segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Taxonomia não é ufologia!


"Eu quero acreditar". Esse era o mote de um dos seriados mais icônicos dos anos 1990, Arquivo X. Semana a semana, os agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully se viam investigando o aparecimento de seres espetaculares, monstros pré-históricos redivivos, pés-grandes e organismos extraterrestres co-participantes de uma conspiração mundial de proporções quase inimagináveis. Eu achava tudo muito divertido e acompanhava fielmente a série, ainda que o criador Chris Carter não tivesse preocupação alguma com precisão científica.

Recentemente, alguns taxonomistas ressuscitaram o slogan "Eu quero acreditar" em um contexto distinto: eles têm defendido a possibilidade de se descrever novas espécies mesmo ser terem em mãos qualquer material biológico fisicamente palpável. Bastaria uma foto e a indicação de um especialista, sugerindo que a espécie fotografada não é conhecida pela ciência, para justificar um novo trabalho de descrição taxonômica. Coleta de material biológico? Não é necessário! Depósito de espécimes em museus e coleções de história natural? Dispensável! Sequenciamento de material genético, dissecção de partes anatômicas importantes para a diagnose da espécie, análise do comportamento do organismo no ambiente natural? Detalhes demais para um mundo de demandas tão aceleradas...

Na taxonomia tradicional, é prática corriqueira a coleta de espécimes através de técnicas como armadilhas montadas em áreas naturais ou procedimentos ativos (na entomologia, ramo da zoologia que trata do estudos dos insetos, usamos puçás no campo, que são redes de "caçar borboletas"). Os indivíduos coletados, caso não sejam identificados como nenhuma espécie conhecida, podem ser descritos como novas espécies, recebendo um nome - formado pelo gênero mais um epíteto específico - a partir de regras de nomenclatura derivadas daquelas criadas por Carolus Linnaeus no século XVIII.

As descrições de espécies dependem da observação pormenorizada dos indivíduos coletados. Estas podem ser realizadas a olho nu, em microscópios ópticos, eletrônicos ou estereomiscroscópios, muitas vezes após dissecções dos espécimes e montagem das suas partes em lâminas permanentes ou temporárias. Tal trabalho consome muito tempo porém é imprescindível para identificações e descrições precisas.

A única forma de garantir que as “novas espécies” descritas não existam apenas no mundo das ideias é estudando os indivíduos que serviram de base para as descrições. Sem eles, a zoologia e a botânica sempre se remeterão à autoridade: a existência de uma espécie dependerá de se acreditar (ou não) na idoneidade do taxonomista e na pertinência da sua fonte única de evidências primárias. Só que não é difícil encontrar pesquisadores inidôneos...

Neste ano de 2016, um entomólogo russo - Sergey Viktorovich Pushkin - publicou uma nova espécie de besouro da família Dermestidae. Ele a nomeou Thaumaglossa zhantievi. No trabalho original (que pode ser baixado AQUI), há uma foto da região dorsal de um espécime e uma ilustração da terminália (a porção reprodutiva, fundamental para a diagnose de muitos insetos) (Figura 1).

Figura 1: A "nova espécie" Thaumaglossa zhantievi.

Ainda que a descrição seja demasiado sintética, seria válida. Está de acordo, por exemplo, com o que define o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica. No entanto, a foto utilizada no artigo de Pushkin como representativa dessa nova espécie foi simplesmente roubada de um outro artigo publicado anos atrás, que descrevia a espécie de dermestídeo Thaumaglossa laeta (as fotos do material utilizado nesta descrição podem ser vistas AQUI). Pushkin COPIOU a foto de T. laeta, fez algumas pequenas alterações através de algum software de edição digital de imagens, e inseriu no seu próprio trabalho. Não contente, a ilustração da terminália da "espécie nova" T. zhantievi também foi roubada de outro trabalho, que descrevia Thaumaglossa mroczkowskii (Figuras 7 e 9 do artigo disponível AQUI).

Em suma: o entomólogo russo simplesmente INVENTOU uma nova espécie! Ele surrupiou a foto de uma espécie publicada e já descrita, deu uma arrumada no Photoshop (deixando o espécime simétrico), roubou a ilustração de uma terminália de outra espécie, fez o mesmo procedimento no Photoshop e... voilá! Mais uma "espécie nova" para emporcalhar a literatura, publicada em uma revista com índice de impacto e revisão-por-pares (ou ímpares já que deixaram passar tamanho absurdo).

A recente defesa da utilização de fotografias (sem coleta, sem análise de material de referências) como evidência suficiente para a descrição de novas espécies presta um desserviço à prática taxonômica. Abre precedentes para picaretagens como a de Pushkin e pode ser fatal para nossos esforços em direção ao aumento do conhecimento da biodiversidade e para a conservação biológica.

Por mais que estejamos vendo todos os dias os ambientes naturais se deteriorando - quando não completamente destruídos -, ainda que muitas espécies estejam sendo extintas (uma delas pode ter perecido no exato momento em que você lê esse breve ensaio), nada justifica a frouxidão científica. Descrever espécies não é um jogo em que ganha aquele cientista, grupo de pesquisa ou país que nomeia a maior quantidade de novos táxons. Não estamos nos Jogos Olímpicos da taxonomia. É preciso seriedade e apreço por práticas que garantam a repetibilidade nos laboratórios, permitindo a outros pesquisadores e interessados conhecer o máximo possível sobre uma espécie. Fotografias não são suficientes - elas não são substituto da realidade e sim uma representação dela.

"Eu não quero acreditar" que uma espécie descrita existe de fato para além daquilo que foi publicado em um artigo científico. "Eu quero saber"! E, para isso, não dá para contar apenas com imagens. Taxonomia não é ufologia, é ciência. Deve ser tratada assim sempre.

Referências
Amorim, D.S. et al. 2016. Timeless standards for species delimitation. Zootaxa, 4137(1), 121-128.
Pape, T. et al. 2016. Taxonomy: species can be named from photos. Nature, 537, 307.
Santos, C.M.D. et al. 2016. On typeless species and the perils of fast taxonomy. Systematic Entomology, 41, 511-515.
Spineli, P.K. 2010. Mais humano que humano: o cyberpunk na fotografia de Blade Runner. Revista Olhar, 22, 162-186.