sexta-feira, 26 de março de 2010

Religulous

Acabei de assistir ao documentário Religulous, de 2008, dirigido por Larry Charles, escrito e apresentado pelo comediante norte-americano Bill Maher. O filme foi indicação do saudoso Dedalus (do blog Atlas) durante uma conversa nos corredores da universidade em que lecionamos. Abusando do sarcasmo, Maher faz um trabalho semelhante ao de Richard Dawkins no documentário “The Root of All Evil” (uma síntese das idéias presentes em “Deus, um Delírio”), porém com maior ênfase nos aspectos cômico-trágicos das crenças religiosas. Em tom satírico, nem por isso pouco sério ou raso, o sujeito mostra que, se interpretadas literalmente, muitas das religiões não passam de arremedos de péssimas histórias de ficção.

Segue o trailer do documentário:



Algumas passagens do filme são marcantes:

(...) a religião deve morrer para a humanidade sobreviver. Está ficando tarde demais para deixarmos decisões tão importantes serem tomadas por religiosos, por irracionalistas, por aqueles que tomariam as decisões do estado não com uma bússola, mas pelo equivalente à leitura das tripas de uma galinha
“A religião é perigosa porque permite aos seres humanos, que não têm todas as respostas, acreditar que eles as têm”
“A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas
A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas
É por isso que pessoas racionais, anti-religiosas, devem perder a timidez, sair do armário e se expressar. E os que se consideram moderadamente religiosos precisam olhar no espelho e reconhecer que o alívio e conforto que a religião lhes traz na verdade vem a um custo muito alto. Se você pertencesse a um partido político ou a um clube social que estivesse ligado a tanta inveja cega, ódio a mulheres, homofobia, violência e desvio de ignorância como é a religião, resignar-se-ia em protesto. Agir de outra forma é ser um conivente, uma esposa da máfia, com os verdadeiros demônios do extremismo que extraem legitimidade dos bilhões de seus companheiros de viagem
Se o mundo chegar ao fim aqui ou em qualquer lugar, ou se avançar com dificuldades no futuro, dizimado pelos efeitos de uma religião inspirada pelo terrorismo nuclear, vamos lembrar qual era o verdadeiro problema. Que aprendemos a precipitar a morte em massa antes de superarmos o distúrbio neurológico do desejo por isso. É isso. Crescer ou morrer
Ao terminar de assistir ao "Religulous", veio a minha mente um conto de Isaac Asimov (1920-1992), um dos mais prolíficos divulgadores das ciências e grande escritor de ficção científica (lembro-me bem que a morte de Asimov, quando eu tinha 12 anos, provocou-me uma inexplicável sensação de vazio. Guardo até hoje a primeira página do Caderno 2 com a notícia triste). A história curta é "Ao cair da noite" (Nightfall), publicada originalmente em 1941 na revista Astounding Science Fiction. Um trecho em especial me chama a atenção sempre que releio o conto:

“__ (...) A sua suposta explicação apóia os nossos dogmas mas, ao mesmo tempo, torna-os desnecessários. O senhor transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isso é uma blasfêmia!
__ Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
__ Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
__ Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
__ Eu sei!”
Crescer ou morrer.

sábado, 6 de março de 2010

Apenas humanos

“(...) as teorias científicas são interpretações daquilo que percebemos e acreditamos existir no mundo dos fenômenos naturais. O mundo não oferece, de maneira clara, perceptível e inequívoca, os elementos necessários para que possamos compreendê-lo. Nenhuma teoria científica pode se pretender capaz de reproduzir integral e fidedignamente os fenômenos naturais. Toda e qualquer teoria científica, independendo do seu domínio de aplicação, é uma representação da natureza.”
Antonio Augusto Passos Videira (2000), Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

“(...) todos os que deliberam sobre um caso duvidoso devem ser isentos de ódio, de amizade, de ressentimento e de compaixão: aquele obnubilado por essas prevenções tem muita dificuldade de discernir a verdade, e nunca alguém serviu ao mesmo tempo sua paixão e seus interesses. Se vosso espírito é livre, ele pode tudo. Se a paixão o possui, ela domina, e a inteligência nada mais pode.”
Caio Júlio César (5 de dezembro de 63 a.C.), imperator e ditador vitalício de Roma

A linguagem da ciência, como qualquer produto do intelecto humano, é mais do que apenas uma replicação do mundo. Em seu bojo, ela traz objetivos, intenções, desejos e conhecimentos prévios, que partem da premissa de que os discursos dos cientistas sobre a natureza – suas teorias – devem estabelecer diretamente relações de correspondência com a natureza sendo descrita. Assim, os conceitos utilizados pela ciência referem-se ao mundo. Nos últimos tempos, em algumas de minhas aulas ou em correspondências de alunos e curiosos, tenho sido reiteradamente perguntado se acredito que o ponto de vista científico é capaz de explicar a realidade. Minha resposta não poderia ser outra: sim. No entanto, isso não significa dizer que apenas o discurso científico é capaz de expressar o assombro dos homens perante a natureza, em suas mais diferentes manifestações. Além disso, qualquer cientista no século XXI sabe que nossa espécie apenas engatinha na tentativa de compreender o que observamos à nossa volta.


