sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ensinando evolução através de filogenias - III

A postagem a seguir é a última parte de uma discussão iniciada aqui e continuada aqui.

A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento.
É apenas o melhor que temos

Carl Sagan

Filogenias e filosofia da ciência

A utilização de filogenias nas salas de aula, além de permitir a organização do conteúdo programático da biologia dentro de um arcabouço evolutivo, também levanta a possibilidade de se trabalhar conteúdos de filosofia da ciência. Pode parecer uma excentricidade incluir conceitos filosóficos em disciplinas científicas desde antes do ensino médio, mas não é. Como exposto em um trabalho publicado há cinco anos (e discutido anteriormente nesse blog):

A importância da filosofia para o ensino de ciências tem sido há muito negligenciada. Muitas das discussões de pensadores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend permitem sugerir modelos pedagógicos que rompam com o tradicional caráter linear e atemporal do ensino, substituindo-as por uma visão mais dinâmica do processo ensino-aprendizagem.
Calor & Santos (2004, p 59)

Essa perspectiva está de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais brasileiros para o Ensino Médio, que ratifica a importância de se apresentar as disciplinas científicas em um contexto histórico-filosófico. Isso possibilitaria aos estudantes um contato mais próximo a algumas das particularidades da produção científica. Trabalhar o ensino de ciências a partir da perspectiva de que o campo é rico justamente por conta da existência de inúmeras idéias conflitantes, uma vez que a ciência é, na sua essência, um campo aberto e dinâmico, é uma forma de introduzir os alunos ao mundo científico e de fornecer-lhes ferramentas para melhor compreenderem a realidade que os cerca. Dessa forma, o ensino de biologia passa a ser encarado como um exercício constante de avaliação e discernimento de hipóteses científicas. Não há um cânone científico que sirva de baliza ou medida de comparação – apesar encontrarmos no discurso termos como dogma central da biologia molecular, qualquer conceito nas ciências é passível de questionamento e pode ser modificado.

Infelizmente, a adoção de uma postura crítica por parte dos estudantes pouco é estimulada durante as aulas. Os docentes, no geral, não se preocupam em expor critérios que permitam avaliar hipóteses científicas ou de que forma evidências são levantas a fim de descartar ou corroborar essa ou aquela teoria.

Onde as filogenias entram nisso tudo? Como qualquer hipótese científica, filogenias são idéias a respeito de quais são as relações de parentesco entre as espécies (ou entre grupos mais inclusivos, como gêneros, famílias, etc). Elas correspondem a reconstruções sobre como pode ter sido a evolução dos grupos considerados e estão sujeitas à corroboração ou refutação de acordo com evidências adicionais. Uma vez que teorias científicas são transitórias, as filogenias, por mais que sejam baseadas em grandes conjuntos de dados, nunca representam cenários conclusivos sobre a história evolutiva.

Ao apresentar o conhecimento científico como dinâmico e não absoluto no contexto das filogenias, o professor é capaz de trazer a filosofia da ciência para dentro da sala de aula, especialmente sobre a natureza transitória das teorias e a importância do criticismo em relação aos métodos e hipóteses. Os alunos são estimulados a utilizar a argumentação para escolher entre hipóteses rivais, ultrapassando a mera assimilação de conteúdos conceituais e factuais. Por exemplo, quais evidências sustentam a hipótese de que as aves são, na verdade, dinossauros? Por que essa idéia é mais informativa do que pontos-de-vista tradicionais, que traziam as aves como um grupo distinto dos répteis? Tomemos o grupo conhecido como celenterados, que reúne cnidários e carambolas-do-mar (ctenóforos). Por que não se pode, a partir do conhecimento atual sobre esses animais, defender a existência desse grupo? Além de fornecer respostas embasadas fortemente na teoria evolutiva, as filogenias levantam novas questões, o que está de acordo com o pensamento de Theodore Sturgeon (1918-1985): faça a próxima pergunta, sempre.


de http://store.xkcd.com/xkcd/#StandBackScience

É preciso deixar claro que a abordagem aqui proposta exige do professor um conhecimento adequado das bases da sistemática filogenética e das suas implicações – informações a esse respeito podem ser encontraras na internet ou em livros-textos de ampla circulação. É importante evitar caricaturas e simplificações demasiadas (mesmo que não se vá aplicar em sala de aula o método filogenético). Como em qualquer área do conhecimento, leitura e atualização constantes, incluindo consultas a obras, compêndios e sites confiáveis sobre os tópicos estudados, são de grande importância para que os professores tornem-se cada vez mais refinados na sua argumentação.

