Como muitas crianças brasileiras nascidas entre o final dos
anos 1970 e o início dos anos 1980, eu e meu irmão crescemos lendo gibis. De
todos os tipos: Marvel, DC, Turma da Mônica, Disney, Trapalhões, Recruta Zero
ou qualquer outra história em quadrinhos que caísse em nossas mãos. A maioria
delas publicada nos saudosos formatinhos da Editora Abril, que comprimiam a
arte original, cortavam quadros e recriavam diálogos e personagens. Obviamente
adorávamos super-heróis. O Demolidor era um dos nossos favoritos, especialmente
nas histórias escritas pelo Frank Miller.
Em 1992, na edição 124 da revista Superaventuras Marvel, uma
HQ do personagem, com os desenhos estilizados de John Romita Jr., pareceu-nos
completamente deslocada, pois não trazia vilões convencionais e uma profusão de
tiros, socos e pontapés. Intitulada Genetrix, a trama discutia, entre outros
temas, ganância e exploração animal.
Escrita pela jornalista norte-americana Ann Nocenti, desde
os primeiros quadros a postura da história ficava clara: nossa espécie se
caracteriza pela ignorância e, por conta dela, é explorada por seus pares (e
explora as demais espécies do globo). Fiz uma tradução livre dos balões e recordatórios (clique para ver em tamanho maior)...
Como aqueles que acompanham esse blog sabem, sou biólogo e
meu principal foco de interesse em pesquisa é a teoria da evolução, em seus
mais diversificados aspectos. É provável que qualquer pessoa interessada nessa
área conheça a importância da alimentação para a evolução dos hominídeos,
família de animais cuja história iniciou-se no mínimo há 14 milhões de anos, e
que inclui quatro gêneros viventes – Pan (chimpanzés e bonobos), Gorilla, Pongo
(orangotangos) e Homo (humanos). Nas palavras de Vaclav Smil, autor do livro
“Should we eat meat? Evolution and consequences of modern carnivory” (Devemos
comer carne? Evolução e consequências da carnivoria moderna), publicado em
2013:
Não há dúvida que a evolução humana esteve conectada à carne de muitas maneiras fundamentais. Nosso trato digestório não é obrigatoriamente de um herbívoro; nossas enzimas evoluíram para [sic] para digerir carne cujo consumo levou a um aumento da cefalização e maior crescimento físico. A caça cooperativa promoveu o desenvolvimento da linguagem e da socialização; a evolução das sociedades do Velho Mundo foi, em certa medida, baseada na domesticação de animais; em sociedades tradicionais, comer carne, mais do que o consumo de qualquer outro gênero alimentício, tem levado à preferências fascinantes (...); e as agriculturas ocidentais são obviamente muito orientadas para a produção de carne.
(...) Matar animais e comer carne têm sido componentes significantes da evolução humana com uma relação sinérgica com vários outros atributos que nos fazem humanos, tais como cérebros maiores, estômagos menores, bipedalismo e linguagem. Cérebros maiores se beneficiaram do consumo de proteínas de alta qualidade, contidas em dietas baseadas em carne; além disso, a caça e a matança de animais grandes, o desmembramento de suas carcaças e o compartilhamento de carne inevitavelmente contribuíram para [sic] a evolução da inteligência humana, em geral, e para o desenvolvimento da linguagem e capacidade de planejamento, cooperação e socialização, em particular.
Compreender a importância da ingestão de proteína animal
para a evolução dos hominídeos é muito diferente de defender coisas como essas:
Essas são fotos retiradas de fazendas industriais da
Smithfield Foods, a maior e mais lucrativa produtora de carne de porco do
mundo. Em 2006, ela foi responsável pela morte de 26 milhões de animais.
