quinta-feira, 13 de julho de 2023

Manuscritos, publicações e a revisão por (ím)pares

Há alguns meses, submeti um artigo que procurava discutir, à luz de uma breve síntese da história da teoria evolutiva, as possibilidades da Inteligência Artificial na "criação de espécies potenciais" que nos permitissem preencher ao menos parte das lacunas da árvore da vida. Duas semanas atrás recebi um parecer destruidor rejeitando o trabalho para publicação sem qualquer possibilidade de correção ou ajuste. Como diria um grande amigo meu, professor de zoologia na Universidade Federal da Bahia, levei uma bela "traulitada".

O mais desconcertante é que, lendo o parecer com cuidado, não consegui relacioná-lo diretamente com o que eu tinha escrito. O (ou a) parecerista teceu uma série de comentários que pouco tinham a ver com a proposta do meu trabalho e fez sugestões de inclusão de temas que nem com muita boa vontade poderiam ser acrescentados no texto. "Não traz para a discussão nenhuma referência da biosemiótica, code biology ou teoria da informação, as empreitadas mais potentes na biologia atual". Claro que não trouxe tais temas para a discussão, afinal não eram mote do artigo! 

O estabelecimento da ciência contemporânea está pautado na chamada "revisão por pares". Artigos enviados para publicação em periódicos acadêmicos são revisados por outros pesquisadores, que fazem ponderações, pedem esclarecimentos, sugerem alterações, apontam falhas e lacunas. Quando o processo funciona, a ciência presente no manuscrito submetido se fortalece e a comunidade científica como um todo é favorecida. 

No entanto, não raro o processo de peer-review seria melhor intitulado "revisão por ímpares". Aí tome sugestões de inclusão de artigos do próprio parecerista ou textos aleatórios, observações descabidas, falta de tato (e mesmo falta de educação), sem contar o indefectível "esse artigo precisa ser revisado por um falante nativo do inglês", quando o autor não é anglófono ou tem sobrenome como Santos. A crítica sobre o idioma, felizmente, deve se extinguir por completo com a popularização de algoritmos de Inteligência Artificial que auxiliam na escrita e edição de texto - além de ter postado sobre esse assunto AQUI, eu e o Prof. João Paulo Gois, também docente da Universidade Federal do ABC, escrevemos a respeito na Zootaxa (Harnessing the power of AI language models for taxonomy and systematics)

Meu objetivo como pesquisador sempre foi o de conseguir mais pareceres positivos do que negativos na minha produção acadêmica. Creio que meu balanço atual é de mais ou menos 50/50. Isso significa que, no momento em que escrevo essa postagem, já tomei umas 70 "traulitadas". A primeira mais marcante foi justamente em um trabalho submetido com meu amigo da Federal da Bahia como co-autor, no início de nossa pós-graduação em entomologia. Era meu terceiro artigo submetido, depois de dois sucessos. O parecer veio como uma voadora no peito: "Esse texto, escrito por dois estudantes, é o pior que já li na vida". Não era assim tão péssimo, ainda que tivesse problemas... Para o trabalho mais recente que publiquei na Journal of Biogeography com co-autores discentes e o Prof. João Paulo citado acima, um dos revisores sugeriu que o novo método que propusemos - SAMBA, acrônimo para Super Area-cladogram after resolving Multiple Biogeographical Ambiguities - não era necessário porque aquele que ele havia criado já resolvia todos os problemas da biogeografia cladística. O detalhe é que esse tal método miraculoso foi publicado e nunca utilizado por ninguém…

Como parecerista, procuro sempre ressaltar as qualidades dos manuscritos que avalio. QUALQUER trabalho feito com seriedade tem pontos positivos, por mais inexperiente que seja o seu autor ou por mais desafiadoras as mudanças necessárias para que o artigo possa ser publicado. Revisores não são oráculos e não devem se travestir da verdade absoluta. Mas somos todos humanos e estamos sujeitos a vaidades, egoísmos e comportamentos arrogantes, que muitas vezes transparecem nos nossos pareceres. Tenho lutado contra isso desde a primeira revisão que fiz, há mais de 20 anos. Espero estar melhorando a cada vez que aceito uma tarefa de peer-review.

Por mais desanimador e intimidante que seja receber uma avaliação negativa ou agressiva sobre o que fazemos de forma dedicada e diligente, isso faz parte da construção do conhecimento científico. Temos que tentar, na medida do possível, absorver o que for útil e descartar o que nada acrescenta, sem adotar posturas demasiado defensivas. Não temos controle sobre o que escrevem a respeito do nosso trabalho, mas podemos focar em controlar o que sentimos ao avaliarmos esses comentários. Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo, como nos ensina Walter Franco em sua canção-mantra mais conhecida.

Quanto ao manuscrito recusado, procedi com uma "lipoaspiração" radical, cortei gorduras e estou trabalhando em uma nova versão com um colega parceiro de outras tantas empreitadas. Que os próximos pareceristas sejam, de fato, divisíveis por dois!

Referências

Heard, S. B. 2022. The Scientist’s guide to writing: how to write more easily and effectively throughout your scientific career. New Jersey: Princeton University Press.

Santos, C.M.D. & Gois, J.P. 2023. Harnessing the power of AI language models for taxonomy and systematics: a follow-up to “Can ChatGPT be leveraged for taxonomic investigations? Potential and limitations of a new technology” by Davinack (2023). Zootaxa, 5297(3), 446-450.

Santos, D., Sampronha, S., Hammoud, M., Gois, J.P. & Santos, C.M.D. 2023. SAMBA: Super area-cladogram after resolving multiple biogeographical ambiguities. Journal of Biogeography, 50(4), 816-825.

Imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Numbers#/media/File:Numbers_grid_in_NY.jpg 

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