segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Vida Maravilhosa - parte I

O que é a vida?

Talvez essa seja a mais trivial das perguntas. No entanto, exige a mais complexa das respostas...

Como surgiu a vida? Como foram os primeiros organismos que podemos chamar realmente de vivos?

Essas questões remontam às primeiras civilizações humanas conhecidas e as tentativas de respondê-las podem ser encontradas dos mitos de criação de culturas pré-científicas aos modernos laboratórios de biologia molecular, passando por um sem número de tomos filosóficos e controversos dogmas religiosos.

A profusão de teorias sobre o assunto é espantosa. Infelizmente, reconstruir o passado é uma tarefa hercúlea, tanto mais difícil quanto mais distante no tempo estão os eventos que se quer conhecer. Quando falamos sobre a origem da vida, necessariamente temos que voltar ao menos 4 bilhões de anos, para a infância do nosso planeta, quando o mundo era muito diferente do atual.

Provavelmente, nunca saberemos em detalhes precisos como começou a vida na Terra. Para a ciência, o desafio é construir uma narrativa histórica lógica e coerente sobre os eventos que ocorreram há bilhões de anos, dos quais pouca informação está disponível ou foi preservada.

Uma das maneiras de inferir como foi o passado biológico é o que Richard Dawkins chama de “triangulação" em seu livro “The ancestor’s tale”, de 2006. Buscamos no mundo vivo de hoje informações que possam ser úteis para compreender como deve ter sido a natureza de outrora. Características compartilhadas pelos vários grupos biológicos existentes podem permitir-nos, por exemplo, postular como foi o possível ancestral deles todos.

Praticamente todas as formas de vida presentes na Terra compartilham as mesmas propriedades químicas e o mesmo código genético, com raras exceções. Todas as células utilizam energia, seja a partir da luz do Sol ou a partir de compostos químicos, e sintetizam ATP (Adenosina Trifosfato, a “moeda energética” da célula). Todos os organismos têm um sistema de replicação baseado em DNA e RNA. A universalidade dessas moléculas corrobora a hipótese de que os seres vivos descendem de um mesmo ancestral, no qual as principais características que definem a vida estariam estabelecidas. Parece improvável – mas, claro, não é impossível – que sistemas tão complexos e específicos tenham surgido independentemente e evoluído em paralelo, o que torna bastante sólida a hipótese de um ancestral comum para todos os organismos recentes, perdido no passado longínquo.

Há um consenso que defende a definição de um ser vivo como qualquer entidade biológica que apresente algum tipo de metabolismo, uma estrutura celular básica e que possa se reproduzir. Em suma, um organismo deve ser capaz de se replicar, isto é, passar a informação genética para os seus descendentes, o que só é possível a partir de reações metabólicas. Nas formas de vida atuais, o DNA e o RNA são as moléculas orgânicas responsáveis pelo conteúdo informacional, enquanto as proteínas fornecem a matéria estrutural para as células e agem como enzimas, possibilitando a ocorrência das reações químicas intracelulares. A vida como conhecemos é impossível sem essas duas classes de moléculas. Em qualquer espécie existe uma relação indissociável entre ácidos nucléicos e proteínas: sem DNA (e RNA), não há síntese de proteínas e, sem estas, não ocorre a replicação dos ácidos nucléicos. A complexidade inerente às duas moléculas é grande demais para se aceitar a idéia de surgimentos espontâneos e independentes. Como resolver o paradoxo da origem de ácidos nucléicos e proteínas? E a estrutura celular, teria ela precedido o material genético e o metabolismo?

