Esse ensaio (escrito em colaboração com o Dr. Adolfo R. Calor, também da USP de Ribeirão Preto), foi publicado originalmente na revista Ciência Hoje de Novembro de 2004 (volume 35, número 210, páginas 59-61). Ele discorre a respeito de como conceitos epistemológicos básicos (além de uma noção da perspectiva histórica do pensamento científico) podem ajudar no ensino de ciências. O texto – com algumas modificações em relação à sua versão impressa – vai ser postado aqui em três partes.
Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária – parte 1
A importância da filosofia para o ensino de ciências tem sido há muito negligenciada. Muitas das discussões de pensadores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend podem ser utilizadas para a construção de modelos pedagógicos que rompem com o tradicional caráter linear e atemporal do ensino, substituindo-os por uma visão mais dinâmica do processo ensino-aprendizagem.
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) considera a imaginação o princípio motor da ciência. Segundo ele, cientistas formulam hipóteses e estas são testadas através da experimentação. Se tais hipóteses mostrarem-se inadequadas, criam-se outras, que serão sujeitas a novos testes, em um processo contínuo que aumenta o poder explanatório das teorias, aproximando-as cada vez mais da verdade. A ciência é essencialmente transitória, pois, em um dado momento, a melhor teoria é a que melhor suporta as tentativas de refutação. Assim, o pensamento científico se desenvolve através da relação indissociável entre hipóteses, confirmações e refutações. A atitude crítica é fundamental: aprendemos com os erros.
Para Popper, apenas hipóteses que podem ser falseadas são de fato científicas (nesse sentido, a ciência avança não pela comprovação de sentenças básicas, mas pela rejeição das mesmas, o que exige a inferência de novas hipóteses). Contrariando a linha positivista da indução, Popper afirma que o pensamento científico é baseado em hipóteses e experimentos/deduções: “Não há, pois, indução (...), nunca argumentamos passando dos fatos para as teorias”. Todo experimento ou observação é influenciado por hipóteses existentes.
Esse conceito popperiano – o falseacionismo – é tido como ingênuo por alguns pensadores, que não aceitam a existência de experimentos com o poder de falsear teorias. O húngaro Imre Lakatos (1922-1974) propôs uma reinterpretação de Popper: o falseacionismo sofisticado. Para Lakatos, as hipóteses são científicas se puderem ser falseadas não por um único experimento, mas por um corpo de idéias que possa substituir a hipótese original. Esse ‘programa de pesquisa’, termo criado por Lakatos, engloba teorias, experimentos e a observação. Outro austríaco, Paul Feyerabend (1924-1994) defendia que o desenvolvimento das ciências dava-se por um processo dinâmico baseado no não-absolutismo e na não-uniformidade das teorias: quanto mais teorias, melhor. Ele considera a ciência um empreendimento anárquico, que não deve seguir princípios fixos ou metodologias específicas. Para Feyerabend, tudo vale na investigação científica.
Já o norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), no livro A estrutura das revoluções científicas, baseou-se na história das ciências físicas para estabelecer que o padrão de desenvolvimento da ciência fundamenta-se na mudança de ‘paradigmas’ por meio de ‘revoluções’. Paradigmas são conjuntos de hipóteses aceitos pela comunidade científica e que fornecem, por um tempo, problemas e soluções às questões levantadas pelos praticantes da ciência. Para Kuhn, os cientistas passam grande parte do tempo refinando os paradigmas aceitos – tais períodos de ciência dita ‘normal’ são pontuados por ‘explosões revolucionárias’, em que o consenso paradigmático é contestado e substituído por um novo conjunto de hipóteses. Dessa maneira, a imagem de realizações científicas acabadas, desvinculadas de um contexto histórico, compromete a compreensão do processo de construção da ciência.
A transitoriedade das teorias científicas não é discutida no ensino de ciências nos níveis fundamental e médio e, por vezes, sequer no superior. Há professores que tendem a tratar a ciência como um conjunto de invenções e descobertas individuais, herméticas e fixas, visão essa reforçada por parte dos livros didáticos e pela grande mídia, que se limitam a expor as idéias centrais das teorias e suas aplicações imediatas, sem considerar o processo subjacente à construção dessas hipóteses.
No ensino de ciências, a adoção de uma perspectiva dinâmica, baseada na idéia de teorias transitórias, seria benéfica. Essa visão contrapõe-se à linearidade e à falta de contextualização histórica encontradas nas escolas de nível médio e fundamental, e pode ser uma ferramenta útil para a formação de alunos críticos e com capacidade de reflexão.
Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária – parte 1
A importância da filosofia para o ensino de ciências tem sido há muito negligenciada. Muitas das discussões de pensadores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend podem ser utilizadas para a construção de modelos pedagógicos que rompem com o tradicional caráter linear e atemporal do ensino, substituindo-os por uma visão mais dinâmica do processo ensino-aprendizagem.
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) considera a imaginação o princípio motor da ciência. Segundo ele, cientistas formulam hipóteses e estas são testadas através da experimentação. Se tais hipóteses mostrarem-se inadequadas, criam-se outras, que serão sujeitas a novos testes, em um processo contínuo que aumenta o poder explanatório das teorias, aproximando-as cada vez mais da verdade. A ciência é essencialmente transitória, pois, em um dado momento, a melhor teoria é a que melhor suporta as tentativas de refutação. Assim, o pensamento científico se desenvolve através da relação indissociável entre hipóteses, confirmações e refutações. A atitude crítica é fundamental: aprendemos com os erros.
Para Popper, apenas hipóteses que podem ser falseadas são de fato científicas (nesse sentido, a ciência avança não pela comprovação de sentenças básicas, mas pela rejeição das mesmas, o que exige a inferência de novas hipóteses). Contrariando a linha positivista da indução, Popper afirma que o pensamento científico é baseado em hipóteses e experimentos/deduções: “Não há, pois, indução (...), nunca argumentamos passando dos fatos para as teorias”. Todo experimento ou observação é influenciado por hipóteses existentes.
Esse conceito popperiano – o falseacionismo – é tido como ingênuo por alguns pensadores, que não aceitam a existência de experimentos com o poder de falsear teorias. O húngaro Imre Lakatos (1922-1974) propôs uma reinterpretação de Popper: o falseacionismo sofisticado. Para Lakatos, as hipóteses são científicas se puderem ser falseadas não por um único experimento, mas por um corpo de idéias que possa substituir a hipótese original. Esse ‘programa de pesquisa’, termo criado por Lakatos, engloba teorias, experimentos e a observação. Outro austríaco, Paul Feyerabend (1924-1994) defendia que o desenvolvimento das ciências dava-se por um processo dinâmico baseado no não-absolutismo e na não-uniformidade das teorias: quanto mais teorias, melhor. Ele considera a ciência um empreendimento anárquico, que não deve seguir princípios fixos ou metodologias específicas. Para Feyerabend, tudo vale na investigação científica.
Já o norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), no livro A estrutura das revoluções científicas, baseou-se na história das ciências físicas para estabelecer que o padrão de desenvolvimento da ciência fundamenta-se na mudança de ‘paradigmas’ por meio de ‘revoluções’. Paradigmas são conjuntos de hipóteses aceitos pela comunidade científica e que fornecem, por um tempo, problemas e soluções às questões levantadas pelos praticantes da ciência. Para Kuhn, os cientistas passam grande parte do tempo refinando os paradigmas aceitos – tais períodos de ciência dita ‘normal’ são pontuados por ‘explosões revolucionárias’, em que o consenso paradigmático é contestado e substituído por um novo conjunto de hipóteses. Dessa maneira, a imagem de realizações científicas acabadas, desvinculadas de um contexto histórico, compromete a compreensão do processo de construção da ciência.
A transitoriedade das teorias científicas não é discutida no ensino de ciências nos níveis fundamental e médio e, por vezes, sequer no superior. Há professores que tendem a tratar a ciência como um conjunto de invenções e descobertas individuais, herméticas e fixas, visão essa reforçada por parte dos livros didáticos e pela grande mídia, que se limitam a expor as idéias centrais das teorias e suas aplicações imediatas, sem considerar o processo subjacente à construção dessas hipóteses.
No ensino de ciências, a adoção de uma perspectiva dinâmica, baseada na idéia de teorias transitórias, seria benéfica. Essa visão contrapõe-se à linearidade e à falta de contextualização histórica encontradas nas escolas de nível médio e fundamental, e pode ser uma ferramenta útil para a formação de alunos críticos e com capacidade de reflexão.
2 comentários:
O layout anterior era mais a 'cara' do blog... Não acha?
Bacana a discussão. Muito necessária e atual. Recomendo-a sempre aos meus amigos. Deveria haver muito mais difusão. Vejo o ensino médio e fundamental como uma fronteira a ser desbravada pelo Racionalismo Crítico se pretendemos desmantelar a hegemonia historicista no Brasil.
Abs.,
José Roberto
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