segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Representando a evolução: a árvore da vida

Como é de conhecimento comum, a mais tradicional representação da teoria da evolução é uma fila indiana de hominídeos, liderada pelo Homo sapiens, tendo como maior retardatário um animal bípede de feições simiescas, o Australopithecus, ou mesmo um pequeno chimpanzé. Qualquer um já se deparou com tal ilustração, seja em peças publicitárias, charges humorísticas, outdoors, camisetas, obras religiosas que pretendem discutir conceitos científicos, e mesmo em livros e revistas de divulgação científica. Para a cultura pop, essa figura, chamada de iconografia canônica por Stephen Jay Gould no seu livro “Vida Maravilhosa”, é sinônimo de evolução darwiniana, e é igualmente equalizada à ideia de progresso. Apesar de onipresente, a iconografia carrega incorreções e ranços que empobrecem a concepção popular sobre as ciências da vida no geral, e sobre a teoria da evolução em particular.

Na interpretação corrente da iconografia da evolução, o primeiro indivíduo de uma série é tido como o mais primitivo, a partir do qual surge outro, "mais evoluído”, em um contínuo linear de transformações e substituições que culminaria no homem como ápice do processo evolutivo (algo como a obra prima da natureza).

A visão do mundo natural como uma arena onde organismos vivos digladiam-se permanentemente, em uma luta sem fim por recursos que garantam sua sobrevivência e a manutenção dos seus genes na descendência, encaixa-se de forma perfeita a esse cenário: os Australopithecus, menos adaptados ao ambiente em que viviam, ao se depararem com um grupo mais forte e com melhores possibilidades de sucesso reprodutivo em uma competição direta por suprimentos e fatores essenciais à manutenção da vida, foram massacrados pela espécie sucessora até sua completa extinção. A supremacia do vencedor, no entanto, teria durado apenas até o surgimento de outro primata melhor adaptado, e esse processo continuou por milhões de anos, até o nascer do Homo sapiens, que dominou seus predecessores diretos – e também os não tão diretamente relacionados a ele – e passou a reinar absoluto sobre o restante do mundo natural.

Figura 1. Iconografia canônica da evolução: A. Representação incorreta, apontando para a evolução linear. B. Hipótese filogenética apresentando as relações de parentesco entre os principais hominídeos descritos até o momento, com as indicações de datações (de Santos & Klassa, 2012).

Se generalizarmos o raciocínio usualmente empregado para compreender a iconografia canônica, extrapolando a representação da linha evolutiva para uma gigantesca fila contendo todas as espécies que passaram pelo planeta, iniciada pelo primeiro organismo vivo e tendo, mais uma vez, o homem na linha de frente, chegaremos à conclusão lógica de que a única forma de vida que deveria existir no planeta é o Homo sapiens, uma vez que todos os grupos que o precederam teriam sido dizimados pelos seus descendentes. Todos os demais grupos biológicos deveriam, necessariamente, ter sucumbido durante a evolução, substituídos por outros “melhor adaptados” às condições naturais cambiantes. Isso está correto? Basta abrir a janela ou olhar para a pia cheia de restos fungados de comidas em uma república de estudantes para sabermos que a resposta, obviamente, é não.

Da iconografia clássica da teoria da evolução geralmente se depreende a falsa ideia de progresso evolutivo, algo que remonta ao conceito de Scala Naturae ou “Grande Cadeia dos Seres”, segundo a qual todos os organismos poderiam ser organizados de forma linear e progressiva, começando do mais simples até o mais complexo – em algumas representações, o degrau mais baixo é tomado pelos elementos fundamentais da natureza (ar, terra, fogo, água) e o mais alto por deus. Essa Scala é recorrente na história da filosofia, presente desde os trabalhos platônicos.

Figura 2. Scala Naturae, por Ramon Lull (escrito em 1304, publicado em 1512) (Ragan, 2009).

Segundo a concepção equivocada de evolução da iconografia canônica, a fila representaria o mundo orgânico rumando para o aumento da perfeição e da complexidade através dos tempos, até o surgimento do primeiro representante da espécie humana. Assim, os organismos que se aproximassem do início da fila seriam os “mais primitivos” ou “inferiores” enquanto os que se aproximam do Homo sapiens seriam os “superiores” ou “mais evoluídos”. Em outras palavras, quanto mais complexo o organismo, “mais evoluído” e, portanto, melhor adaptado à vida sobre a Terra. Lógica básica, raciocínio deficiente.