Ambientes primitivos
Há 4,6 bilhões de anos, gases superaquecidos como o sulfeto de hidrogênio, gás carbônico (CO2), nitrogênio, metano, além de água sob a forma de vapor, acumulavam-se sobre a superfície terrestre, constituída de rochas derretidas coalescendo e um turbilhão de metais. O planeta era atingido freqüentemente por intensas descargas elétricas, raios ultra-violeta e radiação provenientes do cosmo, bem como por grandes bólidos extra-terrenos (restos de grandes meteoros e outros corpos celestes e não naves espaciais pilotadas por homenzinhos verdes...). Esse é apenas um dos cenários sobre como era a atmosfera primitiva. Apesar das controvérsias, sabe-se com alto grau de certeza que ela era muito diferente da atmosfera atual, com corpos d’água e oceanos incipientes sendo vaporizados constantemente. Chuvas torrenciais seguiam-se em ciclos intermináveis, transformando o planeta em uma gigantesca panela de pressão. Inspirado no inferno grego e a morada dos mortos, o Hades, a fase inicial da Terra em formação recebeu o apropriado nome de Éon Hadeano (entre 4,6 a 3,8 bilhões de anos atrás). Esse planeta em ebulição, aparentemente inóspito, foi o berço da vida.

Também há muitas especulações a respeito do passado de outros planetas do Sistema Solar. Vários estudos apontam que Marte também apresentava características propícias à biogênese há alguns bilhões de anos. O diâmetro do planeta vermelho é menor que o da Terra, o que diminui a incidência de impactos celestes (corpos maiores tornam-se alvos mais fáceis). Se as hipóteses estiverem relativamente corretas, a atmosfera marciana primitiva, rica em CO2, juntamente com a presença de oceanos, talvez repletos de vulcões, compunham um cenário favorável ao aparecimento de organismos. Uma vez surgida em Marte, a vida poderia se dispersar para outros lugares do universo, inclusive a Terra, através da ejeção de material rochoso para o cosmos após grandes impactos. O material ejetado transportaria microorganismos em seu interior, funcionando como cápsula de proteção às condições extremas do vácuo espacial. Ao precipitar sobre a superfície de algum planeta, as rochas trariam com elas as formas de vida sobreviventes. Essa hipótese, a panspermia, foi proposta pela primeira vez em termos semelhantes pelo filósofo grego Anaxágoras, no século V a.C. Teríamos nós todos uma ascendência marciana? Isso explicaria o fascínio humano pelos céus e as estrelas e nossas constantes tentativas de “ligar para casa”...
Aqui na Terra, em profundezas abissais de mares antigos, extremamente quentes e sem luz, eram abundantes os sistemas hidrotermais – fontes vulcânicas submersas ricas em fosfato e minerais dispersos, provenientes da erosão das rochas próximas. Nas fissuras resultantes dos contínuos movimentos das camadas rochosas do fundo do mar, a lava derretida era lançada oceano gelado acima. À medida que a temperatura diminuía, esse magma encolhia e se quebrava, criando uma massa rochosa de fissuras e túneis pelos quais a água circulava, dissolvendo minerais, que eram liberados nas proximidades. Os organismos aí surgidos poderiam obter energia através de reações de oxi-redução dos nutrientes oriundos do substrato, em processos precursores da fermentação.

As evidências geológicas dos organismos vivos mais antigos na Terra remontam a 3,5 bilhões de anos, mas é provável que a vida tenha aparecido há mais de 3,8 bilhões de anos. Essa datação baseia-se em resíduos moleculares de carbono pesado (C13) encontrados em rochas na Groenlândia. Há registros de fósseis microbianos e estromatólitos (estruturas sedimentares orgânicas) em rochas de 3,5 bilhões de anos. Na África do Sul e na Austrália existem microestruturas carbonáceas, provavelmente de origem microbiana, impressas em rochas de 3,3 a 2,5 bilhões de anos de idade. Microfósseis filamentosos também são conhecidos de depósitos vulcanogênicos australianos de 3,2 bilhões de anos.

sábado, 20 de setembro de 2008

Ask the next question

Entrevistador: Você pode explicar o significado da sua marca registrada pessoal, que é uma letra Q com uma seta apontando para a direita?