Não conhecemos detalhadamente a constituição de grande parte do universo. Há questões fundamentais pairando sobre assuntos tão díspares quanto a constituição da matéria escura, como se formam buracos negros, se existem “buracos de minhoca”, qual o discreto charme das partículas elementares, como são as interações entre as forças (fraca, forte, gravitacional e eletromagnética) na sua totalidade, se as supercordas compõem o tecido do cosmo, como se parecem os multiversos, onde e como nascem as estrelas... O quadro não se torna muito mais claro quando ao nos aproximarmos do que nos parece mais tangível. Temos várias hipóteses para explicar a origem da vida, muitas delas plausíveis (algo indesejável, uma vez que apenas uma dessas teorias pode estar correta). Qualquer um que acompanha a literatura técnica sabe que existem diversas reconstruções possíveis sobre como se deu a evolução das espécies desde a aurora dos seres vivos. Ainda não compreendemos o que nos estimula a amar e odiar, o que causa a empatia entre pessoas, quais os fatores que possibilitaram o desenvolvimento do nosso complexo comportamento social. Sabemos muita coisa, o que é pouco (pouquíssimo) perante a grandeza de um universo com no mínimo 15 bilhões de anos de idade. O Homo sapiens é uma espécie nova, perdida, cheia de medos e dúvidas, muitas das quais dificilmente serão respondidas antes da nossa extinção.


Cientistas estão à procura de evidências. Richard Dawkins, em sua entrevista na Feira Literária de Paraty (no Rio de Janeiro), ano passado, disse que, se confrontado com Deus (na possibilidade de que ele exista) às portas do céu (ou do inferno?), ele diria algo como “Desculpe-me, Deus, mas simplesmente não havia evidências suficientes”. Para a ciência, testemunhos não são evidências fortes, por vezes nem mesmo sugerem possíveis caminhos a se percorrer para a resolução de algum problema. Válidos nos tribunais, testemunhos pouco podem fazer no contexto do escrutínio científico. A ciência deve ser falseável e repetível e observadores independentes precisam chegar aos mesmos resultados previstos na hipótese inicial. Argumentos de autoridade, baseados exclusivamente na presumida experiência dos envolvidos, devem ser extirpados do discurso científico como tumores malignos. Na biologia, a questão da autoridade imiscuiu-se em áreas de pesquisa tão importantes quanto a taxonomia tradicional, com resultados vexatórios. Em “Biologia, uma ciência única” (publicado no Brasil em 2006), o ornitólogo Ernst Mayr escreveu que a teoria da tectônica de placas não causara grande impacto nas ciências biológicas. Um dos grandes evolucionistas do século passado e dispersalista confesso, com enorme dificuldade em aceitar que os continentes nem sempre estiveram na posição em que se encontram no presente, Mayr simplesmente desconsiderou quase 100 anos de pesquisa geológica e de evidências cumulativas que corroboram a hipótese inicial de Alfred Wegener (1880-1930), um dos primeiros defensores abertos da deriva continental. Mayr também nunca aceitou a sistemática filogenética de Willi Hennig (1913-1976). Por maior que tenha sido a contribuição do velho ornitólogo para a teoria da evolução, utilizar de argumentos de autoridade, tão refinados quanto “eu sei e você não”, é procedimento anticientífico. Com eles, corremos o risco de manipulações, falta de coerência, vaidade excessiva ou mesmo de incorrermos em falhas inconscientes (nem por isso menos irrelevantes).

Há inúmeros relatos de testemunhos de OVNIs, estátuas que choram sangue ou lágrimas verdadeiras, aparições de santos, espíritos, fantasmas, ou milagres. Muitos – talvez a grande maioria, como aponta Carl Sagan em “O mundo assombrado por demônios” (publicado no Brasil pela primeira vez em 1996 e ainda em catálogo) – são frutos de fraudes explícitas. Outros não. Alguém que passou por alguma dessas experiências aparentemente inexplicáveis pode se perguntar: "Como assim? Eu VI essas coisas!". Será mesmo? Nossas observações nunca são livres de hipóteses prévias. Muitas vezes, vemos apenas o que queremos, ou o que o entorno nos sugere. Pessoas em grupos de religiosos (ou fanáticos torcedores de futebol ou amantes da arte ou seguidores de uma tendência política ou cientistas em um congresso de sua área) tendem a adotar linhas de pensamento mais ou menos semelhantes. Como dito acima, comportamentos como o de manada, em que todos correm para o mesmo lado como búfalos fugindo de leões, nem sempre surgem a partir de elucubrações conscientes.

