quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sobre outros olhares para a divulgação científica

Dias atrás, participei de uma live do canal "Coelho Pré-Cambriano" em que discutimos a importância da divulgação científica (o vídeo na íntegra pode ser visto AQUI). Dentre os desafios para democratizar o conhecimento das ciências, um dos maiores é encontrar uma maneira de substituir verdades dogmáticas por hipóteses transitórias. 

A teoria da evolução tem componentes adicionais que a tornam pouco palatável, quando não inaceitável, para porções expressivas da sociedade. Desde a publicação do "Origem das Espécies" por Charles Darwin em 1859, permanecem em alta temperatura discussões contrárias à explicação da origem e diversificação dos seres vivos sem a participação de uma inteligência transcendental ou mão divina criadora. Para Darwin e os evolucionistas que o sucederam, processos como a seleção natural atuando sobre variações pré-existentes nas populações de organismos, fruto de mutações do material genético e recombinações cromossômicas, funcionam independentemente de direcionamento prévio ou planejamento. 

Nos últimos 50 anos, diferentes cientistas aceitaram o desafio de levar os fundamentos da evolução para o público fora das universidades e instituições de pesquisa. Dois dos autores mais conhecidos do público, traduzidos para diversos idiomas (inclusive o português), são o britânico Richard Dawkins (1941- ) e o norte-americano Stephen Jay Gould (1941-2002) (ambos discutidos nesse espaço AQUI e AQUI). A despeito da percepção geral de que Dawkins e Gould eram "inimigos" ou tinham rixas incontornáveis, a realidade da disputa entre eles é bem menos acalorada. 

Tanto Dawkins quanto Gould concordam em aspectos fundamentais. Ambos vêem a descrição científica do universo como bela e completa (Gould também considera as humanidades e as religiões como aptas a oferecer insights sobre valores e maneiras de se viver). Aceitam que toda vida no planeta Terra, incluindo a nossa própria espécie, remonta a um ancestral comum muito simples, mais até do que as bactérias menos complexas conhecidas, surgido há cerca de 4 bilhões de anos. O processo evolutivo é natural, sem participação de um criador ou designer inteligente. Mutações aleatórias do material genético tem papel importante na geração de variabilidade, ainda que a evolução não seja uma loteria. A seleção natural, entendida como a sobrevivência diferencial de indivíduos frente a outros, e o consequente aumento da representatividade das características dos sobreviventes nas gerações futuras, é fundamental para compreender a adaptação dos organismos ao meio em que vivem.

Etólogo de formação, Dawkins estudou padrões de comportamento dos seres vivos. Na sua concepção, a principal questão tratada pela biologia evolutiva é a adaptação dos organismos aos ambientes e os processos naturais responsáveis por ela. Segundo Dawkins, a história da evolução é a história das linhagens de genes (unidades básicas da hereditariedade, um gene é constituído pelo segmento de uma cadeia de DNA responsável pela síntese de uma proteína). Assim, a luta pela sobrevivência seria a luta dos genes para se replicar. Tudo o que compõe um organismo para além do material genético corresponderia a receptáculos ou veículos para os genes. 

Gould era paleontólogo e focou seu trabalho nos macroprocessos (tais como o papel das extinções na história evolutiva). Para ele, eventos aleatórios são cruciais na constituição das biotas. Mesmo que considere significativo o papel da seleção natural, Gould dá peso a outros processos e eventos como definidores da história evolutiva dos organismos. Caso os dinossauros não-avianos tivessem sobrevivido ao impacto do meteorito e às suas consequências ao final do Cretáceo, 65 milhões de anos atrás, na certa os mamíferos não teriam se diversificado e nós não estaríamos aqui. Se voltarmos a fita da evolução 540 milhões de anos para o início do Cambriano e a tocarmos outra vez, o cenário resultante poderia ser distinto. 

Dawkins e Gould são dois gigantes da divulgação científica e referências obrigatórias. O texto de ambos tem refinamento literário, clareza de ideias e sabor. Não apelam para linguagem técnica demasiada, usando de metáforas precisas para apresentar o panorama da evolução orgânica no planeta, ou mesmo fora dele. Ainda que Daniel Pennac, no seu "Como um romance", diga que o verbo ler não suporta o imperativo, aqui a sugestão vale: leiam Dawkins e Gould.

Mas não leiam apenas Dawkins e Gould.

Quando falamos em divulgação científica, em especial textos voltados paras ciências biológicas, o viés de gênero é claro. Para além de Dawkins e Gould, outros nomes óbvios citados são Carl Zimmer, Edward Wilson, David Quammen, Neil Shubin… Todos homens. Nós somos maioria entre os autores de textos traduzidos e publicados. No entanto, como apontam Maren Wellenreuther e Sarah Otto no artigo "Women in evolution – highlighting the changing face of evolutionary biology" [Mulheres na evolução - destacando a nova face da biologia evolutiva], cientistas mulheres estão na vanguarda de muitas áreas de ciência, notadamente nos estudos evolutivos. Tal fato tem contribuído para mais autoras publicarem textos de divulgação científica, trazendo um olhar diferenciado e necessário.

