo exploratório eurocentrista” por uma das representantes deste mesmo conselho, particularmente encarniçada (e, como de praxe entre os extremistas de qualquer matiz, sem nenhuma finesse ou humor), ainda que minha sugestão de encaminhamento tenha sido pela aprovação da proposta de pós-graduação.
O historiador Tony Judt (1948–2010) levantou-se inúmeras vezes contra perspectivas anacrônicas como a citada acima, dada a sectarismos e ausência completa de empatia e generosidade para com o alheio. Para Judt, é preciso aprender a lidar com as necessidades comuns rejeitando o individualismo niilista da direita e o socialismo deturpado do passado. Em seu último livro publicado em vida, “O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente” (de 2010), ele discute a necessidade de se abandonar a fé cega no mercado e de colocar o respeito à igualdade de direitos acima de qualquer coisa. Seguem abaixo alguns trechos da obra:
O caráter materialista e egoísta da vida contemporânea não é inerente à condição humana. (p. 16)
A última vez que um grupo de jovens expressou comparável desânimo pelo vazio de suas vidas e da frustrante falta de sentido do mundo foi nos anos 1920: não por acaso os historiadores falam de uma geração perdida. (p.17)
O governo pode desempenhar um papel maior em nossas vidas sem ameaçar a liberdade. (p. 19)
A desigualdade é corrosiva. Faz com que as sociedades apodreçam por dentro. (p. 30)
Quanto mais nos tornamos iguais, mais acreditamos que a igualdade é possível. (p. 32)
O crescimento econômico beneficia a todos, mas privilegia desproporcionalmente uma pequena minoria em posição de explorá-lo. (p. 33)
[O pensamento econômico hoje] decreta que busquemos nossos interesses (definidos como vantagens econômicas maximizadas) com o mínimo de referência a critérios externos como altruísmo, renúncia, gosto, hábitos culturais ou propósitos coletivos. (p. 44-45).
O medo e o descontentamento das classes médias deram origem ao fascismo. (p. 58)
Todos os empreendimentos coletivos exigem confiança (...) os humanos não conseguem atuar juntos a não ser suspendendo a desconfiança que sentem uns pelos outros. (p. 67)
O individualismo da nova esquerda não respeitava nem o propósito coletivo nem a autoridade tradicional (...) o que lhe restava era o subjetivismo do interesse e do desejo privados – medido de forma pessoal. Isso, por sua vez, conduzia ao recurso do relativismo estético e moral: se algo é bom para mim, não me cabe determinar se é bom ou mal para outros – e muito menos impor isso a eles (p. 90)
O único motivo para os investidores privados adquirirem empresas publicas aparentemente ineficientes é a eliminação ou redução de sua exposição ao risco, bancada pelo Estado (...) como jamais se permitira a quebra de serviços indispensáveis, elas podiam correr riscos, gastar mal e desbaratar recursos à vontade, sabendo que o governo acabaria pagando a conta. (p. 108-110).
Ao reduzir as responsabilidades e possibilidades do Estado, minamos sua situação pública. (p. 113-114).
Qualquer sociedade (...) que destrói a estrutura de seu Estado logo se vê ‘desconectada, reduzida ao pó da individualidade’. (p. 116)
Uma consequência impressionante da desintegração do setor público tem sido a crescente dificuldade em compreender o que temos em comum com outras pessoas. (p. 117)
Se os bens públicos – serviços, espaços, instalações – se desvalorizam, perdendo importância aos olhos dos cidadãos, e dão lugar a serviços privados disponíveis só para quem pode pagar, então perdemos o senso de que os interesses comuns e as necessidades comuns devem ter prioridade sobre as preferências privadas e a vantagem individual. (p. 125)
Numa era em que os jovens são estimulados a maximizar o interesse e o progresso individuais, o incentivo ao altruísmo e até ao bom comportamento se torna obscuro. (p. 125)
Se não respeitamos os bens públicos; se permitimos ou estimulamos a privatização nos espaços, recursos e serviços públicos; se apoiamos com entusiasmo a propensão de uma geração mais jovem a cuidar exclusivamente de suas próprias necessidades, então não deveremos nos surpreender com a progressiva redução do engajamento cívico no processo público de tomada de decisões. (p.126)
Por que temos tanta certeza de que planejamento ou taxação progressiva, ou propriedade coletiva de bens públicos, são restrições intoleráveis à liberdade? Por outro lado, por que câmeras de televisão de circuito fechado, ajuda estatal para bancos de investimentos “grandes demais para quebrar”, telefones grampeados e guerras custosas no exterior são ônus aceitáveis para um povo livre? (p. 144)
Há um preço a pagar pelo conformismo. Um círculo fechado de opiniões ou ideias no qual o descontentamento ou a oposição jamais são permitidos – ou aceitos apenas dentro de limites predeterminados e artificiais – perde sua capacidade de reagir a novos desafios com energia ou imaginação. (p. 147)
Repúblicas e democracias só existem em virtude do engajamento de seus cidadãos na condução dos negócios públicos. Se cidadãos ativos e preocupados descartam a política, eles abandonam a sociedade aos mais medíocres e venais servidores públicos. (p. 153)
Politicamente falando, vivemos na era dos pigmeus. (p. 154)
Os ricos não querem a mesma coisa que os pobres. Quem depende do trabalho para sustentar a família não quer a mesma coisa que quem vive de investimentos e dividendos. Quem não precisa dos serviços públicos – pois pode adquirir transporte, educação e segurança privadas – não busca o mesmo que as pessoas que dependem exclusivamente do setor público. (...) As sociedades são complexas e convivem com interesses conflitantes. Afirmar o contrário – negar distinções de classe, riqueza ou influência – é só um jeito de privilegiar um conjunto de interesses em detrimento de outro. (p. 157)
Acesso desigual a recursos de qualquer tipo – dos direitos humanos à água – é o ponto de partida de qualquer crítica progressista verdadeira do mundo. Mas a desigualdade não é apenas um problema técnico. Ela ilustra e exacerba a perda da coesão social – a ideia de morar num conjunto de condomínios fechados cujo principal propósito é afastar outras pessoas (menos afortunadas que nós) e restringir nossos privilégios a nós a nossas famílias tornou-se a patologia da época e a maior ameaça à saúde de qualquer democracia. (p.170-171)
A volta à ditadura pode ser sedutora em países nos quais a tradição autoritária mantém considerável apoio silencioso. (p. 199)
Todos os argumentos políticos precisam começar por uma avaliação de nossa atitude não apenas em relação aos sonhos de progresso futuro mas também das conquistas passadas: nossas e de nossos antecessores. (p. 209)
Referência:
Judt, T. 2010. O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Tradução: Celso Nogueira. Editora Objetiva, Rio de Janeiro.
Ilustração de Joe Ciardiello (www.nytimes.com)
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