E curas milagrosas? O sujeito entra enfermo em uma igreja e sai um maratonista, pleno de saúde. Descontados a pletora de charlatões em busca de cinco minutos de fama ou de cinco notas de dez, como se explica esse tipo de coisa? Não me atrevo a responder, uma vez que minha área de atuação não é essa. No entanto, ainda não compreendemos as reais capacidades do nosso cérebro. É conhecido o efeito placebo, quando medicamentos sem princípio ativo – compostos de farinha ou apenas água – acabam funcionando. Nosso corpo tem acentua
da capacidade de auto-reparo, o que pode ser potencializado por processos fisiológicos ainda não conhecidos. É comum, por exemplo, adoecermos quando nosso estado de espírito não está exatamente festivo, assim como não é incomum nos sentirmos bem fisicamente quando estamos tranqüilos ou nos sentimos realizados. Evidência do sobrenatural? Não.Nesse contexto, ouvem-se de, maneira recorrente, certas opiniões a respeito de pacientes “desenganados” pela medicina, ou que foram comprovadamente curados após uma levada de cantorias no momento exato em que Jesus Cristo se fez presente no tablado do templo. Para alguns, dizer que algo foi “provado” pela medicina dá ao fato uma aura de segurança e confiabilidade que é ingênua. Na ciência, nada é provado, apenas corroborado momentaneamente. Quanto mais vezes uma hipótese ou teoria se mostra correta, maior o seu poder explanatório e sua capacidade de previsão, o que absolutamente não significa que ela foi provada. Médicos no geral não são bons cientistas. Muitos são crédulos, outros ignorantes. Na minha concepção pessoal, o rótulo "desenganado pela medicina” significa tanto quanto “relógio à prova d’água”. Conto um caso que aconteceu comigo apenas como ilustração divertida: certa vez, fui a um hospital especializado em ortopedia na cidade de Ribeirão Preto-SP. Havia quebrado o dedo indicador da mão esquerda. O sujeito, experiente, observou minha mão, viu meu dedo mindinho (que é torto por natureza, como o do meu pai) e falou: "É, vamos precisar mesmo operar esse seu dedo quebrado...". Mostrei para ele o outro dedo, arroxeado: "O dedo quebrado é esse". O sujeito (repito, um médico de um centro avançado de ortopedia!) ficou bastante encabulado... A maioria dos médicos segue fórmulas e, quando a situação foge ao seu conhecimento restrito, sempre é mais fácil apelar para o imponderável e o desconhecido.

A meu ver, o sobrenatural não é apenas algo ainda incompreendido. Antes da história escrita, ou mesmo nos seus primórdios, acreditava-se que a chuva, os trovões, os raios e os outros fenômenos da natureza eram demonstrações da atividade dos deuses (portanto, "sobrenaturais"). Hoje ninguém mais pensa assim. Há infinitos exemplos como esse.

Não acredito em milagres ou na intervenção divina sobre o homem. Existem questões teológicas muito, muito profundas nesse ponto. Santos são apenas criações humanas (o papa Bento XVI já canonizou mais de dez pessoas durante o seu papado), assim como a tal infalibilidade do papa. As igrejas evangélicas baseiam-se em interpretações humanas sobre textos escritos pelo homem (e apenas por ele) - a Bíblia é cheia de incoerências e incorreções e tem sua raiz em textos muito mais antigos que ela.

Somos todos humanos. Dessa forma, criamos deuses, milagres e lugares inatingíveis pra aplacar um pouquinho da nossa insignificância.

Referências

- Chalmers, A.F. 1993. O que é ciência, afinal? Editora Brasiliense, São Paulo.
- Dawkins, R. 2001. O relojoeiro cego. Companhia das Letras, São Paulo.
- El-Hani, C.H. & Videira, A.A.P. 2000. O que é vida? Para entender a Biologia do Século XXI. Relume Dumará, Rio de Janeiro.
- Mayr, E. 2006. Biologia, ciência única. Companhia das Letras, São Paulo.
- Nelson, G. & Platnick, N. I. 1981. Systematics and biogeography: Cladistics and vicariance. Columbia University Press, New York.
- Sagan, C. 1996. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras, São Paulo.
- Schmidt, J. 2006. Júlio César. Editora L&PM, Porto Alegre.