Para o físico e filósofo austríaco Ernst Mach (1838-1916), o desenvolvimento do pensamento científico pode ser interpretado como uma linha contínua na direção de representações cada vez mais simples das observações. As maiores descobertas na ciência não seriam tanto novas observações e sim novas simplificações na interpretação de fatos conhecidos. Dentro dessa perspectiva, a teoria da relatividade do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) seria uma interpretação simplificada da realidade observada se comparada com a gravitação newtoniana: ambas trabalham sobre a mesma base de fatos observacionais, contudo a teoria einsteniana necessita de menos premissas ad hoc, algo como muletas ou remendos teóricos, para explicar igual conjunto de fenômenos. Mach defende que a construção de uma teoria científica é um processo de procura por abstrações que possam cobrir uma ampla variedade de observações com o menor esforço mental. Sua teoria, entretanto, acaba por não permitir a multiplicação de entidades, uma vez que a ciência teria que trabalhar sobre o mesmo conjunto de fatos observados à busca de interpretações mais parcimoniosas para essas observações, não se preocupando com o levantamento de novos fatos. Apesar dos comentários de Mach fornecerem um quadro geral sobre a tendência em se aceitar a parcimônia entre os cientistas, eles não funcionam como justificativa para o seu uso.
É desnecessário mensurar, de forma absoluta, quão parcimoniosa é uma teoria em relação à outra, pois não há uma maneira direta de apontar, entre duas teorias conflitantes, qual delas tem maior parcimônia. A idéia da evolução por seleção natural dos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), de meados do século XIX, não é mais parcimoniosa que as teorias criacionistas pelo fato de conter um número menor de hipóteses independentes e sim porque seus pontos de partida são em menor número e de um “único tipo”, sem a descontinuidade e a arbitrariedade das várias sub-hipóteses da teoria especial da criação, como os atos divinos individuais, a existência de um centro de origem há muito desaparecido (no qual todos os organismos do planeta teriam sido criados por um Deus ex machina), a pouca idade da Terra e postulados afins.
Assim como a teoria evolutiva contrariou o cânone criacionista, também as idéias biogeográficas vigentes até a metade do século XX, que tentavam explicar a distribuição dos organismos no planeta segundo eventos individuais, não-compartilhados, de dispersão de longa distância, foram questionadas por outras teorias biogeográficas mais elegantes, que tomavam por base a deriva continental e a possível existência de eventos de disjunção (separação) compartilhados por muitas populações de várias espécies diferentes. Enquanto as teorias dispersalistas trabalham a partir do estabelecimento de centros de origem e rotas de dispersão para cada um dos grupos animais e vegetais, o que significa um grande número de suposições ad hoc, a biogeografia de vicariância procura causas comuns às disjunções, minimizando as explicações caso a caso.
A distribuição de mesossaurídeos (répteis aquáticos de pequeno tamanho, extintos há cerca de 250 milhões de anos) representa bem a aplicação da parcimônia na biogeografia. Há registros de fósseis de mesossauros tanto na América do Sul, na bacia do Paraná, quanto na África, na bacia do Karoo. Antes dos trabalhos do meteorologista alemão Alfred Wegener (1880-1930) nos anos 1920-1930, que ressuscitaram a idéia dos continentes em movimento, a melhor explicação para a localização desses fósseis se dava com base na ocorrência, no passado, de eventos de dispersão de longa distância, com os animais fazendo um périplo da África, atravessando o Atlântico, até o continente sul-americano (ou o caminho inverso, se os ancestrais do grupo tivessem se originado na América do Sul), em uma jornada intuitivamente implausível. O problema se agravava ainda mais com a reconstituição dos prováveis ambientes desses animais (de água doce e não marinhos) e com a análise da sua estrutura morfológica, sugerindo limitadas capacidades dispersivas.
A proposição de que os continentes africano e sul-americano estiveram conectados no passado geológico do planeta estabeleceu uma explicação mais parcimoniosa para a distribuição dos mesossauros, visto que passou a ser suficiente imaginar que as populações desses répteis estiveram unidas antes da separação dos continentes para compreender a distribuição disjunta do seu registro fóssil. Além disso, a deriva continental também funciona como explicação para a distribuição disjunta de muitos outros grupos (répteis terrestres do gênero Cynognathus, gimnospermas Glossopteris etc.). É claro que eventos de dispersão ocorreram – e ainda ocorrem – durante a evolução. No entanto, quando a distribuição de vários grupos é explicada convincentemente por um mesmo evento (ou eventos), devemos privilegiar esse tipo de hipótese, uma vez que, como afirmou o botânico italiano León Croizat (1894-1982), a Terra e a biota evoluem em conjunto.