O objetivo central das propostas aqui apresentadas é o de permitir que os estudantes de ciências sejam participantes ativos do mundo científico, não apenas receptores passivos de teorias prontas e inquestionáveis. Alunos de ciências precisam ter desenvolvida a sua capacidade de criticar conceitos e hipóteses sob a luz da metodologia científica, minimizando, assim, suas próprias concepções errôneas.

Alguém pode se levantar na platéia e gritar: “Mas estudantes ainda não são cientistas!”. Isso é parcialmente verdade. No entanto, os alunos não precisam ser tratados como pesquisadores no sentido estrito para que seja trabalhada a ênfase no desenvolvimento de espírito crítico. O cerne da proposta é possibilitar aos alunos visualizar problemas evolutivos reais através de filogenias, além de muni-los das ferramentas metodológicas necessárias para a comparação entre hipóteses alternativas que explicam problemas derivadas da análise de diagramas ramificados, aproximando-os da epistemologia e da prática científica.

O físico italiano Enrico Fermi (1901-1954) certa vez disse que nunca deve ser subestimado o valor de se ouvir a mesma coisa repetidas vezes. Por isso, repito: o uso de filogenias como base para as aulas, além de solucionar interpretações incorretas sobre a teoria evolutiva, ajuda os professores e alunos a compreender a evolução como um processo histórico profundamente atuante na história da vida. Além de filosoficamente profunda, a apresentação da diversidade biológica através de filogenias é uma maneira elegante de enxergar as maravilhas da natureza.

Bibliografia sugerida
Gregory, T. (2008). Understanding Evolutionary Trees Evolution: Education and Outreach, 1 (2), 121-137 DOI: 10.1007/s12052-008-0035-x
Lombrozo, T. & Thanukos, A. & Weisberg, M. 2008. The importance of understanding the nature of science for accepting evolution. Evolution, Education and Outreach 1:290–298.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007. Ensino de biologia evolutiva utilizando a estrutura conceitual da sistemática filogenética - I. Ciência & Ensino 1, 1-8.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007. Ensino de biologia evolutiva utilizando a estrutura conceitual da sistemática filogenética - II. Ciência & Ensino 2, 1-8.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2008. Using the logical basis of phylogenetics as the framework for teaching biology. Papéis Avulsos de Zoologia 48, 199-211.
Thanukos, A. 2008. Bringing homologies into focus. Evolution, Education and Outreach 1:498–504.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ensinando evolução através de filogenias - II

A postagem a seguir continua a discussão iniciada aqui.


A abordagem na escola


Em "Rimas da vida e da morte", o escritor israelense Amos Óz escreve: "Existem respostas espertas e respostas evasivas. Respostas simples e diretas não existem". Essa frase é coerente com os desafios e problemas encontrados pelos professores ao ensinarem evolução nas escolas. Aqui não serão discutidas fórmulas fáceis ou receitas prontas para enfrentar cada situação particular.


Qualquer pessoa que já tenha lidado com uma sala de aula em disciplinas de biologia percebe que a linguagem é um dos maiores obstáculos para o ensino efetivo das ciências da vida. As limitações do nosso vocabulário e o fato dele ter sido construído muito antes de qualquer proposição de teoria evolutiva acabam por trazer inúmeras dificuldades para a comunicação de qualquer coisa relacionada à evolução. Desde pequenos, aprendemos com base na noção de analogia e não de homologia - nem poderia ser diferente. Usamos, por exemplo, termos como mandíbula para identificar estruturas presentes em insetos e em vertebrados, ou asas, para fazer referência a insetos, aves, pterossauros, aviões... São as mesmas palavras para descrever estruturas com funções semelhantes e origens completamente distintas. Quando os professores vão discutir evolução, a desconexão entre a linguagem comumente utilizada e uma linguagem que acomode os conceitos evolutivos fica patente - como bem lembrou Gerardo Furtado em um dos comentários da postagem anterior, também os docentes trazem conceitos deficientes para a sala de aula. É necessário, portanto, alterar o modo como utilizamos a linguagem para que alcancemos um conhecimento mais apropriado da natureza.


Uma possível abordagem para o ensino de evolução concentra-se na definição de homologia. Não há motivos para protelar essa discussão no ensino formal: ela pode ser introduzida desde o primeiro contato dos alunos com a diversidade do mundo natural.


