sábado, 12 de dezembro de 2009

De repente, nas profundezas do bosque

Amós Oz é um escritor israelense, nascido em 1939, que sempre está entre os favoritos ao Nobel de Literatura. Selecionei um trecho de um belo livro seu, De repente, nas profundezas do bosque:

“Era um peixe pequeno, um peixinho, com o comprimento de meio dedo, com escamas prateadas e nadadeiras delicadas, branquiadas, espelhadas e trêmulas. Um olho de peixe redondo e arregalado ao máximo mirou os dois por um instante como se sugerisse a Maia e Mati que todos nós, todos os seres vivos sobre este planeta, pessoas e animais, aves, répteis, larvas e peixes, na realidade todos nós estamos bem próximos uns dos outros, apesar de todas as muitas
diferenças entre nós: pois quase todos nós temos olhos para ver formas, movimentos e cores, e quase todos nós ouvimos vozes e ecos, ou pelo menos sentimos a passagem da luz e da escuridão através da nossa pele. E todos nós captamos e classificamos, sem parar, cheiros, gostos e sensações.

Isso e mais: todos nós sem exceção nos assustamos às vezes e até mesmo ficamos apavorados, e às vezes todos ficamos cansados, ou com fome, e cada um de nós gosta de certas coisas e detesta outras, que nos inspiram temor ou aversão. Além disso, todos nós sem exceção somos sensíveis ao extremo. E todos nós, pessoas répteis insetos e peixes, todos nós dormimos e acordamos e de novo dormimos e acordamos, todos nós nos empenhamos muito para que fique tudo bem para nós, não muito quente nem frio, todos nós sem exceção tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura. Pois cada um de nós pode ser amassado com facilidade. E todos nós, pássaro e minhoca, gato menino e lobo, todos nós nos esforçamos a maior parte do tempo em tomar o máximo cuidado possível contra a dor e o perigo, e apesar disso nós nos arriscamos muito sempre que saímos para correr atrás de comida, atrás de uma brincadeira e também atrás de aventuras emocionantes.

E assim, disse Maia depois de refletir sobre esse pensamento, e assim no fundo é possível dizer que todos nós sem exceção estamos no mesmo barco: não apenas todas as crianças, não apenas toda a aldeia, não apenas todas as pessoas, mas todos os seres vivos. Todos nós. E ainda não sei bem dizer se as plantas são um pouco nossos parentes distantes.


Logo, disse Mati, quem debocha dos outros passageiros na realidade é um bobo que está no mesmo barco. E não existe aqui nenhum outro barco.”
Amós Oz (2005, p. 45-47) em De repente, nas profundezas do bosque
"We are like butterflies that flutter for a day and think it's forever"
Carl Sagan


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Desconstruindo Darwin

Esse texto foi publicado no número 3 da revista Biosferas (da Unesp-Rio Claro), uma edição especial em comemoração aos 150 anos do Origem das espécies.

Desconstruindo Darwin


Os manuscritos do mar Morto foram escritos entre o século III a.C. e o I d.C. Eles formam uma coleção de pergaminhos descobertos entre 1947 e 1956 em uma caverna em Israel. Em um deles, o escriba comentou: "Não existe nenhum homem capaz de contar a história inteira". Essa frase se encaixa perfeitamente na idéia que temos sobre a história do desenvolvimento da teoria evolutiva. Apesar de sua incomparável importância para o pensamento humano, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), nascido há exatos 200 anos, não é o único nome que deve ser lembrado quando discutimos evolução. Da mesma forma, referir-se ao evolucionismo apenas como darwinismo desconsidera uma série de autores essenciais para a história da biologia.

A obra seminal de Darwin é o "Sobre a origem das espécies", publicado em 1859. Nele podem ser identificadas pelo menos cinco diferentes teorias, todas elas compondo o corpo principal de um amplo projeto de pesquisa, o evolucionismo darwiniano. Nenhuma dessas cinco teorias é original de Darwin, nem mesmo a idéia de seleção natural como o mecanismo responsável pela diversificação das espécies.

A primeira das teorias baseia-se na concepção de que o mundo vivo não é estável e imutável como imaginava Aristóteles e grande parte dos religiosos que adotaram a visão de mundo desse filósofo grego. Darwin sustenta que a natureza está em um processo contínuo de transformação no tempo e que os organismos não foram criados por uma entidade sobrenatural. Essa idéia não é darwiniana: Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) já falava sobre o transformismo das espécies, assim como Robert Chambers (1802-1871) no seu “Vestígios da história da criação”, de 1844, e George Louis de Buffon (1707-1788). Esse último, em sua obra longa e multifacetada “História Natural”, dizia que o centro de origem das espécies teria sido a Europa. A partir de dispersões para outras áreas, como o continente africano e a América do Sul, as espécies originais se degeneraram (ou seja, pioraram), dando origem a novas espécies.

Como complemento à concepção de uma natureza em processo constante de modificação no tempo, segundo outra das teorias presentes no “Origem”, o processo de descendência com modificação seria lento e gradual, não ocorrendo saltos para a origem de novos tipos. Dessa forma, as descontinuidades encontradas no mundo natural seriam meramente exceções – a inexistência de muitas formas intermediárias fósseis, por exemplo, refletiria apenas a imperfeição do registro paleontológico.