Theodore Sturgeon: Ela significa "Faça a próxima questão" [em inglês, "Ask the next question"], e a seguinte, e a seguinte. É o símbolo de tudo que a humanidade criou e é a razão pela qual as coisas são criadas. O sujeito está sentado na caverna e diz "Por que um homem não pode voar?". Bem, essa é a questão. A resposta pode não ajudá-lo, mas agora a questão foi formulada. Qual é a próxima questão? Como? E assim, através das gerações, as pessoas têm tentado encontrar a resposta para aquela questão. Nós encontramos a resposta e nós voamos. Isso é verdade para qualquer realização humana, seja na tecnologia ou na literatura, na poesia, nos sistemas políticas ou em qualquer outro assunto. É isso. Faça a próxima questão. E a outra depois dela.

Theodore Sturgeon (1918-1985) foi um escritor norte-americano de ficção científica. Ficou muito conhecido pela chamada "Lei de Sturgeon": “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de TUDO o que se escreve é lixo”. Em um artigo publicado na Cavalier Magazine, em 1967 (leia a página 1 aqui e a página 2 aqui), ele escreveu: "Todo avanço que essa espécie já alcançou é o resultado de alguém, em algum lugar, olhar o mundo, sua vizinhança, seu vizinho, sua caverna ou a si mesmo e fazer a próxima questão. Todo erro mortal que essa espécie cometeu, todo pecado contra si e seu destino, é o resultado de não se fazer a próxima questão ou de não se ouvir aqueles que a fizeram".

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Ciência responsável é conservadora?

Discussões a respeito de avanços tecnológicos sempre tendem a polarização: alguns defendendo as descobertas e novidades científicas e outros contrários a elas. Essa dicotomia é desnecessária e inocente. É uma interpretação por demais limitada da história da ciência.

Há um belo livro póstumo do
astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan (uma referência constante aqui nesse blog) intitulado The Varieties of Scientific Experience, de 2006, que reúne uma série de palestras sobre o pensamento científico e os motivos que fazem dele a melhor ferramenta disponível para explicar a realidade. No entanto, como o próprio Sagan considera em muitos trechos (e isso se repete em outros de seus livros, por exemplo, no Bilhões e Bilhões), aos cientistas cabe também vislumbrar as conseqüências do que fazem e à população restante cobrar por explicações. Isso não é conservadorismo ou romantismo exacerbado - é apenas uma postura responsável:

"Eu acho que a primeira coisa, em uma democracia, onde há ao menos uma pretensão sobre as pessoas controlarem as políticas governamentais, é que todo processo democrático deve ser usado. Você pode se certificar de que aqueles em quem vota têm visões racionais sobre esses assuntos. Você pode trabalhar duro para ter certeza que há uma real diferença de opiniões entre os diferentes candidatos. Você pode escrever cartas para jornais. Mas mais importante que tudo isso, eu acredito, é que cada um de nós deve se equipar com um "kit detector de bobagens. Os governos gostam de nos dizer que tudo está bem, eles têm tudo sob controle, e para deixá-los em paz. E muitos de nós, especialmente em assuntos que envolvem tecnologia (...) tem a idéia de que isso é muito complicado. Nós não podemos entender. Os governos têm os experts. Certamente eles sabem o que estão fazendo. Eles devem ser favoráveis à manutenção do nosso país, independente de que país seja. E, de qualquer forma, esses são assuntos tão penosos que eu não quero pensar neles, o que os psiquiatras chamam de negação. E isso me parece uma receita para o suicídio. Nós devemos, todos nós, entender esses assuntos porque nossas vidas dependem deles, e as vidas dos nossos filhos e dos nossos netos. Não são assuntos em que você deve assumir pela fé. Se há uma circunstância em que o processo democrático deve ser levado em conta, é essa. Algo que determina nosso futuro e o de tudo que queremos bem. E, além do mais, eu diria que a primeira coisa a fazer é perceber que os governos, todos governos, pelo menos em uma ocasião, mentem. Alguns deles o fazem o tempo todo (...) no geral, os governos distorcem os fatos para permanecer no cargo. Se formos ignorantes sobre o que são esses assuntos e não pudermos nem mesmo fazer as questões críticas, então não faremos muita diferença. Se pudermos entender esses assuntos, se pudermos apontar as questões certas, se pudermos mostrar as contradições, então poderemos fazer algum progresso. Há muitas outras coisas que podem ser feitas, mas para mim parece que essas duas, o kit de detecção de bobagens e o uso do poder democrático, são pelo menos as primeiras a se considerar".
Carl Sagan, The Varieties of Scientific Experience (2006, pp. 257-258).

