sábado, 9 de novembro de 2013

Breves resenhas: Comer Animais, de Jonathan Safran Foer (2011)

O que podemos entender como uma moralidade pós-Darwiniana? Para alguns, ela trata também do direito de espécies não-humanas (ou mesmo pós-humanas, como discutido aqui).

Dentro dessa perspectiva, é premente discutir alternativas ao consumo desenfreado de proteína animal - além das questões sócio-culturais que levam muitos a considerar que está bem nutrido apenas aqueles que comem grandes quantidades de carne.

Em seu primeiro livro de não ficção, Jonathan Safran Foer, autor de Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (adaptado para as telas em 2011), retrata, com detalhes muitas vezes horripilantes, a agricultura agroindustrial nos Estados Unidos, mostrando a realidade subjacente à criação intensiva de porcos, bois, aves e a pesca em larga escala. Diante do quadro descrito por Foer em Comer Animais, parece-me desonesto simplesmente optar pela ignorância.

Selecionei alguns trechos da obra, que reproduzo abaixo:

p. 37
A internet está abarrotada de vídeos de pesca. Rock de segunda como trilha sonora para homens se comportando como se acabassem de salvar a vida de alguém após terem trazido a bordo um exausto marlim ou um atum-azul. E ainda existem os subtipos: mulheres de biquíni com bicheiros [um tipo de picareta usada para puxar peixes maiores quando eles ficam ao alcance do pescador], crianças pequenas com bicheiros, usuários de primeira viagem. Olhando para além do ritualismo bizarro, minha mente se volta a toda hora para os peixes nesses vídeos, para o momento em que o bicheiro está entre a mão do pescador e os olhos da criatura... 
Nenhum leitor deste livro toleraria alguém balançando uma picareta na cara de um cachorro. Nada seria tão óbvio ou menos carente de explicação. Seria essa preocupação moralmente inaplicável aos peixes, ou nós é que somos tolos por ter essa preocupação inquestionável com os cachorros? Será que o sofrimento de uma morte prolongada é cruel o suficiente para ser infligido a qualquer animal capaz de experienciá-lo ou apenas a alguns animais?