Homologias, homologias


Quando consideramos que dois atributos são homólogos em dois organismos distintos, o que isso significa? Em linhas gerais, no contexto evolutivo, podemos dizer que tais características surgiram no ancestral comum desses dois organismos e se modificaram até o estado atual observado. Pernas anteriores de cavalos e braços de primatas são estruturas homólogas porque são modificações de membros anteriores, com esqueleto interno e musculatura, que remontam ao ancestral comum de todos os animais tetrápodes (com quatro patas). O conceito moderno de homologia fundamenta-se na hipótese de que mudanças na função de estruturas orgânicas são anteriores às alterações morfológicas dessa estrutura durante a evolução - isso vale para uma grande quantidade de casos. A partir dessa perspectiva, professores serão capazes de apresentar a evolução como um conjunto de modificações contínuas de funções ao longo do tempo, eventualmente seguidas de modificações da morfologia.


O sucesso nessa etapa inicial é perceptível quando se nota que o aluno consegue compreender que o raciocínio finalista ("essa estrutura serve para...") não cabe no discurso evolutivo. A teleologia é uma das grandes pragas da biologia evolutiva, disseminada inclusive entre professores e divulgadores de ciência. Qualquer estrutura deve ser compreendida como o resultado de um processo histórico. Partes corpóreas relacionadas a uma dada função no presente podem não ter estado relacionadas às mesmas funções no passado. É o caso dos apêndices de artrópodes. O erro decorrente do finalismo fica evidente quando comparamos espécies recentes desse grupo com seus primos distantes extintos, os Trilobita. Nestes, todas as pernas são semelhantes, apesar de desempenharem múltiplas funções (alimentar, reprodutiva, respiratória e locomotora). Em outras linhagens de Arthropoda, os apêndices foram profundamente modificados ao longo da evolução. É o caso de cupins, nos quais há apêndices bucais especializados na alimentação (mandíbulas e maxilas), apêndices locomotores e apêndices abdominais reprodutores. De fato, os apêndices são todos homólogos nas diferentes linhagens dos artrópodes – apesar da grande variedade morfológica dentro do grupo, apêndices são estruturas de mesma origem, mas modificadas durante o processo evolutivo. Como alguém pode dizer que pernas existem para andar se essas estruturas nem sempre estão relacionadas apenas à função de locomoção? Nos cupins, por exemplo, as pernas bucais trabalham na alimentação; nos trilobitos, as pernas participavam de quase todas as funções vitais.

Discutir o conceito de homologia pode ser mais fácil quando a ele se associa o reconhecimento da biodiversidade. As espécies estão todas historicamente conectadas em algum nível hierárquico, independentemente da quantidade de diferenças existentes entre quaisquer organismos escolhidos para a comparação (você e um paramécio são primos, sim! Distantes, mas ainda assim parentes).Todos os animais, por exemplo, são organismos multicelulares. Alguns grupos de metazoários têm ossos e esses ossos são modificações de uma estrutura esquelética presente no ancestral comum de todos os vertebrados (os ossos são homólogos entre os vertebrados). O aluno deve ser levado a compreender que as células da parede da cavidade gástrica de uma água-viva têm a mesma origem que grande parte das células do estômago de uma barata, de um gato e do dele próprio. Essas células endodérmicas são homólogas, pois estão presentes desde o ancestral comum de todos os ditos "animais verdadeiros" (que incluem todos os metazoários menos as esponjas). Há muitos outros exemplos de homologias que podem ajudar os professores a explicar como a evolução funciona.

Hierarquias no mundo natural

A compreensão do que são as homologias e da sua importância na evolução só será adequada quando a estrutura hierárquica da natureza também for discutida. Uma das maneiras de começar a falar disso na sala de aula é utilizar os próprios conhecimentos do aluno a respeito da genealogia da sua família. Como cita Stephen Jay Gould na sua última coletânea de ensaios sobre história natural (I have landed - the end of a beggining in natural history, publicada em 2003, um ano após sua morte), "a árvore da vida e a genealogia de cada família compartilham a mesma topologia e o mesmo segredo de sucesso na mistura de dois temas aparentemente contraditórios de continuidade (...) e mudança" (página 23).
Com uma árvore genealógica em mãos, o aluno poderá visualizar aquilo que, no início, parece apenas uma abstração, como o conceito de ancestralidade comum ou a idéia de grupos-irmãos. Toda criança em idade escolar sabe que os filhos dificilmente são idênticos aos seus pais (eles têm diferenças na altura, coloração dos olhos, da pele e cabelos, forma do nariz, das orelhas, dos dedos). Apesar disso, não é difícil convencê-los de que existem muitas semelhanças entre eles e seus pais, ou entre eles e seus irmãos e primos. Mesmo com características particulares, em geral dois irmãos se parecem mais entre si quando comparados a uma terceira pessoa, como um primo ou vizinho (a não ser que alguma cerca tenha sido pulada...). Qual é a causa da maior proximidade entre os irmãos? Simples: eles têm os mesmos pais, ou seja, têm um ancestral imediato compartilhado, que não é o mesmo do seu vizinho ou do seu primo. O que dizer dos filhos desses irmãos? Eles provavelmente serão mais similares a seus pais do que aos seus avós. 