Segundo Jeff Tietz, autor do artigo “Boss Hog”, publicado na Rolling Stone, o
peso desses porcos abatidos seria o equivalente ao da população das trinta e
duas maiores cidades dos Estados Unidos. Em apenas um ano! Ainda nesse mesmo
artigo, Tietz levanta uma série de dados assustadores:
- porcos produzem três vezes mais excrementos que a nossa
espécie. No total, a Smithfield Foods produz mais de 26 milhões de toneladas de
fezes por ano;
- em 2006, o total de vendas da Smithfield Foods foi de 11.4
bilhões de dólares. Caso a companhia tratasse seu lixo fecal como a maioria dos
governos civilizados faz, o investimento seria tão alto que ela PERDERIA
dinheiro. As lagoas de merda das fazendas industriais da Smithfield Foods –
descritas como um contínuo de poluentes semelhante a uma piscina radioativa –
cobrem aproximadamente 120.000 metros quadrados de um líquido rosa resultante
da mistura de ossos esmagados, carne podre, cartilagens, hormônios, sangue,
seringas de antibióticos, fezes, pelos, urina, produtos de limpeza, latas de
inseticidas e drogas diversas. É um ambiente propício para a proliferação de
salmonella, cryptosporidium e estreptococos (cada grama de merda da Smithfield contém
mais de 100 milhões de coliformes fecais);
- Essas lagoas contêm altas quantidades de amônia, sulfeto
de hidrogênio, monóxido de carbono, cianeto, fósforo, nitratos e metais
pesados. As lagoas são tão venenosas que há dezenas de relatos de empregados da
empresa que morreram ao cair em uma delas (ou ao tentarem salvar companheiros
que sofreram tamanho infortúnio);
- os porcos da Smithfield vivem em celeiros semelhantes a
grandes armazéns, em intermináveis fileiras. São inseminados artificialmente em
gaiolas tão pequenas que eles não podem sequer mudar de posição, sem acesso a
luz do sol, palha, ar fresco ou terra;
- as temperaturas são altíssimas e o ar no interior dos
armazéns é saturado de gases provenientes dos produtos químicos e das fezes dos
animais. Dessa forma, os porcos são muito suscetíveis a doenças diversas, parasitas
e fungos. A solução encontrada pela Smithfield Foods foi aumentar as dosagens
dos antibióticos, vacinas e inseticidas, que mantêm os porcos em um estado
zumbi, até o momento em que são abatidos.
Para Joseph Lutter III, CEO da companhia por 31 anos (ela
foi vendida para o grupo chinês Shuanghui em setembro de 2013), “Os defensores
dos direitos animais querem impor uma sociedade vegetariana nos Estados
Unidos”. Ainda segundo ele, a maioria dos vegetarianos é neurótica! Possuidor
de uma das 500 maiorias fortunas do mundo (a empresa figura na posição de
número 213 em maio de 2013, segundo a revista Fortune), Lutter III parece
desconhecer que grande parte da população mundial sofre de algum tipo de
ansiedade, neurose ou outras desordens psicossomáticas...
Porcos sofrem na Smithfield Foods, mas a exploração animal
não se resumo a eles: aves e bovinos, criados exclusivamente para servirem de
comida, também vivem em condições por vezes piores do que as descritas acima. O
livro de Jonathan Safran Foer, Comer Animais, resenhado brevemente aqui, faz um
apanhado desses cenários.
Apesar de nunca ter sido um carnívoro estrito ou exagerado,
desses que salivam apenas em pensar na ida à churrascaria no próximo sábado,
por 33 anos comi carne em boa parte das minhas refeições diárias. Na maioria
absoluta das vezes, sem nem ao menos refletir a respeito do que estava comendo.
Por mais que eu conhecesse as implicações – médicas, evolutivas, econômicas, morais,
etc. – foi só há mais ou menos treze meses que suspendi completamente a
ingestão de carne. Em janeiro de 2013, um vídeo, apresentado por Steve O, me fez
ver como não podemos ceder à ignorância. Se você que está lendo essa postagem
tiver 10 minutos, assista-o:
É difícil pensar em um utópico planeta em que não se consuma
carne, de qualquer tipo. Enquanto nossa espécie se pautar pela lógica do
consumismo extremado e do capitalismo sem rédeas, liberal e exploratório,
resta-nos discutir, dentro da perspectiva de uma moralidade pós-darwiniana,
alternativas ao consumo desenfreado de proteína animal. A questão mais
importante passa a ser a diminuição do consumo desenfreado de carne (que só é
possível através da criação intensiva, ou seja, em confinamento, de aves, porcos e vacas).
Com a oferta gigantesca de proteína animal à mão em qualquer
supermercado, a maioria se acha bem nutrido porque come carne. Se déssemos mais
atenção à variedade de itens alimentares que podemos consumir, a situação seria
menos tétrica e mais ambientalmente sustentável, tanto do ponto de vista da
exploração animal quanto em termos nutricionais.
Os hominídeos, evolutivamente, tiveram no consumo de carne
um fator externo extraordinariamente potente relacionado ao aumento da sua capacidade
cerebral. No entanto, há alguns milhares de anos, não comíamos da forma como o
fazemos hoje... Precisamos ser educados a conhecer o que comemos, para evitar
que essa tradição de coisificação da natureza se perpetue indefinidamente. Para
o filósofo australiano Peter Singer:
Precisamos que as pessoas sejam informadas sobre essas questões e de um sistema político que responda às preocupações públicas sobre os animais. Questionários com a opinião pública mostram uma forte oposição contra a crueldade com os animais, mas, no geral, as pessoas não são bem informadas sobre o que acontece a eles em lugares escondidos, em fazendas, laboratórios ou matadouros. Precisamos de informação (...)
