quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Homologias

“O que o cientista observa é sempre uma diminuta parcela
no vasto campo dos possíveis objetos de observação”
Sir Peter Medawar, Prêmio Nobel de medicina e fisiologia de 1960

O conceito de homologia é a idéia central da biologia comparada. A primeira definição formal do termo vem do paleontólogo e anatomista britânico Sir Richard Owen (1804-1892), para quem homologia era “o mesmo órgão em diferentes animais sob uma variedade de formas”. Desde o século XIX, o conceito vem sendo discutido, revisado e redefinido. Para o ictiólogo brasileiro Mário de Pinna, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (refletindo uma linha de pensamento que remonta à Owen), homologia é correspondência entre partes. Essa definição, no entanto, é sintética demais e não suficiente para abarcar toda a complexidade do processo evolutivo, que tem na homologia seu punctum saliens.

Antes de qualquer coisa, explicar homologia é tentar compreender algo “igual mas diferente”. Igual no sentido de compartilhamento de uma origem evolutiva comum (que pode estar escondida em processos de desenvolvimento compartilhados ou genes iguais), diferente no sentido de ter passado por um processo de descendência com modificação no tempo (a evolução). Como apresentar esse conceito sem sobrecarregar as sinapses dos alunos interessados em entender a natureza e sua diversidade?

Mais do que os problemas relativos à própria definição de homologia, ainda esbarramos com uma barreira invisível perpetuamente presente: a linguagem. É óbvio que ela não foi criada em um contexto evolutivo, trabalhando muito mais com analogias do que com homologias. Crescemos utilizando os mesmos termos para estruturas muito diferentes, que nem sempre tem uma relação próxima a não ser pela função aparente que apresentam. As asas são um exemplo claro disso: existem asas de aves, de pterossauros, de morcegos, de insetos, de aviões e da imaginação. É o mesmo termo empregado em situações muito distintas. Isso vale para as pernas de cadeiras, de elefantes, de Homo sapiens, de artrópodes...

Outros fatores ajudam a complicar ainda mais a tarefa dos biólogos. Algumas características presentes em grupos tão distintos quanto lagostins e peixes têm um fundo genético comum – o sistema nervoso de ambos (pertencentes, respectivamente, aos Arthropoda e aos Vertebrata) baseia-se na expressão de um complexo de dois genes homeóticos que são os mesmos nos dois grupos, mudando apenas o seu nome. É correto, portanto, dizer que o sistema nervoso nos artrópodes e nos vertebrados é homólogo? Eles têm uma origem evolutiva compartilhada, pelo menos em algum ponto da sua história, uma vez que os genes são os mesmos. No entanto, o último ancestral comum de artrópodes e vertebrados é o ancestral comum de todos os animais com simetria bilateral, que provavelmente não tinha um sistema nervoso tão complexo quanto o apresentado pelos grupos recentes.

Como resolver essa questão? Para apresentar o mundo vivo em uma perspectiva evolutiva, o significado de sinapomorfias – características presentes em dois ou mais organismos e herdadas do seu ancestral comum mais recente – e homoplasias – similaridades entre organismos não herdadas do seu ancestral comum mais recente – precisa ser enfatizado. Uma maneira de apresentar o que é homologia e o que é homoplasia na sala de aula baseia-se na idéia de que propostas individuais de homologia interagem umas com as outras, já que esse é um conceito comparativo por definição.

Homologia em etapas

Diferentemente do que estamos acostumados a pensar, uma hipótese de homologia sempre envolve dois passos. Há uma série de critérios para o reconhecimento inicial de uma homologia: diz-se que duas estruturas presentes em organismos diferentes são homólogas se têm forma semelhante, se ocupam posição equivalente ou se seguem o mesmo padrão de desenvolvimento (se são, por exemplo, derivados do mesmo grupo de células presentes no embrião). Essa primeira proposta, que alguns chamam de homologia primária, reflete a expectativa de que as partes consideradas são correspondentes.

A etapa seguinte é um pouco mais complicada e demanda a análise comparativa entre as hipóteses de homologia levantadas anteriormente. Quando uma delas sugere o mesmo tipo de relação de parentesco que outras, diz-se que são congruentes.

