terça-feira, 29 de julho de 2008

Ensaio: Ponto brilhante na escuridão



Esse ensaio foi publicado no número 31 da Gazeta de Ribeirão, no dia 16 de janeiro de 2005. O título faz referência a um dos livros do astrônomo e extraordinário divulgador da ciência Carl Edward Sagan (1934-1996), O Mundo Assombrado Pelos Demônios - A ciência como uma vela no escuro (republicado recentemente pela Companhia das Letras em uma edição de bolso).
Sagan é responsável por uma vasta obra de popularização do pensamento científico, sempre se preocupando em tornar a ciência atraente para o público leigo sem, no entanto, superficializar ou distorcer conteúdos. É impossível assistir à sua série Cosmos e não se emocionar com o poder da ciência em desvendar as particularidades da natureza. Muitos dos livros de Carl Sagan foram traduzidos para o português e podem ser facilmente encontrados em livrarias e algumas bibliotecas.



Ponto brilhante na escuridão

Charles Morphy D. Santos

O ano de 2004 terminou com a morte de centenas de milhares de pessoas vítimas da tsunami que varreu a região costeira de alguns países banhados pelo Oceano Índico, promovendo um cenário catastrófico poucas vezes vistos na história recente da humanidade, exceção feita talvez aos genocídios cometidos durante as guerras e os governos totalitários do século XX. Tão logo os primeiros informes aportaram nas TVs e jornais de todo o mundo, vozes levantaram-se à procura de causas para a tragédia, muitas delas (incluindo a mídia dita especializada e os comentaristas prontos a despejar sobre o público sua sabedoria e assertivas mordazes) insinuando que o maremoto fora uma resposta da natureza aos impropérios contra ela cometidos por nossa espécie. De maneira análoga, muitos acreditam que antes do aparecimento do homem não havia fenômenos como o aquecimento global provocado pelo efeito estufa, ciclones e chuvas destruidoras, desconsiderando conceitos científicos simples e pesquisas que procuram entender como esses eventos têm alterado o planeta desde a sua formação, há cerca de 4,5 bilhões de anos. Como uma luz norteando a viagem pelo desconhecido, a ciência busca compreender o mundo sem apelar para a ira divina ou vendetas da natureza, legando ao homem o papel de participante e não de agente majoritário de todos os fenômenos naturais que nos assolam.

A Terra é composta por um “quebra-cabeça” de placas tectônicas interconectadas e em constante movimento - o que explica, por exemplo, o distanciamento constante entre a América do Sul e a África, que formavam uma única massa de terra há 140 milhões de anos. Como a maioria deve saber, a tsunami que atingiu os continentes asiático e africano teve origem em um deslocamento tectônico no meio do oceano, que culminou na formação de uma onda gigantesca. Apesar da impossibilidade de se controlar tal evento geológico, a tragédia era inevitável? Não. Se os governantes locais e autoridades responsáveis tivessem alguma visão científica ou fossem assessorados por pessoal competente, investimentos na implantação e desenvolvimento de tecnologias teriam impedido, ou minimizado, a perda de vidas.

Hoje, a ciência é fundamental para a sobrevivência do homem. De uma maneira efetiva e abrangente, e não como era feito nos antigos cursos de Educação Moral e Cívica que tentavam incutir nos estudantes algum amor pelo seu país, as escolas deveriam estimular os alunos, desde a infância, a pensar de forma crítica e cética, sem despejar-lhes pseudo-ciências desprovidas de conteúdo e da beleza inerentes às explicações científicas sobre o mundo natural. Aprofundar questões científicas é saudável para a sociedade pois o emprego da dúvida como princípio orientador evita a confiança cega e a idolatria, fundamentos do charlatanismo e da corrupção. Infelizmente, como cita o astrônomo Carl Sagan, “é muitíssimo mais fácil apresentar de modo atraente a sabedoria destilada durante séculos de interrogação paciente e coletiva da natureza do que detalhar o confuso mecanismo de destilação”. E, assim, assistimos impotentes à profusão de medicamentos alternativos, histerias coletivas baseadas na tendência do dia e seitas que prometem felicidade e casas com piscina.

Diferentemente da maioria das religiões e das pseudo-ciências, o pensamento científico beneficia-se do ceticismo e cresce a partir dele. Isso não significa que o cientista é um rabugento e insolente, mas alguém que admira o mundo natural e tenta explicá-lo à luz de evidências testáveis. A ciência protege-nos da ignorância. Por conseguinte, investir em ciência é garantir o bem-estar social em todos os níveis, mantendo acesa a chama de uma vela que ilumina nosso caminho escuro assombrado por demônios.

4 comentários:

João Carlos disse...

Premita-me discordar da colocação: Diferentemente de religiões e pseudo-ciências, o pensamento científico beneficia-se do ceticismo e cresce a partir dele.

Na verdade, até as religiões podem se beneficiar do ceticismo (depurando-se de superstições comprovadamente infundadas e se aprofundando em seu papel ético). Eu nem vou entrar no ramo das pseudo-ciências, porque existe muita coisa por aí que passa por "ciência rigorosa" e eu, cá, discordo (eg: medicina).

O grande problema é que pensar com a própria cabeça dá trabalho. É muito menos cansativo transferir o trabalho de raciocinar para o Pastor, o Pai-de-Santo, o Sargento Instrutor... ou os cientistas.

Charles Morphy D. Santos disse...

Sim, João. Você tem razão - mesmo as religiões podem se beneficiar do ceticismo. Entretanto, a meu ver, poucas crenças religiosas se aprofundam em aspectos éticos, não fazendo um esforço sincero para depurar suas superstições infundadas...
Talvez o mais correto seja dizer que as ciências deveriam se basear no ceticismo e crescer a partir dele - o que também não acontece sempre.
Quanto à pensar por si... não sei se nossa espécie está "preparada" para isso. No geral, as pessoas sempre buscam um führer, um condutor para lhes mostrar o que deve e o que não deve ser feito.

Charles Morphy D. Santos disse...

Caro João,
Mudei aquele parágrafo para "Diferentemente da maioria das religiões e das pseudo-ciências (...)". Acho que fica melhor assim, não é?

João Carlos disse...

Mudou de "seis" para "meia-dúzia", mas, em suma, você está correto e eu errado. Eu é que acredito que as religiões deveriam se beneficiar do ceticismo... A maioria dos religiosos, não...

Tentando me explicar melhor, eu sou religioso apesar de ser cético. É meio contraditório, eu sei... Como diz o feiticeiro Don Juan de Castañeda: "o guerreiro finge que acredita". Ou Millor, parafraseando Orwell: "duplipensar é só pensar" :D

Mas a questão de "raciocinar com a própria cabeça" é um problema profundo... O que eu vejo de professores reclamando de alunos que não se dão ao trabalho de pensar é uma enormidade. E, aí, você abre o livro do Feynman e vê que não é de hoje que a coisa é assim...