Extrapolando o cenário familiar para a "natureza selvagem", e tomando-se o cuidado de apresentar um vetor temporal maior, de milhões ou mesmo bilhões de anos, associando-o com o conceito de homologia, podemos explicar porque um gato doméstico e um leão são mais proximamente relacionados um com o outro (são grupos-irmãos) do que com um cachorro, um peixe ou uma esponja. Meus alunos preparam breves ensaios sobre o assunto, que podem ser lidos aqui, aqui e aqui.


A maneira de representar as hierarquias de homologias é uma filogenia - uma árvore cheia de ramos, no ápice dos quais são posicionadas as espécies ou grupos discutidos, também chamada de cladograma. Esses diagramas ramificados são fundamentais para a descrição do mundo vivo como resultado do processo de descendência com modificação ao longo do tempo e não como um processo de transformação linear de uma espécie em outra. O que torna essa perspectiva tão interessante é que qualquer atributo biológico pode ser plotado nas filogenias - todos os aspectos bioquímicos da vida (e.g., evolução da fermentação, respiração celular, processo fotossintético), todas as características animais e vegetais, qualquer detalhe na fisiologia e comportamento dos organismos, etc.

de Cardoso et al. BMC Evolutionary Biology 2006 6:108 doi:10.1186/1471-2148-6-108


Aqui, é preciso respeitar as necessidades pedagógicas das turmas em que se está trabalhando. Pode ser vantajoso utilizar filogenias mais gerais, sacrificando o detalhamento em prol de uma melhor compreensão por parte dos estudantes e também dos professores. O foco não é na memorização de intermináveis listas de nomes de espécies (ou grupos) e das características de cada uma delas. A idéia é mostrar o que se mantém e o que modifica: o ancestral de todos os "animais verdadeiros" tem dois folhetos embrionários (ectoderme e endoderme); isso permanece em TODOS os outros animais! Não é preciso repetir, sempre que se falar de um grupo qualquer de metazoários, que ele apresenta ectoderme e endoderme se a filogenia dos animais estiver mais ou menos sedimentada na cabeça do aluno (e do professor).

A partir dessa estrutura ramificada, podemos discutir o que se modifica durante a evolução, o que permanece invariável e o que surge apenas em um ou outro grupo. Nessa proposta, filogenias funcionam como guias para preparar e apresentar todos os conteúdos em sala de aula - não só em disciplinas onde esse tipo de abordagem é mais aceita, como zoologia e botânica, mas também em disciplinas de citologia, genética ou embriologia. Os diagramas ramificados orientarão os professores na preparação e escolha de conteúdo para as aulas e durante as discussões em sala, além de ajudar os alunos na visualização da hierarquia da natureza à luz do paradigma evolutivo.
Continua

sábado, 7 de novembro de 2009

Ensinando evolução através de filogenias - I

As próximas postagens derivam de três artigos meus, publicados em parceria com o prof. Adolfo Calor (da UFBA) nos anos de 2007 e 2008. Como já foi discutido aqui nesse blog de forma sucinta, nossa idéia foi a de apresentar uma proposta de utilização do raciocínio filogenético no ensino da teoria evolutiva, levando em consideração também a importância de se discutir evolução à luz de conceitos de filosofia da ciência – que são válidos não apenas nos domínios da biologia.