Será que a familiaridade com os animais que passamos a conhecer como companheiros poderia nos servir de guia enquanto pensamos naqueles que comemos? Quão distantes são os peixes (ou vacas, porcos e galinhas) de nós no esquema da vida? Será um abismo ou uma árvore aquilo que define a distância? Será que a proximidade e a distância chegam a ser relevantes? Se algum dia encontrássemos uma forma de vida mais forte e mais inteligente do que a nossa, e ela nos considerasse como nós consideramos os peixes, qual seria nosso argumento contra virar comida? 
Nós nos importamos mais com o que está próximo e esquecemos com uma facilidade incrível tudo o mais.
p. 40
Em termos globais, aproximadamente 450 bilhões de animais terrestres são criados em escala industrial todos os anos. 
p. 51
De acordo com a ONU, o setor pecuarista é responsável por 18% das emissões de gás estufa, cerca de 40% a mais do que todo o setor de transportes... os onívoros contribuem com um volume de gases de efeito estufa sete vezes maior do que os veganos. 
p. 176
Todo esse imenso Golias que é a indústria de alimentos é, em última instância, impulsionado e determinado pelas escolhas que fazemos enquanto o garçom aguarda impaciente nosso pedido ou na qualidade prática ou extravagante daquilo que colocamos em nossos carrinhos no supermercado ou na sacola da feira. 
p. 177
As mais bem-sucedidas batalhas legais contra essas granjas industriais nos Estados Unidos focalizaram seu incrível potencial poluente. (Quando se fala nos danos ecológicos causados pela criação animal, essa é uma parte grande daquilo a que se referem). O problema é bastante simples: quantidades colossais de merda. Tanta merda e tão mal manejada que vaza para rios, lagos e oceanos, matando a vida selvagem e poluindo o ar, a água e a terra, de modos devastadores à saúde humana. 
p. 178-180
(...) animais de criações industriais nos Estados Unidos produzem 130 vezes mais excrementos do que a população humana – mais ou menos quarenta mil quilos de merda por segundo. (...) para compreender os efeitos da liberação dessa quantidade de merda no meio ambiente, precisamos saber um pouco do que há nela: (...) amônia, metano, sulfeto de hidrogênio, monóxido de carbono, cianeto, fósforo, nitratos e metais pesados. Junte-se a isso o fato de que os dejetos criam mais de cem patógenos microbianos que podem deixar os humanos doentes, incluindo salmonela, cryptosporidium, estreptococos e giárdia. (...) a merda se tornou um problema apenas quando nós (...) decidimos que queríamos comer mais carne do que qualquer outra cultura na história e pagar por isso um preço historicamente baixo. 
p. 183
Nossa atual forma de comer (...) recompensa as piores práticas concebíveis. 
p. 185-186
Problemas ambientais podem ser rastreados por médicos a agências governamentais cuja tarefa é cuidar de seres humanos. Mas como descobrimos o sofrimento de animais em criações industriais, que necessariamente não deixa rastros? 
Investigações secretas, realizadas por dedicadas organizações sem fins lucrativos, estão entra as únicas janelas significativas que o público tem para o imperfeito funcionamento cotidiano de criações e abatedouros industriais. Numa instalação para criação de porcos, na Carolina do Norte, filmes feitos por investigadores disfarçados mostraram alguns trabalhadores administrando surras diárias, dando pauladas em porcas grávidas com uma chave inglesa e cravando uma estaca de ferro trinta centímetros dentro do reto e da vagina de porcas. Nada disso tem a ver com melhor o gosto da carne ou em preparar os porcos para o abate, são mera perversão. Em outras dependências da granja, também gravadas, empregados serravam as pernas dos porcos e lhes tiravam a pele enquanto eles ainda estavam conscientes. Em outras instalações, operadas por um dos maiores produtores de carne de porco dos Estados Unidos, funcionários foram filmados atirando os porcos para cima, batendo neles e chutando-os; golpeando-os com força contra o chão de concreto e dando-lhes pauladas com bastões e martelos de metal. Em outra granja, uma investigação que durou um ano inteiro descobriu o abuso sistemático contra dezenas de milhares de porcos. A investigação documentou funcionários apagando cigarros na barriga dos animais, batendo neles com ancinhos e pás, estrangulando-os e jogando-os em poços de esterco para que se afogassem. Funcionários também enfiavam aguilhões elétricos nas orelhas, bocas, vaginas e ânus dos porcos. A investigação concluiu que os gerentes toleravam esses abusos, mas as autoridades se recusaram a processá-los. A ausência de processos é norma, não exceção. Não estamos num período de “negligência” – simplesmente nunca houve uma época em que as companhias pudessem esperar sérias ações punitivas ao serem surpreendidas maltratando animais. 
p. 197
Abrir mão do sabor do sushi ou do frango grelhado é uma perda que se estende para além de uma experiência gastronômica agradável. Mudar o que comemos e deixar os sabores sumirem gradualmente da nossa memória criam uma espécie de perda cultural, um esquecimento. Mas talvez valha a pena aceitar esse tipo de esquecimento e até mesmo cultivá-lo (o esquecimento também pode ser cultivado). Para me lembrar dos animais e da minha preocupação com seu bem-estar, eu talvez precise perder certos sabores e encontrar outros apoios para as memórias que eles um dia me ajudaram a carregar.
Referência
Foer, Jonathan Safran. 2011. Comer Animais. Editora Rocco, 320 páginas.

Crédito da Imagem: www.rollingstone.com

6 comentários:

Peterson Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Peterson Lopes disse...