Assim como na análise biogeográfica, o estabelecimento das relações de parentesco através da sistemática filogenética e a interpretação das mudanças nos atributos dos grupos biológicos durante sua história dependem fundamentalmente do conceito de parcimônia. Apesar de nunca ter utilizado o termo, o entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976), criador do método filogenético, explicitamente se apoderou do conceito de parcimônia no seu “princípio auxiliar”, segundo o qual a origem por convergência não deve ser considerada como certa a priori – isso significa que se deve assumir, a menos que haja evidência em contrário, uma origem única para estruturas e comportamentos similares (portanto, homólogos) em organismos diferentes. Como dito anteriormente, a parcimônia estipula que o investigador deve preferir a hipótese filogenética que precise do menor número de homoplasias (ou seja, surgimento independente dos caracteres), apesar delas ocorrerem em grande número durante a evolução das espécies.
A aplicação da parcimônia para julgar quais hipóteses filogenéticas devem ser escolhidas e quais descartadas tem sido criticada baseado na idéia (correta) de que a evolução não é necessariamente parcimoniosa. Apesar de coerente em um primeiro momento, essa perspectiva mostra-se equivocada quando analisada em detalhe. Assim como na pesquisa científica em outras áreas, a parcimônia é aplicada na sistemática filogenética com o objetivo de minimizar o número de explicações ad hoc dos dados ou para maximizar o poder explanatório das hipóteses em relação aqueles dados. O sentido real do uso da parcimônia não se relaciona a nenhum modelo de evolução: parcimônia tem a ver com a interpretação da evidência filogenética. Não é preciso acreditar que o processo evolutivo é simples, que a natureza sempre escolhe o “menor número de passos”, para se aceitar a aplicação da parcimônia na tentativa de se entender as relações genealógicas entre os organismos e quais os processos e mecanismos envolvidos. Parcimônia nada mais é do que uma ferramenta metodológica, não fazendo nenhuma afirmação sobre como são as coisas na natureza. A parcimônia ontológica, quando aplicada à reconstruções evolutivas, parte de uma premissa que carece de evidências empíricas.
A “simplicidade” científica é sempre uma tentativa e não é algo passível de ser julgado de forma definitiva. O que pode ser visto como uma teoria parcimoniosa um dia, suficiente para explicar um grande número de fenômenos (por exemplo, a gravitação newtoniana ou a distribuição dos organismos exclusivamente via dispersão), pode se transformar em um mastodonte teórico em um momento seguinte, devido à adição de hipóteses ad hoc na tentativa de explicar observações e eventos não esperados (como a percepção da curvatura da luz quando próxima de objetos de grande massa ou a descoberta da deriva continental). Diferentemente de uma representação de como a realidade está organizada, a parcimônia é um critério que guia as decisões na ciência e, portanto, é um conceito fluido, dependente do estágio de conhecimento a respeito do problema sob escrutínio.
E, claro, muito útil para se planejar viagens.
É desnecessário mensurar, de forma absoluta, quão parcimoniosa é uma teoria em relação à outra, pois não há uma maneira direta de apontar, entre duas teorias conflitantes, qual delas tem maior parcimônia. A idéia da evolução por seleção natural dos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), de meados do século XIX, não é mais parcimoniosa que as teorias criacionistas pelo fato de conter um número menor de hipóteses independentes e sim porque seus pontos de partida são em menor número e de um “único tipo”, sem a descontinuidade e a arbitrariedade das várias sub-hipóteses da teoria especial da criação, como os atos divinos individuais, a existência de um centro de origem há muito desaparecido (no qual todos os organismos do planeta teriam sido criados por um Deus ex machina), a pouca idade da Terra e postulados afins.
Assim como a teoria evolutiva contrariou o cânone criacionista, também as idéias biogeográficas vigentes até a metade do século XX, que tentavam explicar a distribuição dos organismos no planeta segundo eventos individuais, não-compartilhados, de dispersão de longa distância, foram questionadas por outras teorias biogeográficas mais elegantes, que tomavam por base a deriva continental e a possível existência de eventos de disjunção (separação) compartilhados por muitas populações de várias espécies diferentes. Enquanto as teorias dispersalistas trabalham a partir do estabelecimento de centros de origem e rotas de dispersão para cada um dos grupos animais e vegetais, o que significa um grande número de suposições ad hoc, a biogeografia de vicariância procura causas comuns às disjunções, minimizando as explicações caso a caso.