Evolução e filogenias

Em 2009, ano do sesquicentenário da publicação do On the origin of species, obra-magna de Charles Darwin (que completaria 200 anos se estivesse vivo e se fosse da família MacLeod), não há pessoa instruída que não tenha ouvido falar da teoria evolutiva como unificadora da biologia. Também já faz parte do senso comum a idéia de que todos os organismos do planeta (incluindo as espécies extintas e o homem) compartilham um ancestral em algum nível hierárquico, por mais remoto que seja, e que, dessa forma, todas as espécies estão conectadas. Após os trabalhos de Alfred Wallace e Charles Darwin (os artigos de 1858 e o clássico supracitado de 1859) e especialmente depois da fusão com a genética redescoberta no início do século XX, novos achados paleontológicos e descobertas naturalistas, a teoria da evolução transformou-se no paradigma central da biologia, influenciando inúmeras outras áreas do conhecimento humano. Hoje, como qualquer um que lê regularmente jornais sabe, o mundo todo fala a respeito de evolução (muita gente, infelizmente, demonstra "amplo" conhecimento na área quando este apenas arranha o real espectro da pesquisa séria em biologia evolutiva). Nas palavras do ornitólogo Ernst Mayr (1904-2005), em um interessante artigo publicado na Scientific American em 2000, “a forma como concebemos o mundo e o lugar que ocupamos nele neste início do século XXI difere radicalmente daquela vigente no início do século XIX”. O estabelecimento da teoria da evolução nas ciências naturais foi crucial para essa nova concepção da realidade.

Uma vez que a teoria da evolução é o arcabouço estrutural das ciências biológicas, é lógico pensar que ela pode ser tomada como o princípio organizador do ensino de biologia, em qualquer nível, desde o primeiro contato do estudante com os seres vivos (eu diria antes mesmo do primário!). No entanto, as escolas ainda restringem a evolução a uma limitada visão descontextualizada tanto em termos históricos quanto conceituais. Não há quem não tenha ouvido algum professor falar, ou visto em algum material “didático”, que a evolução pode ser sintetizada em duas grandes figuras, Darwin e Lamarck. Aproximações grosseiras da teoria, juntamente com a falta de cuidados na sua exposição, aliada ainda a preconceitos de docentes e alunos culminam em um aprendizado deficiente. É triste mas verdadeiro: por mais que se fale a respeito de evolução, por mais que se publique na grande mídia textos sobre o assunto, a percepção do grande público ainda está muito aquém do mínimo suficiente para possibilitar uma opinião crítica balizada não apenas em achismos ou na palavra da “autoridade” eclesiástica.

Quem já se encontrou falando sobre evolução em público (em uma sala de aula, por exemplo) provavelmente identificou muitas das dificuldades inerentes à aventura de se discutir o tema. Ouvi várias vezes frases como “professor, existem duas teorias que explicam a evolução, certo? Darwin e a religião” ou “mas não é possível que os animais tenham evoluído tão rápido!” (como se 600 milhões de anos fosse pouca coisa!). Assim como é difícil conceber o que seria 600 milhões de reais, não é tão fácil assimilar o que significariam 600 milhões de anos de mudanças evolutivas. Ainda mais complicado é falar sobre como não há uma tendência para o progresso na evolução ou como não podemos dizer que há sempre um aumento de complexidade durante a história das linhagens. Quando o assunto é a descoberta de ancestrais ou o encontro de elos perdidos, tudo fica nebuloso – nesse momento, um em cada dois estudantes está mentalmente abrindo a geladeira da sua república em busca da última cerveja. Ao discutirmos a questão da ancestralidade do homem e sua semelhança com outros primatas, a atenção volta, mas a compreensão continua diminuta. Junta-se à esse caldeirão uma série infindável de falsas concepções transformadas em clichês pela publicidade e mídia não especializada. O que temos? Um ciclo infinito de interpretações equivocadas, desinteresse e desinformação.

Há uma solução para todos esses problemas? Qual a resposta para essa pergunta fundamental? 42? Mesmo sendo o homem apenas a terceira espécie mais inteligente da Terra, fomos capazes de criar ferramentas para nos guiar por essa floresta escura.

Apesar de normalmente aplicada a estudos acadêmicos de classificação biológica, a sistemática filogenética pode ser utilizada para enfraquecer o paradigma essencialista corrente no ensino de biologia, incutindo na disciplina a idéia de que a melhor metáfora para a evolução NÃO é uma fila indiana que vai de organismos mais “simples” até aqueles mais “complexos” ou dos menos até os mais evoluídos, e sim uma árvore toda ramificada. Simples assim: ao pensar em evolução, tenha em mente um diagrama ramificado que conecta ancestrais e descendentes. Nessas árvores, que mostram as relações de parentesco entre os grupos, podemos sintetizar muita informação biológica (tais como características de morfologia externa, embriologia, fisiologia e comportamento). Ao utilizarmos (bem) essas árvores filogenéticas, também podemos começar a trabalhar conceitos relativos à construção, corroboração e refutação de hipóteses científicas. Tudo em um mesmo pacote.