Um dos grandes problemas da tecno
logia subjacente aos transgênicos é sua "propaganda enganosa": o discurso que coloca os OGM (organismos geneticamente modificados) como a arma definitiva contra a fome e a desnutrição é simplesmente hipócrita. Substitua acima a palavras 'governos' por 'multinacionais do setor alimentício' para ter uma idéia a esse respeito.

A produção de alimentos hoje no planeta é suficiente para alimentar toda a população mundial (há um pequeno livro da coleção Folha - Alimentos Transgênicos, do jornalista Marcelo Leite - que discute um pouco o problema; outro livro interessante é um recém-saído do forno, do prof. Fernando Zucoloto, da USP-RP, intitulado Por que comemos o que comemos?). Se a idéia é mesmo a de acabar com a fome no mundo ou pelo menos diminuí-la, por que não começar reduzindo as margens de lucro dos conglomerados internacionais de produtos alimentícios? Isso levaria à redução dos preços e à possibilidade da população de menor renda ter acesso a alimentos de maior qualidade. Qual a garantia de que os alimentos transgênicos seriam mais baratos? Não é ingenuidade pensar que as corporações multinacionais que defendem a tecnologia são altruístas em uma cruzada pelo bem-estar mundial?

Pode-se falar que comprar arroz modificado, "melhorado", por exemplo, com a inserção de betacaroteno, seria mais barato que comprar arroz e cenouras. Talvez isso seja realmente verdade, mas há uma grande diferença entre ingerir arroz + cenouras e ingerir arroz com betacaroteno... aí está a "propaganda enganosa": compre 1, leve 2 (quando, na verdade, o correto seria algo como compre 1, leve 0,8 e corra riscos desnecessários).

No caso dos transgênicos, a argumentação não convence - na verdade, ela é dúbia e lacunosa. É claro que os organismos geneticamente modificados (o correto seria organismos artificialmente modificados via manipulação genética - a evolução é um longo processo de modificação genética dos organismos...) são importantíssimos na nossa sociedade atual - basta lembrar, por exemplo, da produção de insulina por bactérias modificadas em laboratório. Há, no entanto, uma grande distância entre o que se apregoa e o real significado das coisas no caso dos alimentos transgênicos. A defesa dos transgênicos carece de bons argumentos assim como a defesa estrita das religiões - não há evidências, ficamos sempre no "pode ser interessante", "pode ser bom", "vai ajudar" enquanto os problemas de fato não são encarados...

A razão não só pode nos dar um controle suficiente da Natureza, como ela é a ÚNICA coisa capaz disso. No caso dos transgênicos, o que tem faltado é exatamente o uso dessa razão, ainda mais quando o assunto é apresentado para o grande público, no geral leigo. Tudo fica parecendo uma luta entre os cientistas que querem acabar com a fome versus os ambientalistas "conservadores românticos".

Ficam várias perguntas: se não há riscos, se a tecnologia veio para ajudar, qual o problema em colocar um rótulo "T" nos produtos geneticamente modificados? Por que não tentar esclarecer a população com argumentos sólidos e não com promessas de campanha política?

