segunda-feira, 27 de abril de 2009

O que é a evo-devo?

Em linhas gerais, a evo-devo (evolutionary developmental biology ou biologia evolutiva do desenvolvimento) estuda como evoluiu o desenvolvimento e como as modificações do desenvolvimento afetaram as mudanças evolutivas. Recentemente, conceitos relacionados à embriologia, desenvolvimento e genética têm sido utilizados em conjunto com estudos de paleontologia na tentativa de se compreender a evolução de estruturas morfológicas e de grupos taxonômicos com origem controversa. Se evidências fósseis de estágios intermediários entre estruturas muito díspares, mas hipoteticamente homólogas, não são encontradas, a paleontologia pode contar com a abordagem da evo-devo a fim de “completar” esses intervalos nos quais não há evidências da estrutura ou conjunto de estruturas de interesse. Assim, procura-se encontrar paralelos entre o desenvolvimento individual de um organismo e a história evolutiva de um mecanismo ou atributo em determinado grupo.

A biologia evolutiva do desenvolvimento reflete uma longa busca para se compreender as relações entre as transformações de um organismo em uma única geração – o seu desenvolvimento, ou, em outras palavras, sua ontogenia – e as transformações que ocorrem entre gerações – i.e., evolução, representada pelas filogenias. A evo-devo é uma síntese da biologia evolutiva (que, em suma, procura compreender como aconteceram as mudanças de tamanho e forma apresentadas durante a história evolutiva dos organismos) com a biologia do desenvolvimento (que tenta distinguir os mecanismos de desenvolvimento responsáveis por essas mudanças). A perspectiva da evo-devo possibilita o estudo de propriedades não encontradas partindo-se de cada uma dessas áreas em separado. Ao incorporarem essa visão integrada, a biologia evolutiva, em geral, e a paleontologia, em particular, têm a chance de enriquecer o que se conhece sobre como os organismos, órgãos, tecidos e células evoluíram.

Dentre os tópicos fundamentais da biologia, a origem de novas estruturas durante a evolução levanta algumas questões importantes. Como aparecem essas (por vezes) chamadas novidades evolutivas? Elas podem evoluir de novo ou sempre derivam de estruturas ou mecanismos pré-existentes? A interface entre a biologia do desenvolvimento e as demais áreas das ciências biológicas contribui de forma positiva para o debate, como pode ser visto em recentes estudos sobre os mecanismos de desenvolvimento subjacentes à formação de estruturas complexas como patas e penas. Esses estudos também têm fornecido preciosas informações sobre como os processos de desenvolvimento modificam-se quando órgãos desaparecem durante a evolução, suportando a idéia de que a ausência de órgãos no adulto não implica na completa ausência do potencial para o desenvolvimento dos mesmos. Isso fica evidente na análise de alguns grupos de serpentes, os quais, apesar de não apresentarem membros anteriores ou posteriores, ainda portam a maquinaria genética responsável pela sua formação. A regulação da expressão gênica durante a formação dos embriões é muito complexa e mudanças aparentemente simples, como inversões temporais ou espaciais na expressão de um gene, podem levar a profundas alterações na formação de estruturas complexas – que não requerem, necessariamente, a ausência de todos os elementos do sistema regulador.

Nesse interim, a evo-devo procura compreender como se dá a origem e evolução do desenvolvimento embrionário e qual o papel que as alterações nesses mecanismos de desenvolvimento, mesmo que pontuais ou pouco relevantes em um primeiro momento, têm para o aparecimento de novas estruturas. Além disso, a evo-devo tem como metas entender a plasticidade do desenvolvimento na história evolutiva dos organismos, como os fatores exógenos (ambientais, de um modo geral, ou ecológicos) afetam esses mecanismos, e quais as bases embriológicas dos caracteres homólogos (atributos que têm a mesma origem evolutiva em grupos relacionados genealogicamente e que se modificam através do tempo – por exemplo, os ossos dos braços de um Homo sapiens e os ossos das asas de uma ave) e homoplásticos (caracteres com origens evolutivas múltiplas, mas que convergem na sua estrutura ou mecanismo – um exemplo é a morfologia hidrodinâmica de peixes e golfinhos). Das grandes áreas da biologia, a paleontologia e a sistemática estão entre as maiores beneficiadas pela biologia do desenvolvimento, uma vez que elas centram seus esforços na compreensão das novas organizações estruturais surgidas durante a evolução. Os registros fósseis são evidências importantes para se compreender a história da vida, constituindo fontes de informação únicas para estudos de evo-devo – o inverso também é verdadeiro. Por exemplo, a descoberta de fósseis de tetrápodes com oito dedos levou a novas considerações sobre o desenvolvimento e evolução desses membros.

É certo que o florescimento de uma disciplina que conecte a biologia do desenvolvimento aos estudos paleontológicos e filogenéticos pode contribuir para um melhor entendimento das questões relacionadas à história evolutiva dos organismos, manifestando uma longa conexão entre estudos de paleontologia, embriologia e evolução que remonta à síntese da teoria evolutiva de meados do século XX. Essas discussões, no entanto, não são recentes: o próprio Charles Darwin dedicou capítulos inteiros de sua obra-prima, Sobre a origem das espécies, à discussões detalhadas sobre como evidência embriológicas forneceriam suporte à suas teorias; Ernst Haeckel, ainda no século XIX, defendeu a idéia de que a ontogenia recapitula a filogenia (sua “lei biogenética”).

Para alguns evolucionistas mais entusiasmados, os avanços conceituais proporcionados pela evo-devo irão, por exemplo, inserir novamente a paleontologia na ciência contemporânea, modificando os fundamentos da nossa compreensão sobre a origem e diversificação da vida. Nos últimos anos, os estudos evolutivos, principalmente aqueles às voltas com classificações biológicas e reconstruções filogenéticas, têm assumido a perspectiva de uma grande disciplina integrada, utilizando informações das mais diferentes fontes, em particular da morfologia comparada, genética, biologia do desenvolvimento e paleontologia. Nenhuma dessas abordagens se mostrou superior às outras, e a contribuição dos diferentes campos abriu novos horizontes para a solução de problemas que não podem ser esgotados em uma única disciplina. Apesar de um certo exagero das expectativas, como é de praxe em qualquer nova área da ciência que aporte um grande número de pesquisadores, esforço conjunto e dinheiro, o uso da evo-devo ligada a estudos de paleontologia e sistemática, desde que corretamente utilizados os conceitos dessas áreas tradicionais, promete bons resultados para o entendimento de questões que há tempos atormentam os evolucionistas.

Para saber mais sobre a evo-devo, comece pelo Infinitas formas de grande beleza, livro escrito por Sean Carroll e traduzido para o português. Muitos artigos mais técnicos podem ser encontrados na internet, especialmente em revistas como Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e International Journal of Developmental Biology. No site da PLoS Biology, há um ensaio do Dr. Carroll (em inglês) sobre o tema (Evolution at two levels: on genes and form), no número 7, volume 3, p. 1159-1166. É de acesso gratuito no endereço (pode ser baixado também o pdf): http://biology.plosjournals.org/perlserv/?request=get-document&doi=10.1371%2Fjournal.pbio.0030245

Há também um outro artigo, dos mesmos autores do Jogo da Evolução (comentado nesse blog em maio de 2008), na revista Proceedings of the National Academy of Sciences USA, de maio de 2007 (vol. 104, suplemento 1, p.8605-8612), chamado Emerging principles of regulatory evolution, que pode ser encontrado no site:http://www.pnas.org/content/vol104/suppl_1/ Esse artigo fez parte do especial In the Light of Evolution I: Adaptation and Complex Design, que ocupou todo o volume da revista, e que conta com vários textos de temas recentes e revelantes para a compreensão da evolução. Recomendo a todos que se interessam por biologia evolutiva.