Alguns organismos muito simples (formados por uma única célula, sem núcleo e com pouquíssimas estruturas internas) são capazes de sobreviver em condições extremas de pressão, temperatura e salinidade, ou mesmo na ausência completa de oxigênio. A história biológica desses microorganismos – as arqueobactérias, palavra que vem do grego archae, antigo – remonta a bilhões de anos. Podemos dizer que o Homo sapiens é mais evoluído que uma arqueobactéria, simplesmente devido à grande complexidade de alguns dos seus sistemas ou à sua capacidade de questionar a respeito da sua própria existência e do universo que o cerca? Faça um experimento mental: lance um pequeno grupo de incautos espécimes humanos em uma fonte termal nas profundezas de um oceano qualquer, sem nenhum tipo de equipamento de mergulho. Vocês conseguem imaginá-los sobrevivendo à insalubridade desse ambiente, posto que são os organismos “mais evoluídos” dos quais se têm notícia?

Alguns tendem a acreditar, mas estão errados ao pensar em evolução como progresso. Evolução é um processo histórico de descendência com modificação, isto é, alteração no tempo com o passar das gerações. Iniciado há bilhões de anos, é responsável por toda a biodiversidade existente hoje no planeta (descontados os organismos modificados geneticamente em laboratório). A evolução tem como base um processo estocástico – as modificações precedem a seleção das espécies no ambiente natural e são aleatórias, fruto da fusão de mutações genéticas e recombinações cromossômicas fortuitas – e não algum tipo de planejamento ou design. Todas as espécies são parte obra do acaso e parte obra do mecanismo determinista da seleção natural, e são conectadas umas com as outras, pois descendem de um ancestral comum. A ideia da evolução como uma escalada rumo à complexidade não passa de incompreensão da realidade do mundo natural: muito mais do que uma teoria, a evolução é um fato que explica como os organismos surgiram e como eles se diversificaram no tempo a partir de eventos não programados.

Infelizmente, interpretações incorretas da evolução estão disseminadas até mesmo em materiais didáticos e livros-texto escolares, que acabam assumindo ares de conhecimento estabelecido. Em um artigo publicado esse ano com uma aluna de mestrado, discutimos maneiras de diminuir esse problema:
Organizar os conteúdos tratados nas aulas sob a forma de árvores evolutivas é a chave para se tratar assuntos complexos como tempo geológico, homologias e a noção de evolução como mudança, e não como progresso do mais simples ao mais complexo. O raciocínio hierárquico parte da própria concepção de família que o aluno traz consigo – uma vez que evolução nada mais é que genealogia familiar tratada em um tempo muito dilatado. Essa abordagem facilita a defesa de que estamos todos conectados, independentemente da aparente distância entre nossa espécie e os demais organismos do planeta (Santos & Klassa, 2012, p. 77).
O termo evolução em nenhum momento pode ser usado como correspondente à transformação direta de uma linhagem de organismos vivos em outra mais complexa. Nos diagramas utilizados para representar as relações de parentesco entre as espécies, que funcionam como reconstruções da história evolutiva, nenhum organismo pode ser interpretado como ancestral direto de outro “acima” dele. Nesses diagramas ramificados, chamados árvores filogenéticas ou cladogramas, todos os grupos biológicos são posicionados como terminais – inclusive as espécies fósseis, já extintas. Como é impossível determiná-los com precisão, os ancestrais são sempre considerados entidades hipotéticas, não diretamente reconhecíveis. No exemplo da evolução dos hominídeos, o Homo sapiens é posicionado dentro do grupo dos primatas, mais próximo de outras espécies do gênero Homo (entre eles, o Homo neanderthalensis) do que de outros gêneros de hominídeos.

Nenhuma espécie “se transforma” em outra durante a evolução. Espécies novas surgem a partir de populações ancestrais, que não necessariamente deixam de existir após o evento de especiação. O aparecimento de uma barreira geográfica, como um rio, o soerguimento de uma montanha ou mesmo uma grande árvore caída no meio da floresta, é capaz de dividir uma população de uma espécie em dois grupos menores, os quais, uma vez desconectados, poderão responder às pressões evolutivas em separado. Essa disjunção talvez resulte no surgimento de espécies diferentes, que serão aparentadas àquela que ficou do outro lado do rio, ou filogeneticamente próximas.