Vamos supor que levantemos as seguintes hipóteses de homologia primária ao estudar artrópodes e cicloneurálios (grupo que inclui nematódeos e priapulídeos, entre outros): (1) presença de apêndices locomotores articulados, (2) presença de cabeça, tórax e abdômen, (3) presença de sistema nervoso central ao redor do tubo digestório, (4) presença de probóscide com espinhos, (5) presença de troca periódica da cutícula, e (6) presença de segmentos. A hipótese (1) sugere que todos os animais que tenham apêndices locomotores articulados - os artrópodes - formam um grupo natural; (2) sugere que todos os animais que têm o padrão de tagmose cabeça+tórax+abdômen - os artrópodes - formam um grupo natural; (3) sugere que todos os animais que têm sistema nervoso periesofágico - os cicloneurálios - também formam um grupo natural; (4) sugere que os animais com probóscide portando espinhos - os cicloneurálios - formam um grupo natural; (5) sugere que os animais que fazem muda do exoesqueleto - os ecdisozoários, isto é, artrópodes mais cicloneurálios - forma um grupo natural; e, finalmente, (6) sugere que os animais com segmentos formam um grupo natural.


Como visto, as hipóteses de homologia primária (1) e (2) suportam a idéia de que os artrópodes compõem um grupo natural (também chamado de grupo monofilético ou clado); (3) e (4) suportam a existência de um clado composto pelos cicloneurálios; (5) é característica comum ao clado Ecdysozoa. (1) e (2) são hipóteses congruentes entre si, assim como (3) e (4). (5) reúne Arthropoda e Cycloneuralia em um grande grupo monofilético, os Ecdysozoa (Figura 1).

E (6)? Bem, a distribuição da homologia primária representada por (6) causa um certo problema. Dentre os animais examinados nessa nossa análise, apenas os artrópodes e os Kynorhyncha (um dos cicloneurálios) têm segmentação. Assim, (6) sugeriria a fusão de Arthropoda e Kynorhyncha em um clado, o que é incongruente com as hipóteses (3) e (4). Dessa forma, dizemos que a presença de segmentação surgiu duas vezes entre os grupos analisados, uma vez no ancestral comum de todos os artrópodes e uma vez em Kynorhyncha.

Quando hipóteses de homologia primária SÃO congruentes entre si - (1) e (2) ou (3) e (4) - dizemos que elas são atributos modificados do ancestral comum dos grupos em questão e compartilhados por todos os seus descendentes. Na terminologia técnica, essas hipóteses de homologia são sinapomorfias. Quando hipóteses de homologia primária NÃO SÃO congruentes entre si - (6) em relação a (3) e (4) - dizemos que elas surgiram de forma independente durante a evolução dos grupos estudados. Tecnicamente, essas homologias primárias são homoplasias.

O que isso nos diz a respeito do processo evolutivo?

Homologias profundas

Nos últimos anos, um dos ramos de estudo da biologia evolutiva que mais têm fornecido informações para compreendermos como se deu o processo de descendência com modificação dos organismos é a biologia evolutiva do desenvolvimento (comentada anteriormente aqui e aqui). Ela é especialmente importante para a identificação do que podemos chamar de homologias profundas.

É de praxe considerarmos que homoplasias em cladogramas são ruídos ou erros, e que devem ser extirpadas antes que firam alguém ou que provoquem algum estrago irreparável. Essa visão ortodoxa vem sendo desafiada com a descoberta de genes controladores do desenvolvimento, como genes Hox, compartilhados por grupos tão distintos quanto planárias, insetos e peixes. Esses genes, muitas vezes podem desencadear cascatas de expressão de outros genes responsáveis por características como segmentação, apêndices locomotores ou olhos. Para a expressão tanto do coração de um gato quanto das bombas do sistema circulatório de uma borboleta, o mesmo gene é fundamental - no caso, o gene conhecido como Tinman ("homem de lata", em referência ao personagem do Mágico de Oz que procura por um coração). Se formos comparar diretamente, diríamos que a presença de coração em insetos e vertebrados é uma característica homoplástica, que surgiu de forma convergente, porque não seria de se esperar que insetos e vertebrados compusessem um grupo natural, pelo menos não com base em uma série de outras hipóteses de homologia primária que podem ser listadas. Assim, "presença de coração" é uma hipótese de homologia primária que pode ser chamada de homoplasia. Mesmo assim, o arcabouço gênico responsável pela expressão de um coração nos dois grupos citados é o mesmo. É o mesmo gene! "Presença de coração" é uma homologia profunda. No exemplo citado acima, a presença de segmentação, que é uma característica surgida duas vezes na nossa árvore, também é um caso de homologia profunda, já que os complexos de genes relacionados à expressão de segmentos verdadeiros são fundamentalmente os mesmos.