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sábado, 13 de setembro de 2008

Faça-se a luz: divagações sobre C & T

Como a maioria sabe, e como já foi discutido rapidamente nesse blog em outro post, a tsunami que atingiu os continentes asiático e africano no final de 2004 teve seu epicentro em uma distúrbio sísmico no meio do Oceano Índico, que deslocou enormes quantidades de água e culminou na formação da onda gigantesca que arrasou os litorais que a receberam. Apesar de todo desenvolvimento científico e tecnológico, não havia como impedir o fato, assim como não temos nenhuma possibilidade de diminuir o período de rotação da Terra e esticar o dia em mais algumas horas. Mesmo reconhecendo a implacabilidade de um evento geológico de tamanha intensidade, a tragédia humana não era inevitável. A falta de perspectiva científica dos governantes e autoridades locais, unida à ausência de assessoria técnica adequada e ao pouco (ou nenhum) investimento no desenvolvimento tecnológico, contribuiu de forma decisiva para o desastre anunciado, levando à perda de milhares de vidas humanas. Nada leva a crer, no entanto, que casos semelhantes não voltarão a acontecer em um futuro próximo.

Abalos sísmicos e eventos naturais como a erupção de vulcões e a passagem de tornados podem ser previstos com uma certa margem temporal de segurança, na maioria das vezes suficiente para a evacuação das potenciais áreas de maior impacto. Cenas como essa são comuns em países com larga experiência nesse tipo de questão, como os Estados Unidos e o Japão. A ciência bem utilizada teria o poder de transformar o ocorrido. Esperar apenas que o profeta aponte os caminhos e garanta a salvação é um comportamento, no mínimo, ingênuo e, sobretudo, perigoso.

A recente passagem de furacões de grande intensidade pelo litoral caribenho e sul dos Estados Unidos também mostra como a ciência bem aplicada e levada a sério, com investimentos maciços em tecnologia e informação, pode ser o diferencial entre o bem estar e a morte para a nossa espécie. Em 2005, os furacões Katrina e Rita, especialmente o primeiro, praticamente arrasaram a região mais pobre da América do Norte, deixando a capital do jazz, Nova Orleans, submersa, e outras cidades destruídas quase que por completo. Mais uma vez, sabia-se com antecedência o caminho dessas espirais mortais desde sua formação no meio do Oceano Atlântico e com que grau de destruição elas atingiriam o país. O acompanhamento das mudanças de rota dos furacões foi feito, minuto a minuto, por instrumentos meteorológicos e torres de controle do tempo, e os informes liberados, mas não foi dada prioridade à tragédia anunciada e o mundo assistiu, impávido, à destruição provocada pelos ciclones. Não havia qualquer plano de contingência, rotas alternativas de evacuação das cidades atingidas, mobilização prévia de tropas militares ou civis para auxiliar os moradores. Os furacões passaram e se estabeleceu o caos. Desconsiderando as causas da tragédia – que por muitos têm sido imputadas exclusivamente ao desregramento do homem perante o meio-ambiente ou a um improvável contra-ataque da natureza, sem considerar os ciclos de aumento e diminuição global da temperatura, e a ocorrência de catástrofes desse porte no planeta desde sua formação – se os avisos dos cientistas tivessem sido tomados como base para o estabelecimento de estratégias para salvaguardar as regiões afetadas, essas linhas talvez não estivessem sido escritas da maneira como você as está lendo agora. Mas quem ouve o que os representantes da ciência dizem? De fato, descontados os apelos imediatistas sobre alguns aspectos do desenvolvimento científico-tecnológico (como as querelas sobre aquecimento global, biocombustíveis e fontes "limpas" de energia), o discurso político é pouco afeito ao que se passa nas bancadas e computadores dos laboratórios, o que é um absoluto contra-senso, visto que a ciência e a tecnologia são centrais para o gênero Homo desde o controle do fogo e as primeiras experiências na criação de instrumentos para caça, há aproximadamente 750 mil anos. Fala-se muito em guerra contra o terrorismo, melhoria da saúde, da educação, da economia, mas sempre de forma inócua e impraticável – não se vêem candidatos discutindo sobre mais verbas para grandes (ou pequenos) projetos científicos, divulgação e conscientização da importância das ciências ou o impacto das tecnologias na vida moderna. Os jornais de maior circulação dão quase tanto espaço para C & T quanto para horóscopo (e muito menos do que para fofocas de pseudo-celebridades). Isso não ocorre apenas no Brasil, como o noticiário internacional aponta todos os dias.

É um clichê mas vale ser enfatizado sempre: a ciência e seu contra-ponto tecnológico são indispensáveis para a sobrevivência da nossa espécie. Estão de tal maneira entranhadas na nossa rotina diária que, por vezes, passam despercebidas, e só são trazidas à tona em períodos conturbados como os citados acima. O grande público não discute ciência como o faz com a religião ou o entretenimento, o que significa menosprezar a importância do conhecimento científico em detrimento de esoterismos e fugacidades. Questionam os cientistas por "brincarem de Deus" (o que quer que isso possa significar) mas não substituem seus medicamentos por orações para esse ou aquele santo. Conhecem São Paulo, São Judas, São Nicolau (?), Jesus Cristo, Maomé e uma lista infindável de nomes sacros, não tendo a menor idéia de quem foram Arquimedes, Newton, Bell, Daguerre, Darwin, Einstein (aquele maluco que andava sempre com os cabelos para cima, não é?) ou Feynman. Não obstante, para o não-iniciado, a ciência é vista como inatingível, distante, fria e hermética, uma atividade que exige níveis de excelência intelectual restritos à uma pequena parcela da população, abrilhantada por uma mente de gênio repleta de idéias dignas de “Eureca!”. Isso é falso. Qualquer um pode fazer ciência ou ao menos inquirir sobre ela. Quem nunca se perguntou sobre como as imagens se formam na televisão, sobre por que a luz se faz quando apertamos o interruptor na parede do quarto ou sobre o funcionamento de um chip de computador? A ciência começa aí, com a dúvida, e caminha a partir dela. Obviamente, e assim como qualquer outra ocupação humana, ela tem suas idiossincrasias, regras, métodos e limitações, mas nada que não seja perfeitamente compreensível se a atividade for valorizada desde os primeiros anos da educação formal e para o restante da vida do indivíduo.

Esse olhar inquiridor se distancia da credulidade "benevolente" dos seguidores de religiões, que são treinados a não questionar verdades fundamentais aos seus credos, quaisquer sejam elas, e acabam por se conformar em viver em um mundo cujas explicações remontam sempre ao altíssimo que tudo pode e tudo conhece, sem deixar, é claro, de utilizar a internet para enviar suas correntes de mensagens sobre o divino. O aprofundamento de questões científicas é premente na sociedade moderna e demanda o estudo do contexto científico no qual são feitas descobertas e invenções e o reconhecimento da importância da ciência como o norte da existência humana. Investir em ciência e tecnologia é uma das maneiras de garantir a manutenção de uma sociedade saudável capaz de despertar das ilusões que tentam tomá-la de assalto. E também pode salvar vidas.

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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Aristóteles e o Nome da rosa

Uma das obras que melhor traduziram para um público amplo a importância do aristotelismo para o pensamento cristão da Idade Média foi O nome da rosa (1986), do filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932- ). Toda a trama da obra de Eco, tanto do livro quanto do filme nele inspirado, gira em torno de um livro misterioso, que acaba por levar vários monges à morte em uma abadia medieval. Ao final, percebe-se a importância da obra, um tratado do filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) sobre como o riso pode auxiliar na busca pela verdade. O monge ancião responsável pela biblioteca do mosteiro para o qual se encaminham William de Baskerville e seu aprendiz Adso de Melk, chamado Jorge de Burgos (uma alusão ao escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que morreu cego e ficou celebrizado por seus contos labirínticos e suas inúmeras referências a obras literárias), diz em suas falas finais que a obra deveria ser destruída justamente por ter sido escrita por Aristóteles. A influência do pensador grego era tamanha que, ao endossar o riso e o escárnio como fontes válidas para se chegar ao conhecimento, Aristóteles poderia desencadear o caos na sociedade, uma vez que, ao rirem do mundo, os homens espantariam o temor, o medo. Ao deixarem de temer (ao demônio, nas palavras do bibliotecário), os homens perceberiam como deus era desnecessário e o mundo entraria em colapso.

A filosofia de Aristóteles, sempre presente no Ocidente, mas particularmente relevante após o século XIII, foi umas das grandes barreiras a ser vencida pelo pensamento científico moderno, que se origina, entre outros, com Nicolau Copérnico (1473-1543), Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650). Na biologia, o essencialismo aristotélico perdurou ainda mais, e só sofreu severas avarias a partir da teoria da evolução através da seleção natural, de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), em meados do século XIX. Algumas das práticas utilizadas por Aristóteles, entretanto, permanecem em certas áreas da biologia atual, como na classificação de organismos a partir de dicotomias (prática corrente na construção de chaves de identificação da sistemática biológica) e na manutenção de um determinado espécime (o holótipo) como conrrespondente à "essência" de uma nova espécie descrita.

Em O nome da rosa, há outras referências interessantes aos estudantes de filosofia da ciência. O personagem vivido por Sean Connery, o frei franciscano William de Baskerville, tem seu nome derivado do escolástico William de Ockham, celebrizado pelo conceito da parcimônia ontológica, segundo o qual as entidades explicativas não devem se multiplicar sem necessidade. Tal princípio, um dos fundamentos da ciência moderna, também remonta à Aristóteles, para o qual “a Natureza não faz nada em vão, nem faz nada de supérfluo”, como se pode ler no seu tratado Partes do animais. O frei William trabalha como um detetive, procurando evidências para corroborar suas hipóteses sobre quem é o assassino dos monges da abadia. Em contraposição à percepção metafísica “exagerada” (como provavelmente diria Ockham) dos monges, que relacionavam as mortes ao livro do Apocalipse e à chegada do fim do mundo, Baskerville procurava nos fatos observáveis o apoio para as suas explicações mais simples para os fenômenos observados. Fica evidente que o frei emprega o que hoje se convencionou chamar de raciocínio hipotético-dedutivo, que parte de premissas gerais, as quais orientam a busca por evidências, que auxiliarão no desenvolvimento e no aperfeiçoamento das hipóteses iniciais, por vezes levando ao descarte destas em prol de explicações alternativas.

Há outros exemplos na obra do uso e da importância da parcimônia. Quando estão perdidos no interior do labirinto que leva à biblioteca na torre do convento, frei William e seu aprendiz Adso procuram uma forma de escapar do lugar. William tenta usar o raciocínio para buscar uma saída, mas é interrompido pelo jovem aprendiz, que mostra uma solução muito mais simples - mais parcimoniosa, em um sentido quase popularesco - para o problema.

O nome da rosa é importante também por contextualizar parte da realidade do século XIV, enfatizando o controle da igreja sobre praticamente todas as formas de conhecimento, incluindo as obras heréticas e não-religiosas, que eram copiadas, comentadas e ilustradas pelos monges enclausurados. Ninguém fora dos salões e dos escritórios eclesiásticos tinha acesso ao que já se havia produzido na ciência, na teologia, na metafísica ou na política. O monopólio da igreja só começaria a perder força com a popularização da imprensa e a invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg (1400-1468). Além disso, o filme mostra um debate entre escolásticos da ordem franciscana e religiosos ligados ao poder papal, enfatizando as disputas verbais típicas do período, no qual ainda se acreditava que o conhecimento viria apenas do debate racional de idéias, e não da experimentação ou da observação do mundo natural.

A obra de Umberto Eco, muito mais rica em sua versão escrita (lançada em 1980) do que na cinematográfica, é leitura recomendada. É um livro que diverte sem ser estúpido - como é o caso do execrável Código da Vinci, escrito (?) pela fraude literária que atende por Dan Brown - e a partir do qual é possível vislumbrar como foi o mundo sob a influência dominadora da Igreja durante a Idade Média, e também quais foram as pré-condições, existentes à época, que possibilitaram a revolução científica do século XV, uma das bases fundamentais para a visão de mundo dos nossos dias.