sábado, 22 de novembro de 2014

Breves resenhas: Thomas Piketty e o segredo dos ricos

Em 2013, o economista francês Thomas Pikkety publicou "O capital no século XXI", um estudo sobre a crescente concentração de renda e a evolução da desigualdade nos últimos cem anos. A obra de Piketty foi traduzida para o português e publicada recentemente. Também este ano, o LeMonde Diplomatique lançou uma coletânea de breves ensaios discutindo alguns dos aspectos centrais da obra do economista francês. O livro é de fácil compreensão e traz dados estarrecedores (incluindo informações sobre o Brasil), corroborando a hipótese de que o aumento da desigualdade no século XX tem sido brutal, e apontando algumas das suas possíveis consequências sociais, políticos e econômicas.

Um dos ensaios deste livreto é especialmente interessante. O autor - Hervé Kempf, jornalista francês - apresenta quais podem ser os efeitos dessa crescente desiguldade global no meio ambiente e nas políticas ambientais. Seguem trechos selecionados de "Como os ricos estão destruindo o mundo" (os destaques são meus):
Em nível mundial, o número de pessoas em situação de pobreza absoluta, ou seja, que vivem com menos de dois dólares por dia, é da ordem de dois bilhões, enquanto a Organização para a Alimentação e Agricultura estima em 820 milhões o número de seres humanos desnutridos. (p.45)
[Nos EUA], até a década de 1970, os executivos das [500 maiores] empresas ganhavam cerca de 35 vezes o salário médio de seus empregador (...) nos anos 2000, o salário dos executivos correspondia a cerca de 130 vezes o da média dos empregados. (...) A oligarquia acumulou rendimentos e patrimônio em um grau que não se via há um século. (p.45)
[O economista Thorsten] Veblen afirma que a tendência à competição é inerente à natureza humana. Cada um de nós tem uma propensão a se comparar com os outros, procurando manifestar, por meio de traços exteriores, uma pequena superioridade, uma diferença simbólica em relação às pessoas com quem vivemos. Veblen não afirmou que a natureza humana resume-se à essa caracteristica, e não fazia um julgamento moral, apenas uma constatação. Baseando-se em numerosos depoimentos de etnógrafos de sua época, ele também observou que essa forma de rivalidade simbólica é observada em todas as sociedades. (...) todas as sociedades produzem com bastante facilidade a riqueza necessária para atender suas necessidades de alimentação, habitação, educação das crianças, convívio, etc. No entanto, costumam produzir uma quantidade de riqueza bem superior à satisfação dessas necessidades. Por quê? Porque se trata de permitir que seus membros distingam-se uns dos outros. (p.47)
Veblen (...) observou que existem frequentemente várias classes dentro de uma sociedade. Cada uma delas é regida pelo princípio da rivalidade ostentatória. E, em cada classe, os indivíduos tomam como modelo o comportamento vigente na classe social superior, que mostra o que é bom, o que é chique fazer. A camada social imitada toma como exemplo aquilo que se localiza acima dela na escala da fortuna. Essa imitação reproduz-se de baixo até o alto, de modo que a classe no topo define o modelo cultural geral daquilo que é prestigiado, daquilo que impressiona. (p.47)
Como a oligarquia bloqueia as mudanças necessárias para prevenir o agravamento da crise ambiental? Diretamente (...), pelos poderosos instrumentos – políticos, econômicos e midiáticos – de que dispõe e que utiliza para manter seus privilégios. Mas também indiretamente, o que tem a mesma importância, por meio desse modelo cultural de consumo que impregna toda a sociedade e define sua normalidade. (p.48)
Prevenir o agravamento da crise ambiental, e até começar a recuperar o meio ambiente, é um princípio bastante simples: basta que a humanidade reduza seu impacto sobre a biosfera. Chegar a isso também é um princípio muito simples: significa reduzir nossas retiradas de minerais, madeira, água, ouro, petróleo, etc., e reduzir nossas emissões de gases de efeito estufa, resíduos químicos, materiais radioativos, embalagens, etc. Ou seja, reduzir o consumo material global de nossas sociedades. Essa redução é a alavanca essencial para mudar a situação ambiental. (p.48)
Estima-se que 20% a 30% da população mundial consumam de 70% a 80% dos recursos retirados anualmente da biosfera. Portanto, é desses 20% a 30% que a mudança tem de vir(...) [nas] socidades superdesenvolvidas, não é aos pobres, aos beneficiários de programas sociais, aos modestos assalariados que vamos propor uma redução do consumo material. Mas também não são apenas os super-ricos que precisam fazer esse redução (...) É ao conjunto da classe média ocidental que deve ser proposta a redução do consumo material. Vemos aqui que a questão da desigualdade é central: a classe média não aceitará seguir a direção do menor consumo material se perdurar a atual situação de desigualdade, se a mudança necessária não for equitativamente adotada. (p.49)
Uma civilização que escolha a redução do consumo material abrirá as portas para outras políticas. Com a transferência de riqueza que reduziria as desigualdades, ela poderia estimular as atividades humanas socialmente úteis e de baixo impacto ambiental. Saúde, educação, transportes, energia, agricultura – são muitos os domínios em que as necessidades sociais são grandes e as possibilidades de ação, importantes. Trata-se de renovar a economia pela ideia da utilidade humana, em vez da obsessão pela produção material; de promover os laços sociais, em vez da satisfação individual. Diante da crise ambiental, temos de consumir me nos para distribuir melhor. Para podermos viver melhor juntos, em vez de consumir sozinhos. (p.50)

Referência:
Kempf, H. Como os ricos estão destruindo o mundo. Em: Bava, Sílvio Caccia (Org.). 2014. Thomas Piketty e o segredo dos ricos, p.42-50. São Paulo: Editora Veneta. 

2 comentários:

Peterson Lopes disse...

Pois é... Essas considerações são importantes se desejamos um futuro sustentável. Porém, cada vez mais tendo a achar que caminhamos para um futuro inevitável, onde haverá guerra (velada ou não) por água e comida. Acho que somos meros veículos meméticos que ignoram o comportamento sustentável quando ele coloca em desvantagem socioeconômica perante os nossos pares. Como qualquer população biológica, estamos explorando o ambiente até seus limites, e depois haverá declínio populacional, algo que nossa inteligência permite prever, mas não evitar.

OCoisa disse...

Sermos "naturalmente" propensos à competitividade é discutível. Para Sartre somos um eterno vazio em busca de preenchimento. O maniqueísmo do existencialismo/essencialismo é reducionista e cria falhas analíticas. Piketty, Krugman, Sen e Stiglitz são dos economistas que não fogem do berço da ciência social e defendem a volta da ética ao capitalismo, mas a análise dos problemas sociais e ambientais relacionadas a concentração de renda deveria ir além, recuperando questões filosóficas a cerca da justiça e do valor como, por exemplo, nestes artigos sobre a financeirização do mundo: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=468.