A bióloga evolucionista Lynn Margulis (1938-2011) é um dos exemplos de cientista que transitou de forma competente entre a pesquisa de ponta e publicações para um público amplo (um pouco mais sobre ela AQUI). Em 1966, ela propôs que, no correr da evolução, muitos eventos de fusões entre bactérias ocorreram, originando espécies diferentes através de simbiogênese. Em um artigo recusado inúmeras vezes por revistas especializadas até ser publicado - um exemplo importante de resiliência e confiança, características necessárias para o trabalho científico -, Margulis sugeriu que muitos dos atributos dos organismos complexos derivam da junção de dois ou mais microrganismos diferentes, que passaram a compartilhar uma vida comum através da cooperação. De forma bem simplificada, as organelas celulares conhecidas como mitocôndrias e cloroplastos foram, um dia, organismos bacterianos livres. Essas bactérias devem ter sido fagocitadas por outras, mas não digeridas, e o “alimento” foi incorporado ao ambiente interno das bactérias ingestoras. Essa visão radical sobre a história dos seres vivos, que aponta o papel essencial da cooperação em contraponto à competição da visão clássica darwiniana, foi uma avanço conceitual capaz de sacudir o que imaginávamos saber de evolução. Além de excepcional pesquisadora, Margulis publicou diversos livros de divulgação científica, alguns deles em parceria com seu filho Dorion Sagan.

A historiadora da ciência Janet Browne (1950- ), especialista em história da biologia e professora em Harvard, é outro nome que precisa ser conhecido. Com várias obras traduzidas para o português, Browne é a principal biógrafa de Darwin. Seus dois volumes ("Charles Darwin: Viajando" e "Charles Darwin: O poder do lugar") e a biografia curta do "Origem das Espécies" - é isso mesmo, uma biografia de um livro! - devem figurar na lista de referências básicas de quem gosta de conhecer mais sobre a teoria evolutiva. 

No centro da revolução das pesquisas sobre processos evolutivos - que muitas vezes recebe o nome de "Síntese Estendida" (mais sobre ela AQUI) -, as geneticistas Eva Jablonka (1952 - ) e Marion Lamb (1939 - ) causaram impacto para além dos muros da academia com a publicação do seu "Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida" (com tradução em português). Na obra, elas discutem como a variabilidade dos organismos não depende apenas de mutações genéticas, e que existem outros fatores, chamados epigenéticos, capazes de alterar o funcionamento de genes e conjuntos de genes sem alterar sua sequência de DNA. Tais mudanças podem se perpetuar para as gerações descendentes, descoberta essa que contraria o "cânone" da Síntese Moderna da Teoria Evolutiva, concebida em meados do século XX, segundo o qual apenas mudanças ocorridas nos genes das células reprodutivas seriam herdadas. Em suma: Jablonka e Lamb resgatam as bases do pensamento de Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829), incorporando a ideia da herança dos caracteres adquiridos à teoria evolutiva a partir do conhecimento contemporâneo das ciências biológicas. 

Ainda sem tradução para o português, a especialista em biologia molecular e biotecnologia Nessa Carey tem sido uma das vozes mais interessantes a discutir, tanto em pesquisas publicadas em revistas especializadas quanto em obras de divulgação científicas e palestras, o estado da arte da genética. Em seus livros, ela apresenta como nossa visão sobre o genoma tem mudado e como premissas antes tidas como certas precisam de revisão. Suas três obras de divulgação são boas pedidas: "The epigenetics revolution: how modern biology is rewriting our understanding of genetics, disease, and inheritance" [A revolução epigenética: como a biologia moderna está reescrevendo nosso entendimento sobre genética, doença e herança, de 2012]; "Junk DNA: A Journey Through the Dark Matter of the Genome" [DNA lixo: uma jornada através da matéria escura do genoma, de 2015] e o mais recente "Hacking the Code of Life: How gene editing will rewrite our futures" [Hackeando o código da vida: como a edição de genes vai reescrever nossos futuros, de 2019).

Jane Goodall (1934- ), Evelyn Fox Keller (1936- ), Elizabeth Kolbert (1961- )... os exemplos aqui não esgotam o assunto. Que o meio editorial - tradicionalmente controlado por nós, homens, e pleno de movimentos a favor do status quo patriarcal -, se dobre à força das contribuições das mulheres para a ciência. Nas palavras de Maren Wellenreuther e Sarah Otto: "As mulheres estão alterando a maneira como pensamos sobre a biologia evolutiva, traçando novas direções de pesquisa, facilitando o caminho para outras mulheres, e amando seus empregos". 

Leituras indicadas:

1. Elizabeth Kolbert. 2015. A sexta extinção: uma história não natural. Editora Intrínseca, RJ.
2. Eva Jablonka & Marion Lamb. 2010. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida. Companhia das Letras, SP.
3. Evelyn Fox Keller. 2002. O século do gene. Editora Crisálida, MG.
4. Janet Browne. 2011. Charles Darwin: O poder do lugar. Editora Unesp, SP.
5. Janet Browne. 2011. Charles Darwin: Viajando. Editora Unesp, SP.
6. Lynn Margulis. 2008. Symbiotic Planet: a new look at evolution. Basic Books.
7. Lynn Margulis & Dorion Sagan. 2002. O que é vida? Jorge Zahar Editor, RJ. 
8. Lynn Margulis & Dorion Sagan. 2008. Acquiring genomes: a theory of the origin of species. Basic Books. 
9. Maren Wellenreuther & Sarah Otto. 2015. Women in evolution – highlighting the changing face of evolutionary biology. Evolutionary Applications, 9(1), 3-16. 
10. Nessa Carey. 2012. The epigenetics revolution: how modern biology is rewriting our understanding of genetics, disease, and inheritance. Icon Books Ltd. 
11. Nessa Carey. 2015. Junk DNA: a journey through the dark matter of the genome. Icon Books Ltd. 
12. Nessa Carey. 2019. Hacking the Code of Life: how gene editing will rewrite our futures. Icon Books Ltd.

Um comentário:

João disse...

Ótimo e necessário! Certamente vou incluir essas obras entre as minhas leituras! Muito obrigado pela participação lá no canal. Foi bem legal! Abraço!