Evolução como bricolagem

Muitos desconfiam de que a evolução não seria suficiente - ou não teria o tempo necessário - para originar toda a diversidade orgânica que podemos ver no planeta. Essas opiniões por vezes baseiam-se na visão de que toda característica que aparece em um grupo deve estar relacionada ao surgimento de um gene novo. Bobagem! A evolução deve ser vista muito mais como um processo de rearranjo de uma base gênica comum do que um processo de aparecimento de novos genes. A evo-devo tem mostrado que uma grande quantidade de genes compartilhada pelos animais (há poucos trabalhos nessa linha utilizando plantas e menos ainda com outros grupos biológicos) deve ter surgido há muito tempo na história, talvez há 600, 700 ou 800 milhões de anos.

Para que essa idéia de processo evolutivo fique mais clara, é importante que o levantamento de homologias seja compreendido sempre como um processo em dois estágios. Dessa forma, pode-ser identificar quais características foram herdadas do ancestral comum mais recente dos grupos sob escrutínio (as sinapomorfias) e quais surgiram de forma independente (as homoplasias). Homoplasias não são necessariamente erros! Sua análise aprofundada pode revelar a existência de homologias profundas, o que demonstra que a evolução NÃO é um processo simples como representado em textos clássicos. Há mais do que apenas o surgimento de características e seleção das “mais vantajosas”... Esse é um passo importante para entendermos o processo evolutivo como um procedimento em que algumas das peças do jogo existem há muito tempo e vem sendo recombinadas e modificadas em um processo contínuo que vai durar enquanto existirem seres vivos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Hey Charles,

Muito bom haver lhe encontrado na reunião de hoje. Há pouco dei uma olhada no seu Lattes (cheguei aqui via isso) e gostei do que vi.

Obrigado por sua menção à psico-história, e só lamento não haver tido a presença de espírito de lhe responder que meu interesse é mais a psico-gênese. Circunscrevo a pesquisa a "referentes lógicos", estáticos, fossilizados pela linguagem convencional, mas não extrapolo para a "evolução" psico-social. Em tempo, faço ciencia (será?).

Pode deixar que volto a visitar seu blog. Parabéns pela inicitaiva.

Renato Kinouchi.

Anônimo disse...

Caríssimo Morphy,

AAAhh.. acho que entendi a homologia profunda, agora!!Interessante usarmos as mesmas peças para construir o que quisermos.. posso levar o LEGO p´ra gente montar em sala uma casinha, seria uma forma d nos proteger do frio do ar condicionado q vc não desliga.. ou podemos moldá-las para construir um avião.. e a peça que era usada p´ra proteger aproveitamos para a asa de outros... Brilhante, genial a idéia de François Jacob.. plenamente de acordo com nada se cria, tudo se transforma.. nom. Até aqui..tudo bem..mas Morphyyy, só ainda não compreendi como as peças perfeitas únicas essenciais foram modeladas no início. Seria tão mais simples se nem tivesse nosso cérebro (.. cerebelo ..ou seja lá o q for que pensa na pergunta) ter feito esta pergunta. Mas pensando melhor, por que fazer uma pergunta que já teríamos a rePosta.. é continuemos com as perguntas sem respostas. Ou v. tem a resposta??.. não vou me incomodar se contar.. :)



Abraços...


A.