O método de Hennig

Foi o entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1967) o primeiro a propor um conjunto de regras para se estabelecer as relações de parentesco entre os seres vivos, fundamentado no evolucionismo, que ele chamou de sistemática filogenética. Prisioneiro de guerra em 1945, Hennig escreveu um o primeiro rascunho da obra Grundzüge einer Theorie der Phylogenetischen Systematik (Fundamentos de uma teoria da sistemática filogenética) ainda na cadeia, sem dispor de bibliografia ou de anotações! O método representou uma reviravolta na prática da classificação biológica, que à época afundava no autoritarismo dos taxonomistas clássicos como Mayr. A idéia de Hennig foi a de construir um método que permitisse o reconhecimento das relações genealógicas entre os organismos resultantes da sua descendência com modificação a partir de um ancestral comum.

Segundo Hennig, entre os organismos somente poderiam ser conhecidas as relações de parentesco colaterais ou de grupos-irmãos (quando dois táxons são evolutivamente mais próximos entre si em relação a um terceiro). A reconstrução dessas relações depende do levantamento e da análise de características homólogas presentes nos grupos estudados (veja um ensaio sobre homologia aqui). Em linhas gerais, caracteres homólogos são atributos semelhantes que surgiram no ancestral comum de grupos evolutivamente relacionados que se modificaram com o passar das gerações. A partir do reconhecimento das relações de grupos-irmãos, expressas nas árvores evolutivas (ou cladogramas, usando a terminologia contemporânea), pode-se contar um pouco da história evolutiva dos grupos biológicos considerados.

Outro conceito fundamental para Hennig é a idéia de grupo monofilético (discutida aqui). Desde a Antigüidade clássica, procurava-se uma maneira de se identificar, na natureza, quais grupos teriam existência real e quais seriam apenas construções da perturbada mente humana. Eu consigo distingüir que baratas, moscas, abelhas e borboletas são parentes próximos mas o que dizer de um grupo contendo insetos, pterossauros, aves e morcegos? Todos têm asas! Seria esse um grupo natural, considerando o processo evolutivo? Hennig propôs que apenas os grupos monofiléticos são naturais, pois são os únicos que carregam a informação da história evolutiva e, assim, refletem o processo de descendência com modificação. Grupos monofiléticos contêm o ancestral comum mais recente e todos os seus descendentes, sendo portadores de homologias exclusivas não apresentadas por outros grupos. Nesse sentido, o grupo dos animais "alados" é uma construção artificial.

Ah, você pode estar pensando, como é que eu vou falar sobre grupos monofiléticos e homologias na sexta série? Isso não é necessário. O mais importante é mostrar o raciocínio subjacente, apontando para a necessidade de pensar em diagramas ramificados ao tratar de evolução. Ensinar biologia através de uma abordagem filogenética não significa utilizar o método e seus algoritmos na sala de aula. Isso seria muito pouco efetivo (até mesmo no ensino universitário de biologia!). No entanto, árvores filogenéticas são ferramentas poderosas na organização e apresentação dos conteúdos biológicos. Por exemplo, em uma aula voltada à citologia, a partir de uma árvore que mostre as relações entre as bactérias, as arqueobactérias e os eucariotos, pode-se mostrar a evolução da respiração celular nas espécies com carioteca a partir de características já existentes em alguns procariotos. Uma árvore filogenética dos animais permite mostrar a mudança dos padrões de simetria no tempo, os compartilhamentos de estruturas e genes e mesmo as características exclusivas desse ou daquele grupo. Essas árvores filogenéticas orientam os professores antes e durante as aulas, permitindo ao aluno visualizar os padrões hierárquicos entre as espécies à luz da teoria da evolução. Continua...

fonte da figura: http://www.camiseteria.com/design.aspx?did=20399

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Parábola cética atualizada

Surfista Prateado por Jean Giraud Moebius (1988-1989)


Entre 1988 e 1989, foi publicada uma edição especial do Surfista Prateado, escrita por Stan "The Man" Lee e ilustrada por Jean Giraud Moebius, intitulada Parábola. Nela, Galactus, uma entidade cósmica conhecida como "o Devorador de Mundos", vem à Terra para destruí-la e se alimentar da sua energia. Para isso, Galactus permite que as pessoas façam o que bem desejarem em seu nome para, assim, encontrarem a "salvação" – o plano é permitir que a humanidade se aniquile por meios próprios. Nesse ínterim, surge seu ex-arauto, o Surfista Prateado, questionando o direito de Galactus de atacar a Terra com um estratagema tão ardiloso.