Admiro o autor e acompanho suas publicações já há algum tempo. Além disso, pretendo contribuir para mais reflexões, das quais sempre espero sair menos ignorante do que entrei (a filosofia pressupõe amor ao conhecimento, algo só atingível para aqueles conscientes de sua ignorância).
Muito bem colocado um tema que chega a ser horripilante. "Carnificina gratuita", por assim dizer.
A ignorância premeditada é uma postura mental débil. Ter consciência do sofrer alheio (seja de qual espécie for) nos faz capazes de refletir e fazer escolhas. E "causar sofrimento, custe o que custar" é uma opção intrinsecamente infesta (e egoísta, se imbuída de autopreservação: “posso causar, mas não sentir, sofrimento”).
Porém, vejo uma sobreposição parcial entre dor e sofrimento. Não necessariamente estão vinculados, dependendo das definições adotadas.
Seria a dor uma sensação exclusivamente conferida por nocioceptores (fazendo de um cogumelo uma criatura análgica)? Seria o sofrimento apenas a sensação causada pela dor (independente de sua natureza) ou incutiria a capacidade de suportar e perseverar com ela? Já li um bocado sobre filósofos (e.g., Kierkegaard e Sócrates) que diferenciam dor e sofrimento. E se a resposta para algumas das questões precedentes (especialmente a última) for afirmativa, é possível que apenas os seres humanos sejam capazes de sofrer, dentre os capazes de sentir dor. Colocando de outra mentira, atribuir um deles como uma exclusividade aos seres humanos não acarreta necessariamente em uma postura especista (retomo o termo por achar excelente o tópico anterior, que não tive tempo de comentar); podemos estar falando apenas de uma autapomorfia. O especismo está na atribuição de valores a essas singularidades, algo que prefiro deixar de lado, no momento.
A aversão atual que existe em relação à dor dificulta nossa existência. A dor é um elemento importante na definição de nossa identidade e no estabelecimento das nossas fronteiras sociais. As crianças não devem ser privadas da dor (essa atitude costuma produzir jovens temerários, ávidos por senti-la e, quiçá, causá-la) e os analgésicos não devem ser engolidos ao mero sinal de dor.
Já o sofrimento não deveria ser imposto sobre outrem. "Sofrer" é uma decisão autônoma. Senna se impunha sofrimentos para buscar a vitória, mas exigir o mesmo de outro piloto é, no mínimo, um ato impensado. Sócrates decidiu ignorar seu sofrimento às portas da morte por imaginar que sua execução, embora injusta, fosse inescapável. E podemos aplicar essa concepção de sofrimento a outras espécies. Que dizer, por exemplo, dos carcajus que rebentam a própria pata presa em uma armadilha para verem-se livres (é possível que a dor da ferida fosse menor que o sofrimento por estar preso e à mercê da morte repentina)?
Dado isso tudo, imagino que comer outros animais não é, necessariamente, um ato vil, nem tampouco repreensível. Estamos, assim como muitas outras espécies, adaptados a isso. Matamos animais e plantas para comermos—e julgar as plantas (ou as sementes... Pobres embriões!) menos merecedoras da vida por não sentirem dor parece uma decisão arbitrária e perigosamente amoral (Se fizermos uma redução ao absurdo, poderíamos chegar a algo do tipo "se eu aplicar anestesia à vítima, posso matá-la"). Matar é herança da condição heterotrófica.
O que incomoda (cf. o tópico original) é ignorar, sem buscar minimizar, a dor alheia. Aceito que haja dor na morte do alimento, desde que ela não seja evitável ou não acarrete em sofrimento do ser abatido ou de outros (sejam ou não seus semelhantes). Penso que um pescador que se debata a unhas, dentes e bicheiros (sendo esses seus últimos recursos) com um peixe que aplacará sua fome está agindo corretamente. Por outro lado, um senhor endinheirado que pratique, no mesmo rio, a pesca esportiva (no estilo "passo 1: anzol atravessando as maxilas e passo 2: volte ao rio, meu 'amigo' peixe"), estaria causando dor desnecessária a outro ser, e esse sim, estaria incorrendo em um deslize ético.

Dr. Charles Morphy D. Santos disse...

Meu caro Peterson,

Obrigado pelo comentário!
A questão, no meu entender, tem muito mais a ver com o consumo desenfreado de carne, que só é possível através da criação intensiva, em confinamento, de aves, porcos, vacas, etc, do que com a substituição total de proteína animal pela vegetal.
Com essa oferta gigantesca de proteína animal, a maioria absoluta da população se acha bem nutrida porque come carne (repleta de hormônio e, no caso das aves, de merda mesmo, misturada à água utilizada durante o congelamento anterior ao envase). Se déssemos mais atenção à pletora de itens alimentares que podemos consumir, as coisas não estariam tão tétricas.
Os hominídeos, evolutivamente, tiveram no consumo de carne um fator externo extraordinariamente potente relacionado ao aumento da capacidade cerebral. No entanto, há alguns milhares de anos, não comíamos só o Friboi do Tony Ramos... Defendo que as pessoas sejam educadas a conhecer o que comem, para evitar que essa tradição de coisificação da natureza se perpetue indefinidamente.
Sobre o sofrimento, ele de fato depende da existência prévia de nociceptores, mas não se baseia apenas neles. Para alguns autores (estou escrevendo sobre isso e pretendo postar em breve), a experiência do sofrimento relaciona-se à capacidade cognitiva e à possibilidade de antever a dor. Há trabalhos mostrando que o nível de cortisol (o "hormônio do stress") em animais confinados e próximos do abate aumenta muito.
Como você disse, é deplorável e execrável práticas humanas que causam dor em outros animais pelo simples prazer sádico (pesca "esportiva", rinhas de galo, touradas e afins). Mas rodízios de carne também não me parecem tão defensáveis...

Grande abraço!

Peterson Lopes disse...

Ah... Meu bom Charles! Acho que chegamos a um consenso (que, afinal, não estava longe). O consumo exacerbado de proteína animal pode trazer consequências medonhas. Ainda penso que é possível a criação para o abate e o consumo, desde que o sofrimento seja evitado ao máximo (algo longe de ocorrer na maioria das granjas).

Além disso, ainda temos envolvidas questões de sustentabilidade. Se a todos fosse dada tanta carne quanto clamam suas entranhas, estaríamos ainda fadados a uma catástrofe ecológica, mas sua aproximação seria vertiginosa...

Abraço!

Gerardo Furtado disse...

Caro Prof. Charles,
numa palavra: parabéns!

Anônimo disse...

'Cartório' de animais vira franquia e registra até cacatua de Chiquinho Scarpa

http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/12/17/cartorio-de-animais-vira-franquia-e-registra-ate-cacatua-de-chiquinho-scarpa.htm