Em uma sequência central do filme Matrix, Cypher, um dos
passageiros da nave Nabucodonosor que havia sido extraído do mundo on-line por
Morpheus, diz que “a ignorância é uma benção”. Fora da matriz, tornamo-nos
impotentes quando optamos pela ignorância.
Referências:
Foer, Jonathan Safran. 2011. Comer Animais. Editora Rocco,
320 páginas.
Singer, P. 2012. Uma filosofia para consertar o mundo.
Filosofia, Ciência e Vida, 69, abril.
http://www.rollingstone.com/culture/news/boss-hog-the-dark-side-of-americas-top-pork-producer-20061214
Um comentário:
Olá, professor Charles, caro co-autor de um dos capítulos do "Águas Livres" (mais sobre o livro em breve)!
Volto a dizer que sou um seguidor do seu blog e isso não é por acaso: sempre aprendo muito por aqui. Obrigado pelo novo texto!
Foi bom relembrar os quadrinhos de antigamente! Não conhecia o Genetrix (na verdade, minhas experiências em quadrinhos limitavam-se à Turma da Mônica e a um ou outro esporádico da Marvel (e DC, ocasionalmente).
Concordo com você: temos que reduzir o consumo de carne, que atualmente é exagerado, mesmo. Para começar, eu me incomodo também com o tratamento que é destinado a esses bichos (exemplificado no vídeo que você colocou---muito elucidativo, embora um tanto antropomórfico em alguns momentos, por humanizar os comportamentos dos bichos. Se bem que não sei se tem como escapar totalmente disso... Afinal, nós somos nossa própria referência e, além disso, compartilhamos com esses bichos uma história evolutiva muito extensa).
Porém, para mim a suposta capacidade de sofrer não é o que deve decidir o direito à sobrevivência: se assim fosse, eu teria de aceitar que um humano com "menor senciência" (doente, muito idoso ou infante, ferido, anestesiado ou adormecido) teria menos direitos que seus pares (algo que fere meus princípios).
O direito à vida, segundo o que eu penso, deveria ser concedido no momento em que se vive. Seguindo esse raciocínio, um fungo não teria menos direito à vida que uma formiga por ser incapaz de sentir dor (ou pelo menos algo que nós chamamos de dor, fundamentado em um sistema nervoso que nós temos). Se não for assim, penso, o perigo é que escapemos de um especismo (sobre o qual já li neste blog excelentes textos!), que considera a espécie humana em um patamar superior, para um "cladismo" (segundo o qual os gastrozoários, ou "eumetzoários"---termo que pretiro---teriam supremacia sobre os outros seres vivos).
O problema é que, para garantirmos a nossa própria vida, temos que tirá-la de outros seres vivos: dificilmente podemos escapar disso. Mas concluo dizendo que, embora eu divirja quanto à justificativa sensocentrista, eu compartilho com a sua afirmativa "o consumo de animais deve ser reduzido". Os apoios à minha justificativa ("temos que evitar ao máximo tirar outras vidas") são fundamentalmente dois:
i) O consumo excessivo de carne é altamente insustentável ecologicamente (isso sem considerar todos os resíduos produzidos, mencionados na postagem). Esse hábito provoca muito mais mortes do que a dos pobres bichos (estamos falando de ecossistemas inteiros, arruinados por nossa atitude implacável em relação aos meios ambientes, que tratamos como se estivessem ao nosso dispor). Além disso, ao comer mais animais, mais morte é causada, já que muitas plantas foram destroçadas para criar aqueles animais; em outras palavras, uma pessoa que come carne é responsável, indiretamente, pela morte de mais plantas (peço licença, por ora, para usar essa dicotomia simplista "planta/animal" para não me estender ainda mais) que um vegetariano.
ii) O consumo excessivo de carne não é saudável; ao comer mais os outros animais, menos vida a própria pessoa tenderá a ter.
No final, imagino que nós ainda temos que ponderar sobre o ótimo dessa complexa equação que envolve pelo menos variáveis como a economia, o bem-estar ambiental e o desenvolvimento de uma sociedade que continua crescendo além da capacidade de suporte do planeta e de forma muito desigual.
Forte abraço, bom Charles, e obrigado pelo espaço!
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