Diferente do que sugere a iconografia da evolução, a espécie ancestral não é substituída pela espécie que surge, o que, entretanto, não a livra da possibilidade de extinção, já que todos os organismos estão sujeitos às pressões do ambiente. Porções das populações podem perecer, outras talvez sobrevivam, e o processo de descendência com modificação continua, indefinidamente. Os dinossauros, por exemplo, desapareceram apenas parcialmente, apesar de considerados extintos por quase toda a mídia e pelos divulgadores das ciências. Na verdade, as aves ancestrais dos pássaros que voam hoje são parte de um grupo de dinossauros de menor porte, leves e rápidos, os terópodes. Nas recentes classificações filogenéticas, o grupo das aves é considerado evolutivamente aparentado aos demais dinossauros. Juntos, constituem o grupo natural Dinosauria (assim, ao comermos uma coxa de frango no almoço, estamos devorando um remanescente de dinossauro).

Hoje, o homem convive no mesmo ambiente com bactérias cujos ancestrais remontam aos primórdios da vida, há quase quatro bilhões de anos. Nenhum dos dois grupos é mais ou menos evoluído que o outro, simplesmente porque evolução não é o mesmo que progresso. Se os organismos multicelulares não tivessem surgido no Proterozóico, há mais de 800 milhões de anos, é bem possível que os mares não estivessem repletos de águas-vivas, esponjas ou anelídeos poliquetos, e não haveria nenhum hominídeo com o telencéfalo altamente desenvolvido, cheio de circunvoluções e capacidade de raciocínio lógico e abstrato. Somos um produto fortuito da evolução, não seu objetivo central.

A despeito do que dizem os proponentes do design inteligente – um conjunto de preceitos pseudocientíficos criacionistas baseado na ideia da complexidade irredutível, segundo a qual seria improvável o surgimento de sistemas biológicos altamente complexos a partir de predecessores mais simples, oriundos de mutações aleatórias e seleção natural, pois tais sistemas biológicos só seriam funcionais se todas as suas partes estivessem presentes e relacionadas na ordem certa –, pode-se afirmar que a variabilidade biológica existente no nosso planeta não é pautada por uma mente sobrenatural privilegiada capaz de arquitetar previamente como os atos se desenrolam no palco. A suposição da existência de um grande designer que prima pelo progresso dos organismos é apenas especulação pseudocientífica e, como tal, não deve ser analisada partindo-se de uma visão de mundo calcada na razão e na observação.

A ideia de progresso na evolução é culturalmente condicionada, não uma representação inevitável da história biológica. A representação linear da evolução das espécies, uma dando lugar à outra como na iconografia canônica dos hominídeos, deve ser substituída por uma visão mais abrangente, que considere as relações de parentesco entre os seres vivos e a complexidade inerente ao processo evolutivo, um grande diagrama ramificado ou uma árvore da vida, com cada galho representando os grupos biológicos, compostos tanto de espécies vivas quanto extintas, incluindo a nossa própria. Uma árvore na qual à nossa espécie estaria reservado apenas um ramo entre muitos, sem privilégios adicionais.

Referências:
Ragan, M. 2009. Trees and networks before and after Darwin. Biology Direct, 4:43 doi:10.1186/1745-6150-4-43.
Santos, C.M.D. & Klassa, B. 2012. Despersonalizando o ensino de evolução: ênfase nos conceitos através da sistemática filogenética. Educação: Teoria e Prática, 22, 62-81.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2008. Using the logical basis of phylogenetics as the framework for teaching biology. Papéis Avulsos de Zoologia, 48, 199-211.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007. Ensino de biologia evolutiva utilizando a estrutura conceitual da sistemática filogenética - I. Ciência & Ensino, 1, 1-8.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007. Ensino de biologia evolutiva utilizando a estrutura conceitual da sistemática filogenética - II. Ciência & Ensino, 2, 1-8.

Crédito da imagem:
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Darwin_tree.png

Um comentário:

GFGM disse...

Uma camiseta um pouco melhor para demonstrar seu apreço pela noção de evolução (sem cair na iconografia canônica):
http://www.zazzle.com/you_are_here_evolutionary_tree_t_shirts-235684834459836233