A distribuição de mesossaurídeos (répteis aquáticos de pequeno tamanho, extintos há cerca de 250 milhões de anos) representa bem a aplicação da parcimônia na biogeografia. Há registros de fósseis de mesossauros tanto na América do Sul, na bacia do Paraná, quanto na África, na bacia do Karoo. Antes dos trabalhos do meteorologista alemão Alfred Wegener (1880-1930) nos anos 1920-1930, que ressuscitaram a idéia dos continentes em movimento, a melhor explicação para a localização desses fósseis se dava com base na ocorrência, no passado, de eventos de dispersão de longa distância, com os animais fazendo um périplo da África, atravessando o Atlântico, até o continente sul-americano (ou o caminho inverso, se os ancestrais do grupo tivessem se originado na América do Sul), em uma jornada intuitivamente implausível. O problema se agravava ainda mais com a reconstituição dos prováveis ambientes desses animais (de água doce e não marinhos) e com a análise da sua estrutura morfológica, sugerindo limitadas capacidades dispersivas.
A proposição de que os continentes africano e sul-americano estiveram conectados no passado geológico do planeta estabeleceu uma explicação mais parcimoniosa para a distribuição dos mesossauros, visto que passou a ser suficiente imaginar que as populações desses répteis estiveram unidas antes da separação dos continentes para compreender a distribuição disjunta do seu registro fóssil. Além disso, a deriva continental também funciona como explicação para a distribuição disjunta de muitos outros grupos (répteis terrestres do gênero Cynognathus, gimnospermas Glossopteris etc.). É claro que eventos de dispersão ocorreram – e ainda ocorrem – durante a evolução. No entanto, quando a distribuição de vários grupos é explicada convincentemente por um mesmo evento (ou eventos), devemos privilegiar esse tipo de hipótese, uma vez que, como afirmou o botânico italiano León Croizat (1894-1982), a Terra e a biota evoluem em conjunto.
Assim como na análise biogeográfica, o estabelecimento das relações de parentesco através da sistemática filogenética e a interpretação das mudanças nos atributos dos grupos biológicos durante sua história dependem fundamentalmente do conceito de parcimônia. Apesar de nunca ter utilizado o termo, o entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976), criador do método filogenético, explicitamente se apoderou do conceito de parcimônia no seu “princípio auxiliar”, segundo o qual a origem por convergência não deve ser considerada como certa a priori – isso significa que se deve assumir, a menos que haja evidência em contrário, uma origem única para estruturas e comportamentos similares (portanto, homólogos) em organismos diferentes. Como dito anteriormente, a parcimônia estipula que o investigador deve preferir a hipótese filogenética que precise do menor número de homoplasias (ou seja, surgimento independente dos caracteres), apesar delas ocorrerem em grande número durante a evolução das espécies.
A aplicação da parcimônia para julgar quais hipóteses filogenéticas devem ser escolhidas e quais descartadas tem sido criticada baseado na idéia (correta) de que a evolução não é necessariamente parcimoniosa. Apesar de coerente em um primeiro momento, essa perspectiva mostra-se equivocada quando analisada em detalhe. Assim como na pesquisa científica em outras áreas, a parcimônia é aplicada na sistemática filogenética com o objetivo de minimizar o número de explicações ad hoc dos dados ou para maximizar o poder explanatório das hipóteses em relação aqueles dados. O sentido real do uso da parcimônia não se relaciona a nenhum modelo de evolução: parcimônia tem a ver com a interpretação da evidência filogenética. Não é preciso acreditar que o processo evolutivo é simples, que a natureza sempre escolhe o “menor número de passos”, para se aceitar a aplicação da parcimônia na tentativa de se entender as relações genealógicas entre os organismos e quais os processos e mecanismos envolvidos. Parcimônia nada mais é do que uma ferramenta metodológica, não fazendo nenhuma afirmação sobre como são as coisas na natureza. A parcimônia ontológica, quando aplicada à reconstruções evolutivas, parte de uma premissa que carece de evidências empíricas.
A “simplicidade” científica é sempre uma tentativa e não é algo passível de ser julgado de forma definitiva. O que pode ser visto como uma teoria parcimoniosa um dia, suficiente para explicar um grande número de fenômenos (por exemplo, a gravitação newtoniana ou a distribuição dos organismos exclusivamente via dispersão), pode se transformar em um mastodonte teórico em um momento seguinte, devido à adição de hipóteses ad hoc na tentativa de explicar observações e eventos não esperados (como a percepção da curvatura da luz quando próxima de objetos de grande massa ou a descoberta da deriva continental). Diferentemente de uma representação de como a realidade está organizada, a parcimônia é um critério que guia as decisões na ciência e, portanto, é um conceito fluido, dependente do estágio de conhecimento a respeito do problema sob escrutínio.
Um comentário:
Ola Charles
Parabens pelo blog, os textos sao bem escritos e informativos.
Gostaria de te pedir p listar alguns das referências que vc usou neste sobre parcimônia. Obrigada. Abraço
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