Ao final, o vilanesco semi-deus galáctico parte deixando nosso planeta incólume. O Surfista, alçado à categoria de herói planetário, é recebido na sede das Nações Unidas e fala para o mundo. Os diálogos, em uma páginas tocante e dolorosa, é esse:


Embaixador 1: “Nós fomos visitados por dois seres do espaço. Um, tratado como um deus. O outro, para nossa perpétua vergonha, desprezado e condenado. Mas, finalmente, enxergamos a verdade. O surfista é o verdadeiro salvador das estrelas”.
Surfista: “Não! Nenhum homem pode ser colocado acima dos demais. A chama divina está em todos ... ou em ninguém”.
Platéia: “Que humildade. A verdade essência da pureza. Só pode ser um santo. Você deve nos liderar! Oriente-nos. Seremos seus discípulos”.
Surfista (pensando): “Isto é loucura! Eles desejam um líder. Assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas. Por que eles não procuram a verdadeira fé em sim mesmos? Por que buscam outro que lhes mostre o caminho?”.

Essa é uma das mais belas histórias em quadrinhos de super-heróis já criadas. Definitivamente, não é leitura apenas para crianças...

Com uma das prosas filosóficas mais elegantes do século XX, Bertrand Russell (1872-1970) foi filósofo, lógico, matemático e escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1950. Defensor do racionalismo e do ceticismo, Russel escreveu, no seu ensaio Sonhos e fatos, que pode ser encontrado na coletânea Ensaios Céticos:

“Os sonhos de um homem ou de um grupo podem ser cômicos, mas os sonhos humanos coletivos, para nós que não podemos ultrapassar o círculo da humanidade, são patéticos. O universo é muito vasto, como revela a astronomia. (...) No mundo visível, a Via Láctea é um fragmento minúsculo; e, nesse fragmento, o sistema solar é uma partícula infinitesimal, e, dessa partícula, nosso planeta é um ponto microscópico. Nesse ponto, pequenas massas impuras de carbono e água, de estrutura complexa, com algumas raras propriedades físicas e químicas, arrastam-se por alguns anos, até serem dissolvidas outra vez nos elementos de que são compostas. Elas dividem seu tempo entre o trabalho designado para adiar o momento de sua dissolução e a luta frenética para acelerar o de outras do mesmo tipo. As convulsões naturais destroem periodicamente milhares ou milhões delas, e a doença devasta, de modo prematuro, mais algumas. Esses eventos são considerados infortúnios; mas quando os homens obtêm êxito ao impor semelhante destruição por seus próprios esforços, regozijam-se e agradecem a Deus. Na vida do sistema solar, o período no qual a existência do homem terá sido fisicamente possível é uma porção minúscula do todo; mas existe alguma razão para esperar que mesmo antes desse período terminar o homem tenha posto fim à sua existência por seus próprios meios de aniquilação mútua. Assim é a vida do homem vista de fora.”

Theodore Sturgeon (1918-1985) foi um escritor norte-americano de ficção científica. Ficou muito conhecido pela chamada "Lei de Sturgeon": “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de TUDO o que se escreve é lixo”. Em 1967, publicou um artigo na Cavalier Magazine, em que escreveu: "Todo avanço que essa espécie já alcançou é o resultado de alguém, em algum lugar, olhar o mundo, sua vizinhança, seu vizinho, sua caverna ou a si mesmo e fazer a próxima questão. Todo erro mortal que essa espécie cometeu, todo pecado contra si e seu destino, é o resultado de não se fazer a próxima questão ou de não se ouvir aqueles que a fizeram".

Certa vez, quando perguntado a respeito do significado da sua marca registrada pessoal (uma letra Q com uma seta apontando para a direita), Sturgeon respondeu:


“Ela significa "Faça a próxima questão" [em inglês, "Ask the next question"], e a seguinte, e a seguinte. É o símbolo de tudo que a humanidade criou e é a razão pela qual as coisas são criadas. O sujeito está sentado na caverna e diz ‘Por que um homem não pode voar?’. Bem, essa é a questão. A resposta pode não ajudá-lo, mas agora a questão foi formulada. Qual é a próxima questão? Como? E assim, através das gerações, as pessoas têm tentado encontrar a resposta para aquela questão. Nós encontramos a resposta e nós voamos. Isso é verdade para qualquer realização humana, seja na tecnologia ou na literatura, na poesia, nos sistemas políticas ou em qualquer outro assunto. É isso. Faça a próxima questão. E a outra depois dela”.