Darwin ainda apontou que as populações de qualquer espécie apresentam inúmeras variações. Os gatos (Felix catus) não são todos idênticos, assim como as moscas Drosophila melanogaster ou os diferentes Homo sapiens. Qualquer pessoa com um senso mínimo de observação da natureza pode perceber que essa idéia levantada por Darwin é óbvia, ainda que importantíssima no contexto da teoria evolutiva.

Uma das premissas revolucionárias do "Origem" é a hipótese de que todos os organismos encontrados na natureza compartilham um ancestral comum em algum nível hierárquico. Isso significa que, dadas quaisquer duas espécies (por mais distantes que sejam, como uma planária e um tiranossauro), elas sempre terão um ancestral em comum – mesmo que ele tenha vivido há centenas de milhões de anos. Esse é o raciocínio genealógico aplicado à compreensão das relações entre as espécies. A idéia de ancestralidade comum destrói qualquer pretensão humana em ocupar uma posição privilegiada na natureza: nossa espécie corresponde apenas a um raminho na imensa árvore evolutiva que reúne todas as milhões (bilhões?) de espécies existentes desde a origem da vida, há cerca de 3,8 bilhões de anos. Ainda no século XVIII, Buffon já havia tratado de ancestralidade comum.

Apesar da importância fundamental dessas quatro teorias para a concepção de evolução, o “Origem das espécies” é lembrado principalmente por trazer, de forma detalhada, a descrição do mecanismo pelo qual as espécies se modificariam no tempo, a seleção natural. Partindo dos trabalhos do economista britânico Thomas R. Malthus (1766-1834) com populações humanas, Darwin percebeu que, como deveriam ser produzido mais indivíduos do que os recursos disponíveis permitiriam – uma vez que a capacidade de reprodução dos organismos é alta – deve existir algo como uma luta pela existência entre os indivíduos das populações, resultando na sobrevivência de apenas parte dos filhotes de cada geração. O que define a sobrevivência ou não de um indivíduo é sua constituição hereditária. A esse processo de sobrevivência diferencial Darwin deu o nome de seleção natural. No correr das gerações, a seleção natural conduziria a uma mudança gradual e contínua das populações, isto é, à evolução e origem de novas espécies.

Charles Darwin foi o "descobridor" da seleção natural? Difícil dizer com certeza. Ele foi um grande compilador, com um talento inegável para correlacionar evidências e dados de observação para sustentar suas teorias. No entanto, a história do pensamento evolutivo mostra que muitos outros autores quase "chegaram lá".

Em 1831, o naturalista escocês Patrick Matthew (1790-1874) esboçou a primeira descrição da seleção natural: “Há uma lei universal na natureza que tende a conferir a todo ser reprodutivo as melhores condições possíveis (...) modelando seus poderes físicos, mentais ou instintivos à sua perfeição”. Antes de Matthew, no século XVIII, Buffon já havia comentado algo a respeito. William Charles Wells (1757-1817) foi outro que discutira a seleção natural na espécie humana, no começo do século XIX. Além desses, também o naturalista britânico Alfred R. Wallace (1823-1913) levantou a hipótese da seleção natural independentemente de Darwin, o que resultou em uma publicação conjunta de ambos na revista da Sociedade Real britânica, no ano de 1858. Wallace contou com a ajuda de Henry W. Bates (1825-1892). Ambos, trabalhando na Amazônia, chegaram à mesma conclusão darwiniana a respeito do processo evolutivo, considerando ainda a importância da distribuição geográfica no processo de especiação.

Wallace e Bates trabalhavam de forma obsessiva-compulsiva, chegando a passar 16, 18 horas seguidas coletando no infernal calor amazônico. Bates viveu no Brasil por onze anos, enviando mais de oito mil novas espécies de insetos para a Inglaterra durante esse tempo! Além da Amazônia, Wallace passou um longo período no arquipélago Malaio, sempre compilando toneladas de informações em trabalhos amplos. Ele não tinha a mesma reputação científica que Darwin, já conhecido como naturalista por conta de obras importantes como sua monografia sobre cracas. A pequena fama de Wallace à época do lançamento do “Origem das espécies”, e mesmo depois, pouco tem a ver com a qualidade do seu trabalho e mais com a genealogia: Darwin era de família abastada, Wallace não. O primeiro trabalhava em sua casa de campo; o segundo ganhava a vida no campo de fato. Também pode tê-lo afastado das primeiras sínteses históricas do evolucionismo o pendor espiritualista de Wallace, para quem todos os organismos passavam pelo processo da seleção natural, menos o homem, que teria sido "ungido" por Deus com sua inteligência extraordinária.

A história da teoria evolutiva nos mostra que muitos autores anteriores à Darwin haviam chegado a concepções muito semelhantes às suas. A teoria da evolução, atualmente, está anos à frente do que Darwin dizia ou mesmo do que ele teria condições de pensar, com base na ciência do seu período. Hoje se sabe, por exemplo, que o papel do acaso é tão (ou, para alguns, mais) determinante que a seleção natural. Pode-se estudar evolução em outros níveis que não o estritamente populacional – parece haver competição até mesmo entre genes!

Darwinismo, portanto, não deve ser visto como sinônimo de evolucionismo. Dizer isso não é desrespeitar o legado de Darwin mas sim preservar a importância da sua obra dentro do contexto histórico. Não há heróis absolutos, sem falhas, perfeitos em todos os seus quesitos, detentores da sabedoria completa de uma área do conhecimento. Como citado em um dos manuscritos do mar morto, ninguém pode escrever sozinho a história. Devemos desconstruir nossos heróis intelectuais para que a essência do seu gênio prevaleça.