Como podemos depreender dos exemplos supra-citados, que vêm de autores tão diferentes quanto quadrinhistas, filósofos e escritores de ficção-científica, um posição inquiridora e cética não é exclusiva das ciências. Até mesmo as religiões poderiam se beneficiar dele (através, por exemplo, de uma auto-análise periódica - quiçá constante - que levasse à depuração de suas premissas reiteradas vezes consideradas infundadas). No entanto, essa me parece uma visão de mundo otimista demais, quase ingênua. As religiões, quando tomadas no geral, não fazem um esforço sincero para depurar o que podemos chamar de suas "superstições infundadas".

Religiões deveriam se limitar a tratar de alguns dos aspectos éticos e morais do homem e da sua condição na existência. Obviamente, a religião é uma poderosa atividade humana e provavelmente remonta a tempos remotos pré-científicos, muito antes da invenção de qualquer tipo escrita. Para muitos, a fé pode ser uma fonte de conforto para suas vidas - a devoção ao divino, independente de como ele se expressa, funciona como a tábua de salvação. Pode-se até mesmo construir um cenário adaptacionista para explicar o surgimento e desenvolvimento do misticismo: se funcionava como fator organizador dos agrupamentos sociais primitivos, aparecendo por vezes associado às primeiras tentativas do homem de interpretar os fenômenos naturais, essas proto-religiões teriam sido selecionadas, propagando-se na descendência. O evolucionista britânico Richard Dawkins considera as religiões como memes, ou unidades de evolução cultural, que podem se autopropagar – meme, termo criado por Dawkins em seu clássico “O gene egoísta” (de 1976), análogo ao gene, seria a unidade mínima de informação transmitida entre representantes da nossa espécie, através da conexão cérebro-cérebro ou entre locais onde essa informação está armazenada, como livros ou páginas da internet e outros locais de armazenamento e/ou cérebros.

Como é de amplo conhecimento, as doutrinas religiosas baseiam-se em dogmas, fundamentos doutrinários muitas vezes frutos de pretensas revelações ditadas pelos deuses, santos ou espíritos iluminados, todos eles manifestações do imponderável. Visto que seriam as palavras divinas em si, apesar de transcritas e interpretadas por homens, e uma vez tidos como certos pela alta hierarquia da igreja, congregação, seita e similares, esses preceitos transformam-se em ditos sagrados e, infelizmente, não se prestam a indagações sobre seus fundamentos. Assim, passam a corresponder à verdade absoluta proferida pelo altíssimo. Nesse sentido, o desenvolvimento de uma postura cética torna-se pouco provável no âmbito das religiões, pois o questionamento dos dogmas pode levar à dúvida quanto à validade desse ou daquele preceito, conseqüentemente erodindo os pilares sustentadores do pensamento religioso.

A questão é ainda mais ampla e extrapola a frágil dicotomia ciência-religião. Qual seria o objetivo de se estimular a reflexão individual (ou coletiva), o "pensar com a própria cabeça", se tudo parece já estar escrito, refletido e "pensado"? É muito mais cômodo transferir o ato de raciocinar para o padre, o pastor, o papa... ou o jornalista, o professor, o cientista... Como professor, as frases dos estudantes mais desanimadoras são "Professor, o que eu tenho que saber?" ou "Professor, o que o senhor quer que eu estude?" ou ainda "Professor, como eu devo pensar a respeito desse assunto?".

Parece que é da condição humana ansiar por um führer, um condutor para revelar como agir perante o vazio infinito da existência. Esse guia não precisa, necessariamente, estar personificado: ele se apresenta em distintas formas, que trazem, subjacentes ao seu discurso, a questão do controle e do desestímulo ao livre-pensar. Nossa indústria cultural ajuda na padronização das populações, em todos os sentidos (vestuário, ideário político, cinema, literatura, música) – o mesmo vale para muitos dos formadores de opinião, que por vezes parecem se preocupar mais em reforçar estereótipos do que em estimular o espírito crítico do seu público. A democratização da internet, nesse ínterim, tem papel ambíguo (ou paradoxal, dependendo do ponto de vista assumido). Apesar de possibilitarem a veiculação de qualquer conteúdo, qualquer informação, por mais obscura ou pouco usual que seja, ferramentas como blogs, independentemente da boas intenções dos seus criadores, estão cada vez mais semelhantes (doutrinários?).

Apesar de impressas em uma forma de arte ainda tida como menor ou infantil, as sábias palavras do Surfista Prateado bem se encaixam nesse quadro: "Eles desejam um líder, assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas".