quinta-feira, 13 de julho de 2023

Manuscritos, publicações e a revisão por (ím)pares

Há alguns meses, submeti um artigo que procurava discutir, à luz de uma breve síntese da história da teoria evolutiva, as possibilidades da Inteligência Artificial na "criação de espécies potenciais" que nos permitissem preencher ao menos parte das lacunas da árvore da vida. Duas semanas atrás recebi um parecer destruidor rejeitando o trabalho para publicação sem qualquer possibilidade de correção ou ajuste. Como diria um grande amigo meu, professor de zoologia na Universidade Federal da Bahia, levei uma bela "traulitada".

O mais desconcertante é que, lendo o parecer com cuidado, não consegui relacioná-lo diretamente com o que eu tinha escrito. O (ou a) parecerista teceu uma série de comentários que pouco tinham a ver com a proposta do meu trabalho e fez sugestões de inclusão de temas que nem com muita boa vontade poderiam ser acrescentados no texto. "Não traz para a discussão nenhuma referência da biosemiótica, code biology ou teoria da informação, as empreitadas mais potentes na biologia atual". Claro que não trouxe tais temas para a discussão, afinal não eram mote do artigo! 

O estabelecimento da ciência contemporânea está pautado na chamada "revisão por pares". Artigos enviados para publicação em periódicos acadêmicos são revisados por outros pesquisadores, que fazem ponderações, pedem esclarecimentos, sugerem alterações, apontam falhas e lacunas. Quando o processo funciona, a ciência presente no manuscrito submetido se fortalece e a comunidade científica como um todo é favorecida. 

No entanto, não raro o processo de peer-review seria melhor intitulado "revisão por ímpares". Aí tome sugestões de inclusão de artigos do próprio parecerista ou textos aleatórios, observações descabidas, falta de tato (e mesmo falta de educação), sem contar o indefectível "esse artigo precisa ser revisado por um falante nativo do inglês", quando o autor não é anglófono ou tem sobrenome como Santos. A crítica sobre o idioma, felizmente, deve se extinguir por completo com a popularização de algoritmos de Inteligência Artificial que auxiliam na escrita e edição de texto - além de ter postado sobre esse assunto AQUI, eu e o Prof. João Paulo Gois, também docente da Universidade Federal do ABC, escrevemos a respeito na Zootaxa (Harnessing the power of AI language models for taxonomy and systematics)

Meu objetivo como pesquisador sempre foi o de conseguir mais pareceres positivos do que negativos na minha produção acadêmica. Creio que meu balanço atual é de mais ou menos 50/50. Isso significa que, no momento em que escrevo essa postagem, já tomei umas 70 "traulitadas". A primeira mais marcante foi justamente em um trabalho submetido com meu amigo da Federal da Bahia como co-autor, no início de nossa pós-graduação em entomologia. Era meu terceiro artigo submetido, depois de dois sucessos. O parecer veio como uma voadora no peito: "Esse texto, escrito por dois estudantes, é o pior que já li na vida". Não era assim tão péssimo, ainda que tivesse problemas... Para o trabalho mais recente que publiquei na Journal of Biogeography com co-autores discentes e o Prof. João Paulo citado acima, um dos revisores sugeriu que o novo método que propusemos - SAMBA, acrônimo para Super Area-cladogram after resolving Multiple Biogeographical Ambiguities - não era necessário porque aquele que ele havia criado já resolvia todos os problemas da biogeografia cladística. O detalhe é que esse tal método miraculoso foi publicado e nunca utilizado por ninguém…

Como parecerista, procuro sempre ressaltar as qualidades dos manuscritos que avalio. QUALQUER trabalho feito com seriedade tem pontos positivos, por mais inexperiente que seja o seu autor ou por mais desafiadoras as mudanças necessárias para que o artigo possa ser publicado. Revisores não são oráculos e não devem se travestir da verdade absoluta. Mas somos todos humanos e estamos sujeitos a vaidades, egoísmos e comportamentos arrogantes, que muitas vezes transparecem nos nossos pareceres. Tenho lutado contra isso desde a primeira revisão que fiz, há mais de 20 anos. Espero estar melhorando a cada vez que aceito uma tarefa de peer-review.

Por mais desanimador e intimidante que seja receber uma avaliação negativa ou agressiva sobre o que fazemos de forma dedicada e diligente, isso faz parte da construção do conhecimento científico. Temos que tentar, na medida do possível, absorver o que for útil e descartar o que nada acrescenta, sem adotar posturas demasiado defensivas. Não temos controle sobre o que escrevem a respeito do nosso trabalho, mas podemos focar em controlar o que sentimos ao avaliarmos esses comentários. Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo, como nos ensina Walter Franco em sua canção-mantra mais conhecida.

Quanto ao manuscrito recusado, procedi com uma "lipoaspiração" radical, cortei gorduras e estou trabalhando em uma nova versão com um colega parceiro de outras tantas empreitadas. Que os próximos pareceristas sejam, de fato, divisíveis por dois!

Referências

Heard, S. B. 2022. The Scientist’s guide to writing: how to write more easily and effectively throughout your scientific career. New Jersey: Princeton University Press.

Santos, C.M.D. & Gois, J.P. 2023. Harnessing the power of AI language models for taxonomy and systematics: a follow-up to “Can ChatGPT be leveraged for taxonomic investigations? Potential and limitations of a new technology” by Davinack (2023). Zootaxa, 5297(3), 446-450.

Santos, D., Sampronha, S., Hammoud, M., Gois, J.P. & Santos, C.M.D. 2023. SAMBA: Super area-cladogram after resolving multiple biogeographical ambiguities. Journal of Biogeography, 50(4), 816-825.

Imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Numbers#/media/File:Numbers_grid_in_NY.jpg 

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Escrita científica em inglês: ferramentas online úteis e gratuitas

Publicar os resultados das pesquisas realizadas nos laboratórios, universidades e institutos é condição fundamental para o desenvolvimento da ciência. É através de artigos e livros que as ideias circulam, são testadas, corroboradas ou refutadas, inspiram outros trabalhos e novas áreas de investigação.

Todo pesquisador e pesquisadora, em algum momento, enfrenta o desafio de colocar no papel (ou na tela) os produtos do seu trabalho. Às vezes, as palavras saem com mais facilidade; em certos momentos, no entanto, precisamos acender velas e incensos para Darwin antes de digitar a primeira palavra. 

A escrita científica só faz sentido se para ela existirem leitores. No mundo contemporâneo, o processo de encontrar material publicado é bem mais simples do que há 20 anos. Quem tem mais de 35 deve se lembrar do quanto gastávamos (em tempo e dinheiro) fotocopiando artigos e capítulos de livros. Uma vez fui lecionar um curso de pós-graduação em Manaus e levei duas malas: uma com roupas, outra com separatas. E nem sou tão velho assim…

Dito isso, o idioma no qual se publica a ciência é sempre uma questão importante. A depender do tipo de artigo, do seu escopo e público alvo, podemos optar por periódicos que aceitam manuscritos em português, espanhol, francês… No entanto, em termos de acessibilidade para um amplo espectro de interessados, o inglês tem sido a escolha de boa parte da comunidade científica para divulgar seus resultados. Aí começam os problemas, especialmente para não falantes nativos do idioma de Shakespeare.

Para meus alunos e alunas, costumo dizer que o inglês da ciência não é o mesmo da literatura. É o inglês técnico, que precisa ser claro e objetivo. O importante é comunicar com precisão as ideias, de preferência da forma mais parcimoniosa e sucinta possível. Àquela primeira versão, escrita sem travas, quase em fluxo de consciência, devem ser aplicadas técnicas de “lipoaspiração redacional”: cortar o que é desnecessário, evitar generalidades, excluir frases que não adicionam nada, e limar parágrafos longos e intrincados.

Felizmente, hoje temos inúmeras ferramentas que auxiliam pesquisadores e pesquisadoras na escrita dos seus artigos, capítulos e projetos. Listo abaixo algumas delas que acho particularmente interessantes.

Ferramenta útil para revisão, verificação e correção de erros gramaticais e de linguagem, adequação de conteúdos e melhoria de fluência no texto. Há opção grátis, que ajuda muito. O aplicativo dá uma pontuação geral do texto, que pode servir como um norte para edições e melhorias. Após utilizar o Grammarly, a primeira versão do seu manuscrito certamente ganhará em clareza e assertividade.

Dicionário de sinônimos, muito útil durante o processo de reescrever e editar.

Esse site gratuito dá uma nota (score) para o seu manuscrito baseada na qualidade do inglês quando comparado a outros artigos de um banco de dados de mais de 300.000 trabalhos acadêmicos de todas as áreas . A pontuação leva em conta aspectos de legibilidade em inglês, incluindo gramática, consistência e clareza. Com base no seu score, o aplicativo sugere, por exemplo, serviços de revisão (na maioria pagos). Quanto mais alta a nota, menor a necessidade desse tipo de serviço. Se o score chegar a um valor acima de 7,0, o sistema entende que o texto está suficientemente bom e não precisa de grandes melhorias.

Nesse site, é possível fazer o upload do artigo e descobrir quantas vezes as palavras mais citadas aparecem (e também a existência de muitas frases e construções repetidas). Vale muito a pena ser usado, especialmente para refinar um texto já bem trabalhado no Grammarly.

Tenho usado as ferramentas acima da seguinte forma:

(1) trabalho a versão inicial em algum processador de texto (GDocs ou MSWord, por exemplo);
(2) uso o Grammarly até chegar ao máximo score que ele permite (o mais perto de 99);
(3) verifico o score no secure.aje.com;
(4) conto palavras e frases repetidas no countwordsfree.com, que serão retrabalhadas ou cortadas;
(5) volto para (2) até que o score no secure.aje.com esteja acima de 7.2, o que garante, segundo o sistema, que o texto está suficientemente bom e não precisa de revisão adicional (ou por um "native speaker˜).

Não existe uma receita quando o assunto é redigir manuscritos científicos. O fundamental é que cada um e cada uma construa o seu próprio processo. Sei como é frustrante receber pareceres do tipo “a ciência nesse artigo é boa, mas o inglês precisa melhorar”. Não devemos esmorecer frente a esses obstáculos. Ferramentas como as discutidas aqui podem ser o diferencial entre o “rejected” e o “accepted with minor revisions”.

PS: Há uma vasta literatura com dicas de escrita científica. Dois artigos muito úteis, que revisito periodicamente, são voltados para falantes de português e discutem os nossos principais erros ao escrevermos em inglês.

Marlow, M.A. 2014. Writing scientific articles like a native English speaker: top ten tips for Portuguese speakers

Marlow, M.A. 2016. Writing scientific articles like a native English speaker: concise writing for Portuguese speakers


domingo, 18 de julho de 2021

Richard C. Lewontin (1929-2021)


No último dia 04 de julho, aos 92 anos, faleceu nos EUA o biólogo Richard Charles Lewontin (1929-2021).

Ao longo de sua carreira científica, Lewontin foi um crítico ferrenho do determinismo genético, tendo se posicionado contra a ideia de que características complexas dos seres vivos, como o coeficiente de inteligência, estivessem diretamente inscritas no DNA. Para todo atributo há um gene específico? De jeito nenhum, afirmava Lewontin. A variabilidade orgânica não podia ser resumida a um pedaço de material genético.

No seu livro de ensaios "Biology as ideology: the doctrine of DNA", de 1991 (traduzido para o português e publicado aqui em 2000), Lewontin escreveu:
(...) não temos razão a priori para pensar que haveria qualquer diferenciação genética entre grupos raciais em características como comportamento, temperamento e inteligência. Tampouco há um pingo de evidência de que as classes sociais diferem de alguma forma em seus genes, exceto na medida em que a origem étnica ou a raça podem ser usadas como forma de discriminação econômica. O absurdo propagado pelos ideólogos do determinismo biológico de que as classes inferiores são biologicamente inferiores às classes superiores (...) é precisamente isso, um absurdo. O objetivo é legitimar as estruturas de desigualdade em nossa sociedade, colocando um brilho biológico sobre elas e confundindo o que pode ser influenciado pelos genes e o que pode ser alterado por mudanças sociais e ambientais.
Em 2000, Lewontin publicou no The New York Review of Books [1] umas das mais lúcidas críticas à percepção popular - comum também entre muitos cientistas - de que o DNA é o Santo Graal da biologia, a panaceia que vai nos apontar os caminhos para resolvermos todos os nossos problemas. Para Lewontin:
(...) é necessário mais que o DNA para se fazer um ser vivo. Em certa ocasião, ouvi um dos líderes mundiais da biologia molecular, na palestra de abertura de um congresso científico, dizer que se tivesse um computador com capacidade suficiente e a seqüência completa do DNA de um organismo, ele poderia calcular o organismo, ou seja, segundo ele, seria possível descrever plenamente sua anatomia, fisiologia e comportamento. Isto está errado. Nem o próprio organismo é capaz de se calcular a partir do próprio DNA. Um organismo vivo em qualquer momento de sua vida é exclusivamente consequência de uma história de desenvolvimento resultante da interação e da determinação de forças internas e externas. As forças externas, que usualmente pensamos como “ambiente”, são elas próprias parcialmente consequência das atividades do organismo em si, enquanto produz e consome as condições da própria existência. Os organismos não encontram o mundo no qual se desenvolvem. Eles o produzem.
Lewontin foi um dos grandes colaboradores do paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002). É deles o hoje clássico ensaio "The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: a critique of the adaptationist programme", publicado em 1979. No artigo, Lewontin e Gould fazem um contraponto à visão adaptacionista estrita na biologia - a ideia de que todo e qualquer atributo existente nos organismos teria sido forjado pela seleção natural, a única responsável pelas formas orgânicas, funções e comportamentos encontrados na natureza. Mais de 40 anos após a publicação desse artigo seminal, hoje sabemos que há muito mais na biologia do que apenas a seleção natural. A identificação dos fatores e mecanismos responsáveis pela complexidade orgânica é um dos objetivos da Síntese Estendida da Evolução, que tem avançado nos caminhos abertos por Lewontin, Gould e outros autores nos já longínquos anos 1970.

Richard Lewontin foi um exemplo de biólogo que enxergava seu trabalho na genética e na biologia evolutiva para além do laboratório. Jerry Coyne, autor do belo livro "Why evolution is true" e ex-aluno de pós-graduação de Lewontin, a quem ele chamava "The Boss", conta que, à pergunta "O que te levou para as ciências?", seu orientador costumava responder "Um professor carismático" [2].

Até mais, "Boss", e obrigado pelos peixes!

Notas:
[1] O texto foi traduzido em 2002 e publicado na Revista da Adusp sob o título "O sonho do genoma humano".
[2] Jerry Coyne publicou 
um tributo a seu ex-orientador cheio de fotos e anedotas comoventes. Pode ser acessado AQUI.

Leia mais:

domingo, 13 de junho de 2021

Da relação entre dietas baseadas em plantas e a COVID-19

Acaba de ser publicado (junho/2021) um interessante estudo a respeito da influência da dieta na infecção, severidade e duração dos sintomas da COVID-19. Ainda que vários trabalhos anteriores tenham sugerido que padrões de alimentação podem ter algum papel na incidência e no curso da COVID-19 por conta da sua relação com o aumento (ou diminuição) da resposta imunológica, o trabalho de Hyunju Kim, do Departamento de Epidemiologia da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, e seus colaboradores espalhados pelos Estados Unidos é o primeiro a estabelecer uma correlação direta entre padrões de dieta e severidade da síndrome respiratória aguda grave causada pelo coronavírus.

Profissionais de saúde de seis países (França, Alemanha, Itália, Espanha, Reino Unido e EUA), altamente expostos a pacientes com COVID-19, foram objeto da pesquisa, feita entre 17 de julho e 25 de setembro de 2020. De um total de 2884 participantes, houve 568 casos COVID-19; destes, 138 indivíduos apresentaram sintomas de moderados a graves, enquanto 430 indivíduos tiveram sintomas de muito leves a leves.

Os participantes relataram suas dietas durante todo o ano anterior à Organização Mundial de Saúde ter decretado o status de pandemia de COVID-19, em março de 2020. Dessa forma, foi possível definir os padrões de ingestão alimentar usual e de longo prazo dos amostrados. Entre as opções de dietas apresentadas aos participantes estavam alimentos integrais, dietas à base de plantas, dietas vegetarianas, regimes alimentares que incluíam peixes e frutos do mar (mas excluíam a carne de outros animais), dietas com baixo teor de gordura, dietas pobres em carboidratos e dietas ricas em proteína animal.

Entre os 568 casos de COVID-19 registrados na amostra, os indivíduos que seguiam dietas baseadas em plantas relataram consumir mais vegetais totais, proteínas vegetais (leguminosas e nozes) e menos aves, carnes vermelhas e processadas, além de menos bebidas adoçadas com açúcar e álcool, em comparação com aqueles que não seguiam dietas à base de plantas.

Os participantes com dietas ricas em vegetais tiveram 73% menos chances de apresentar sintomas de COVID-19 de moderados a graves em comparação com aqueles que não se alimentavam preferencialmente de vegetais e legumes. Aqueles que seguiram dietas baseadas em vegetais somadas a peixes e frutos do mar como fonte de proteína animal tiveram 59% menos chances de apresentar sintomas moderados a graves.

Os participantes da pesquisa de Kim e colaboradores que seguiam dietas vegetais ou vegetarianas tiveram maior ingestão de vegetais, legumes e nozes, e menor consumo de aves, carnes vermelhas e alimentos industrializados ultraprocessados. Dietas baseadas em vegetais são ricas em nutrientes, especialmente fitoquímicos, fibras, vitaminas A, C, D e E e minerais (ferro, potássio, magnésio). A suplementação de alguns desses nutrientes diminui o risco de infecções respiratórias, como resfriado comum e pneumonia, encurtando a duração dos seus sintomas. Uma vez que desempenham papéis importantes na produção de anticorpos, proliferação de linfócitos e redução do estresse oxidativo, dietas com concentrações adequadas em tais nutrientes podem ter por consequência o bom funcionamento do sistema imunológico.

Vírus como o SARS-CoV-2 provocam falhas no acionamento do sistema imunológico. A inflamação resultante pode levar à deficiência respiratória aguda e a outros sintomas perigosos. Na maioria dos pacientes de COVID-19, o sistema imune é capaz de "desarmar" e matar o coronavírus. No entanto, em cerca de 5% dos infectados o corpo não é capaz de se livrar do vírus, o que pode resultar em dano duradouro ao pulmão e outros tecidos, formação de coágulos e vazamento de fluidos dos vasos sanguíneos.

Estudos como o de Hyunju Kim e colaboradores apontam que uma dieta saudável, baseada majoritariamente em plantas e rica em nutrientes, funciona como proteção adicional (além das vacinas, absolutamente necessárias) contra sintomas severos da COVID-19.

Mais sobre vegetarianismo e especismo:

Referências
1. Calder, P.C. 2020. Nutrition, immunity and COVID-19. BMJ Nutr Prev Health 3:74–92. 
2. Kim, H., Rebholz, C.M., Hegde, S., et al. 2021. Plant-based diets, pescatarian diets and COVID-19 severity: a population-based case-control study in six countries. BMJ Nutrition, Prevention & Health.
3. Iwasaki, A. & Wong, P. 2001. O caos que a COVID-19 cria na imunidade. Scientific American Brasil 216: 59–65.
4. Morais, A.H.A., Aquino, J. S., Silva-Maia, J.K., et al. 2021. Nutritional status, diet and viral respiratory infections: perspectives for severe acute respiratory syndrome coronavirus 2. Br J Nutr125:851–62. 
5. Satija, A. & Hu, F.B. 2018. Plant-based diets and cardiovascular health. Trends Cardiovasc Med 28:437–41. 
6. Zabetakis, I., Lordan, R., Norton, C., et al. 2020. COVID-19: the inflammation link and the role of nutrition in potential mitigation. Nutrients 12:1466. 

terça-feira, 20 de abril de 2021

Breves resenhas: Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas


Uma das grandes vantagens de vivenciar o ambiente acadêmico universitário é a possibilidade de trocar ideias, impressões, conhecimento e visões de mundo com colegas professores, pesquisadores, discentes e servidores.

Ainda que estejamos muito distantes da normalidade nos dias de hoje, mediando nossos contatos sociais e profissionais por telas de computador e smartphones (para os privilegiados com a chance de trabalhar de forma remota), os momentos de compartilhamento de experiências continuam fundamentais para nosso desenvolvimento intelectual e humano.

Há alguns meses, o grande amigo João Paulo Gois, companheiro docente na Universidade Federal do ABC, me indicou a leitura de "Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas", de David Epstein. Descobri que o livro constava da lista de leitura de Bill Gates para o ano de 2020 (curiosamente, tanto Gois quanto Gates são especialistas em computação).

A obra discute conceitos muitos caros à academia nos dias de hoje: interdisciplinaridade, construção transversal do conhecimento científico, e necessidade de visão ampla e múltipla para a resolução de problemas complexos. Seguem abaixo alguns trechos:
O desafio que todos enfrentamos é como manter os benefícios da amplitude, da experiência diversificada, do pensamento interdisciplinar e da concentração tardia em um mundo que cada vez mais incentiva (e até exige) a hiperespecialização.

Nossa maior força é exatamente o oposto da especialização estrita. É a capacidade de fazer uma integração ampla.

(...) as características que significam boas notas [na universidade] não incluem capacidade crítica de qualquer significado amplo

Os alunos vêm preparados com óculos científicos, mas não saem carregando o canivete suíço do raciocínio científico. (...) Eles devem aprender a pensar antes de aprenderem sobre o que pensar.

Quanto mais limitado e repetitivo for um desafio, mais provavelmente ele será automatizado, enquanto grandes recompensas serão acumuladas para aqueles que conseguirem obter conhecimento conceitual de um problema ou domínio e aplicá-lo de maneira totalmente nova.

Tolerar grandes erros pode criar as melhores oportunidades de aprendizado.

O pensamento analógico profundo é a prática de reconhecer similaridades em múltiplos campos de conhecimento ou cenários que, superficialmente, parecem ter muito pouco em comum.

(...) as pessoas que melhor resolvem problemas são as mais capazes de determinar sua estrutura profunda antes de determinar uma estratégia de resolução.

(...) o inesperado torna-se uma oportunidade para se aventurar por um novo caminho — e analogias servem como guias nas terras selvagens.

(...) os laboratórios mais capazes de transformar descobertas inesperadas em conhecimento novo para a humanidade criavam muitas analogias, e as criavam a partir de uma grande variedade de áreas. (...) Em algumas reuniões de laboratório, uma nova analogia era proposta, em média, a cada quatro minutos, algumas delas vindas de áreas completamente alheias à Biologia.

O truque mais importante, disse ele, é manter-se sintonizado para perceber quando mudar é simplesmente falta de perseverança e quando se trata do astuto reconhecimento da existência de projetos mais adequados.

(...) uma mente aberta sempre levará algo de toda nova experiência.

Sua pessoa de agora é passageira, assim como todas as outras que você já foi. (...) aprendemos quem somos apenas vivendo, e não antes.

Os criadores de previsões mais profícuos afastam-se do problema em questão e examinam eventos não relacionados, mas com similaridades estruturais, em vez de confiarem na intuição baseada na experiência pessoal ou em apenas uma área de especialização.

Quando tudo o que você tem é um vulcanologista, aprendi, toda extinção tem como origem um vulcão.

Parte do problema, argumentou ele, é que os cientistas jovens são obrigados a se especializar antes de aprenderem a pensar.

(...) trabalhos que conectam áreas díspares do conhecimento têm menor probabilidade de serem financiados, menos chance de serem publicados em periódicos famosos, maior probabilidade de serem ignorados após sua publicação e, assim, maior probabilidade, em longo prazo, de serem um grande sucesso na biblioteca do conhecimento humano.

(...) O progresso científico em uma frente ampla é resultado do livre brincar de intelectos livres, trabalhando em assuntos de sua própria escolha, de uma forma ditada por sua curiosidade pela exploração do desconhecido.

Compare a si mesmo com seu eu de ontem, e não com pessoas mais jovens e que não sejam você. Cada um de nós avança em um ritmo diferente, então não permita que alguém faça com que você se sinta atrasado. Provavelmente, você nem sequer sabe com exatidão para onde está indo, e sentir-se em desvantagem não ajuda em nada.
O trabalho de Epstein é celebrado como um livro de negócios, mas as discussões que o autor apresenta são pertinentes para qualquer área em que seja necessário investigar soluções para questões amplas. Vale a leitura!

Referência:
Epstein, D. 2020 [2019]. Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas. Tradução: Marcelo Barbão e Fal Azevedo. Editora Globo Livros.

domingo, 9 de agosto de 2020

Podcast Um longo argumento

Recentemente, comecei um podcast derivado deste blog.

Também intitulado "Um longo argumento", a ideia é expandir as discussões feitas aqui para abarcar, além das biologia e temas afins, também outras áreas das ciências. 

O podcast trará breves ensaios sobre temas ligados à teoria evolutiva, sistemática, biogeografia e filosofia da ciência, e também entrevistas e debates com pesquisadores, estudantes de pós-graduação e divulgadores científicos. 

Ele está disponível em cinco plataformas:

Spotify
https://open.spotify.com/show/4l6KIw1QizeFNZVR5P3gfx

Anchor
https://anchor.fm/charles-morphy

Breaker

RadioPublic

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sobre outros olhares para a divulgação científica

Dias atrás, participei de uma live do canal "Coelho Pré-Cambriano" em que discutimos a importância da divulgação científica (o vídeo na íntegra pode ser visto AQUI). Dentre os desafios para democratizar o conhecimento das ciências, um dos maiores é encontrar uma maneira de substituir verdades dogmáticas por hipóteses transitórias. 

A teoria da evolução tem componentes adicionais que a tornam pouco palatável, quando não inaceitável, para porções expressivas da sociedade. Desde a publicação do "Origem das Espécies" por Charles Darwin em 1859, permanecem em alta temperatura discussões contrárias à explicação da origem e diversificação dos seres vivos sem a participação de uma inteligência transcendental ou mão divina criadora. Para Darwin e os evolucionistas que o sucederam, processos como a seleção natural atuando sobre variações pré-existentes nas populações de organismos, fruto de mutações do material genético e recombinações cromossômicas, funcionam independentemente de direcionamento prévio ou planejamento. 

Nos últimos 50 anos, diferentes cientistas aceitaram o desafio de levar os fundamentos da evolução para o público fora das universidades e instituições de pesquisa. Dois dos autores mais conhecidos do público, traduzidos para diversos idiomas (inclusive o português), são o britânico Richard Dawkins (1941- ) e o norte-americano Stephen Jay Gould (1941-2002) (ambos discutidos nesse espaço AQUI e AQUI). A despeito da percepção geral de que Dawkins e Gould eram "inimigos" ou tinham rixas incontornáveis, a realidade da disputa entre eles é bem menos acalorada. 

Tanto Dawkins quanto Gould concordam em aspectos fundamentais. Ambos vêem a descrição científica do universo como bela e completa (Gould também considera as humanidades e as religiões como aptas a oferecer insights sobre valores e maneiras de se viver). Aceitam que toda vida no planeta Terra, incluindo a nossa própria espécie, remonta a um ancestral comum muito simples, mais até do que as bactérias menos complexas conhecidas, surgido há cerca de 4 bilhões de anos. O processo evolutivo é natural, sem participação de um criador ou designer inteligente. Mutações aleatórias do material genético tem papel importante na geração de variabilidade, ainda que a evolução não seja uma loteria. A seleção natural, entendida como a sobrevivência diferencial de indivíduos frente a outros, e o consequente aumento da representatividade das características dos sobreviventes nas gerações futuras, é fundamental para compreender a adaptação dos organismos ao meio em que vivem.

Etólogo de formação, Dawkins estudou padrões de comportamento dos seres vivos. Na sua concepção, a principal questão tratada pela biologia evolutiva é a adaptação dos organismos aos ambientes e os processos naturais responsáveis por ela. Segundo Dawkins, a história da evolução é a história das linhagens de genes (unidades básicas da hereditariedade, um gene é constituído pelo segmento de uma cadeia de DNA responsável pela síntese de uma proteína). Assim, a luta pela sobrevivência seria a luta dos genes para se replicar. Tudo o que compõe um organismo para além do material genético corresponderia a receptáculos ou veículos para os genes. 

Gould era paleontólogo e focou seu trabalho nos macroprocessos (tais como o papel das extinções na história evolutiva). Para ele, eventos aleatórios são cruciais na constituição das biotas. Mesmo que considere significativo o papel da seleção natural, Gould dá peso a outros processos e eventos como definidores da história evolutiva dos organismos. Caso os dinossauros não-avianos tivessem sobrevivido ao impacto do meteorito e às suas consequências ao final do Cretáceo, 65 milhões de anos atrás, na certa os mamíferos não teriam se diversificado e nós não estaríamos aqui. Se voltarmos a fita da evolução 540 milhões de anos para o início do Cambriano e a tocarmos outra vez, o cenário resultante poderia ser distinto. 

Dawkins e Gould são dois gigantes da divulgação científica e referências obrigatórias. O texto de ambos tem refinamento literário, clareza de ideias e sabor. Não apelam para linguagem técnica demasiada, usando de metáforas precisas para apresentar o panorama da evolução orgânica no planeta, ou mesmo fora dele. Ainda que Daniel Pennac, no seu "Como um romance", diga que o verbo ler não suporta o imperativo, aqui a sugestão vale: leiam Dawkins e Gould.

Mas não leiam apenas Dawkins e Gould.

Quando falamos em divulgação científica, em especial textos voltados paras ciências biológicas, o viés de gênero é claro. Para além de Dawkins e Gould, outros nomes óbvios citados são Carl Zimmer, Edward Wilson, David Quammen, Neil Shubin… Todos homens. Nós somos maioria entre os autores de textos traduzidos e publicados. No entanto, como apontam Maren Wellenreuther e Sarah Otto no artigo "Women in evolution – highlighting the changing face of evolutionary biology" [Mulheres na evolução - destacando a nova face da biologia evolutiva], cientistas mulheres estão na vanguarda de muitas áreas de ciência, notadamente nos estudos evolutivos. Tal fato tem contribuído para mais autoras publicarem textos de divulgação científica, trazendo um olhar diferenciado e necessário.

A bióloga evolucionista Lynn Margulis (1938-2011) é um dos exemplos de cientista que transitou de forma competente entre a pesquisa de ponta e publicações para um público amplo (um pouco mais sobre ela AQUI). Em 1966, ela propôs que, no correr da evolução, muitos eventos de fusões entre bactérias ocorreram, originando espécies diferentes através de simbiogênese. Em um artigo recusado inúmeras vezes por revistas especializadas até ser publicado - um exemplo importante de resiliência e confiança, características necessárias para o trabalho científico -, Margulis sugeriu que muitos dos atributos dos organismos complexos derivam da junção de dois ou mais microrganismos diferentes, que passaram a compartilhar uma vida comum através da cooperação. De forma bem simplificada, as organelas celulares conhecidas como mitocôndrias e cloroplastos foram, um dia, organismos bacterianos livres. Essas bactérias devem ter sido fagocitadas por outras, mas não digeridas, e o “alimento” foi incorporado ao ambiente interno das bactérias ingestoras. Essa visão radical sobre a história dos seres vivos, que aponta o papel essencial da cooperação em contraponto à competição da visão clássica darwiniana, foi uma avanço conceitual capaz de sacudir o que imaginávamos saber de evolução. Além de excepcional pesquisadora, Margulis publicou diversos livros de divulgação científica, alguns deles em parceria com seu filho Dorion Sagan.

A historiadora da ciência Janet Browne (1950- ), especialista em história da biologia e professora em Harvard, é outro nome que precisa ser conhecido. Com várias obras traduzidas para o português, Browne é a principal biógrafa de Darwin. Seus dois volumes ("Charles Darwin: Viajando" e "Charles Darwin: O poder do lugar") e a biografia curta do "Origem das Espécies" - é isso mesmo, uma biografia de um livro! - devem figurar na lista de referências básicas de quem gosta de conhecer mais sobre a teoria evolutiva. 

No centro da revolução das pesquisas sobre processos evolutivos - que muitas vezes recebe o nome de "Síntese Estendida" (mais sobre ela AQUI) -, as geneticistas Eva Jablonka (1952 - ) e Marion Lamb (1939 - ) causaram impacto para além dos muros da academia com a publicação do seu "Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida" (com tradução em português). Na obra, elas discutem como a variabilidade dos organismos não depende apenas de mutações genéticas, e que existem outros fatores, chamados epigenéticos, capazes de alterar o funcionamento de genes e conjuntos de genes sem alterar sua sequência de DNA. Tais mudanças podem se perpetuar para as gerações descendentes, descoberta essa que contraria o "cânone" da Síntese Moderna da Teoria Evolutiva, concebida em meados do século XX, segundo o qual apenas mudanças ocorridas nos genes das células reprodutivas seriam herdadas. Em suma: Jablonka e Lamb resgatam as bases do pensamento de Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829), incorporando a ideia da herança dos caracteres adquiridos à teoria evolutiva a partir do conhecimento contemporâneo das ciências biológicas. 

Ainda sem tradução para o português, a especialista em biologia molecular e biotecnologia Nessa Carey tem sido uma das vozes mais interessantes a discutir, tanto em pesquisas publicadas em revistas especializadas quanto em obras de divulgação científicas e palestras, o estado da arte da genética. Em seus livros, ela apresenta como nossa visão sobre o genoma tem mudado e como premissas antes tidas como certas precisam de revisão. Suas três obras de divulgação são boas pedidas: "The epigenetics revolution: how modern biology is rewriting our understanding of genetics, disease, and inheritance" [A revolução epigenética: como a biologia moderna está reescrevendo nosso entendimento sobre genética, doença e herança, de 2012]; "Junk DNA: A Journey Through the Dark Matter of the Genome" [DNA lixo: uma jornada através da matéria escura do genoma, de 2015] e o mais recente "Hacking the Code of Life: How gene editing will rewrite our futures" [Hackeando o código da vida: como a edição de genes vai reescrever nossos futuros, de 2019).

Jane Goodall (1934- ), Evelyn Fox Keller (1936- ), Elizabeth Kolbert (1961- )... os exemplos aqui não esgotam o assunto. Que o meio editorial - tradicionalmente controlado por nós, homens, e pleno de movimentos a favor do status quo patriarcal -, se dobre à força das contribuições das mulheres para a ciência. Nas palavras de Maren Wellenreuther e Sarah Otto: "As mulheres estão alterando a maneira como pensamos sobre a biologia evolutiva, traçando novas direções de pesquisa, facilitando o caminho para outras mulheres, e amando seus empregos". 

Leituras indicadas:

1. Elizabeth Kolbert. 2015. A sexta extinção: uma história não natural. Editora Intrínseca, RJ.
2. Eva Jablonka & Marion Lamb. 2010. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida. Companhia das Letras, SP.
3. Evelyn Fox Keller. 2002. O século do gene. Editora Crisálida, MG.
4. Janet Browne. 2011. Charles Darwin: O poder do lugar. Editora Unesp, SP.
5. Janet Browne. 2011. Charles Darwin: Viajando. Editora Unesp, SP.
6. Lynn Margulis. 2008. Symbiotic Planet: a new look at evolution. Basic Books.
7. Lynn Margulis & Dorion Sagan. 2002. O que é vida? Jorge Zahar Editor, RJ. 
8. Lynn Margulis & Dorion Sagan. 2008. Acquiring genomes: a theory of the origin of species. Basic Books. 
9. Maren Wellenreuther & Sarah Otto. 2015. Women in evolution – highlighting the changing face of evolutionary biology. Evolutionary Applications, 9(1), 3-16. 
10. Nessa Carey. 2012. The epigenetics revolution: how modern biology is rewriting our understanding of genetics, disease, and inheritance. Icon Books Ltd. 
11. Nessa Carey. 2015. Junk DNA: a journey through the dark matter of the genome. Icon Books Ltd. 
12. Nessa Carey. 2019. Hacking the Code of Life: how gene editing will rewrite our futures. Icon Books Ltd.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Arte é um tipo diferente de ordem cósmica, de Brian Greene

Brian Greene (1963- ) é um físico norte-americano, diretor do Centro para Física Teórica da Universidades Columbia e exímio divulgador da ciência.

A partir do seu livro mais recente - Until the end of time: mind, matter, and our search for meaning in an evolving universe [Até o fim do tempo: mente, matéria e nossa busca por significa em um universo em evolução] -, ele produziu um breve ensaio, publicado no New York Times em 20 de maio de 2020, em resposta à pergunta "Por que a arte importa?".

Do ensaio, extraí o trecho abaixo, em tradução livre:
A arte é o componente crítico desse projeto [de compreender a natureza], um caminho em direção à variedade mais ampla de verdades que englobam a experiência subjetiva e celebram nossa resposta distintamente humana ao mundo. Isso é vital. Há verdades que se sustentam para além da articulação, seja na linguagem da matemática ou na do discurso humano. Há verdades que podemos perceber, verdades que podemos sentir (...) A arte é nosso meio mais refinado para acessar tais verdades. Não há um sumário universal da arte, uma definição não ambígua que a delineie. Nossas reações à arte são unicamente as nossas próprias. Mas é exatamente essa flexibilidade, essa dependência do individual, essa confiança no subjetivo, que faz da arte essencial para entender o nosso lugar demasiado humano na ordem cósmica.
Enquanto os padrões da matemática e da ciência importam porque eles falam de qualidades da realidade que existem além de nós, os padrões da arte importam porque eles falam de qualidades da realidade que existem dentro de nós.
O artigo completo de Greene pode ser lido em AQUI [em inglês]

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Por que as pessoas acreditam em ideias estranhas?

O mal da hipocrisia não está no fato de ser visível aos outros, 
mas no de ser invisível a quem a pratica.
Michael Shermer (2002)

Em A hora do lobo (1968), o cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) conta a história do pintor Johan, homem atormentado por aparições fantasmagóricas e angústias profundas que lhe assombram (e à sua mulher grávida, Alma) entre a meia-noite e a aurora.  Paulatinamente, durante as madrugadas delirantes na ilha isolada para a qual o casal se retira, Johan vai perdendo contato com a realidade externa e passa a duvidar de sua própria lucidez. É nessa hora do lobo que os questionamentos mais fundamentais emergem em nossa mente envolta nas brumas do homem dos sonhos, quando acordamos por vezes assustados, ainda imaginando estarmos em um mundo de pesadelo: Por que as pessoas acreditam em ideias estapafúrdias? O que nos leva a perder completamente o senso crítico e aceitar tolices flagrantes que chegam sem filtros aos nossos ouvidos? Como pessoas alfabetizadas são capazes de defender a existência de conspirações globais controladas por professores universitários, partidos políticos, megainvestidores e criminosos sexuais, que desejam transformar o mundo em uma utopia coletivista de autômatos bestializados adoradores do demônio? Qual a motivação para alguns considerarem plausível que uma entidade sobrenatural inescrutável molde nossa realidade nos seus mais ínfimos detalhes, e que o simples fato de chamarem essa ideia de “científica” seja suficiente para legitimá-la, mesmo contrariando centenas de anos de evidências empíricas organizadas e estudadas por um sem número de pessoas inteligentes?

Muitas vezes, nessa hora do lobo, a pseudo-teoria do Design Inteligente dança em frente aos meus olhos cheios de areia. E me lembro das inúmeras vezes em que fui questionado se acredito na possibilidade de um designer inteligente. Sempre respondo que sim a esse questionamento, afinal, minha esposa é designer E inteligente…

O Design Inteligente foi uma tentativa, até agora frustrada, de grupos religiosos inserirem o "criacionismo científico" no ensino de ciências dos EUA. O movimento foi criado pelo advogado norte-americano Phillip E. Johnson (1940– ) no final dos anos 1980. Professor de direito em Berkeley e aparentemente sem formação científica (além de não aceitar a teoria da evolução, ele também nega que o vírus HIV seja o causador da AIDS e defende que os fenômenos observáveis podem ser explicados por causas não-naturais), Johnson construiu seu discurso pseudocientífico a partir de uma pilha de contradições que não se fundamentava em evidências. No entanto, ainda que todos os seus frágeis argumentos tenham sido desconstruídos sem muito esforço nas últimas décadas, o Design Inteligente continua muito utilizado na retórica de políticos e líderes religiosos como alternativa à teoria evolutiva; pode-se mesmo dizer que os defensores do criacionismo científico são uma parte importante da comissão de frente dos movimentos contemporâneos contra a ciência e o pensamento acadêmico, que têm, entre suas hordas, grupos tão díspares quanto terraplanistas, paranoicos anti-vacinação, membros do alto escalão do governo em repúblicas ocidentais e “filósofos” best-sellers.

Após a publicação da sua obra máxima A origem das espécies por meio de seleção natural: ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida, em 1859, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) e seus contemporâneos iniciaram uma das maiores revoluções científicas de todos os tempos, encabeçando um questionamento radical do conceito que o homem fazia de si mesmo e da sua posição no mundo natural. Mesmo hoje, mais de um século e meio após a primeira edição do Origem ter se esgotado rapidamente nas livrarias britânicas, as controvérsias ainda ressoam. No entanto, nas ciências naturais, há pouquíssimas vozes discordantes da realidade da evolução (quando existem, são apenas manifestações carregadas de entrelinhas e segundas intenções). 

Evolução é um fato. O mundo natural é produto contínuo de mudanças, sejam elas graduais ou aceleradas, que vêm acontecendo desde a origem da vida na Terra há cerca de quatro bilhões de anos. Essa variação orgânica não tem um direcionamento prévio – não existe uma planta baixa, um blueprint ou um projeto que define como evoluem as características morfológicas, genéticas ou comportamentais dos seres vivos. Nesse sentido, não existe perfeição na evolução: adaptação diz respeito somente aquilo que funciona em um dado momento e em um dado contexto ambiental. Os mecanismos evolutivos prescindem de um objetivo final. São completamente desnecessários um designer, um demiurgo ou quaisquer figuras divinas influenciando a origem e diversificação da vida no planeta. 

Com o Origem de Darwin e a delimitação de uma área das ciências naturais chamada Biologia Evolutiva, verificou-se uma série de implicações muito claras, não apenas científicas mas também filosóficas, metafísicas e religiosas. O livro de Darwin e seus comentários e refinamentos subsequentes colocaram fim a uma visão de mundo calcada explicitamente no fixismo criacionista, segundo a qual uma entidade supranatural teria concebido toda a diversidade biológica existente, substituindo-a por uma natureza dinâmica, plena de variações por toda a sua história. O mecanismo discutido por Darwin, a seleção natural, extinguiu o papel dado no passado às forças sobrenaturais intangíveis na estruturação do mundo vivo.

A seleção natural é capaz de explicar a existência da enorme variedade de formas de vida no nosso planeta através de um processo materialista baseado na interação entre variação pré-existente e sucesso reprodutivo; desde meados do século vinte, sabemos que a variabilidade é causada principalmente por mutações genéticas e recombinações cromossômicas que acontecem nas células reprodutivas (tais como óvulos e espermatozoides). Com isso, os deuses tornaram-se tão obsoletos quanto os papiros, a máquina de escrever ou a fita cassete... Como corolário à ideia de que todos os organismos derivam de ancestrais comuns por um processo contínuo de ramificação – dessa forma, a ancestralidade comum conecta todos os seres vivos em uma gigantesca árvore genealógica com bilhões de ramos, considerando-se todas as espécies recentes e também as extintas –, completou-se a revolução iniciada com o astrônomo e matemático polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), retirando as poucas justificativas ainda existentes para a ideia de que o ser humano tem uma posição de centralidade em relação a todo o cosmos. O Homo sapiens, após Darwin, não é mais do que um galhinho na imensa árvore da vida.

Obviamente, o materialismo evolutivo não é contrário aos deuses, simplesmente porque estes não são objetos de estudos científicos e, portanto, não podem ser interpretados à luz do raciocínio lógico preconizado pela teoria da evolução. Parafraseando a lendária – e provavelmente apócrifa – resposta do astrônomo Pierre-Simon Laplace (1749-1827), deus é uma hipótese irrelevante para a biologia, assim como é irrelevante também para as demais ciências naturais. O paleontólogo norte-americano Niles Eldredge (1943– ), em seu livro O triunfo da evolução e a falência do criacionismo (publicado no Brasil em 2010), sintetiza de forma brilhante a nossa impossibilidade de experimentar diretamente, através dos nossos sentidos, o sobrenatural divino. Para ele, “(...) no empreendimento chamado ciência, não há afirmação ontológica de que não exista um Deus (...), mas sim um reconhecimento epistemológico de que, mesmo se esse Deus realmente existisse, não haveria como experimentá-lo, apesar dos meios impressionantes, embora ainda limitados, que estão à disposição da ciência”.

O Design Inteligente é um conjunto de afirmações sem sentido que tenta, a todo custo, mudar esse quadro. Eles postulam algo chamado “criacionismo científico”, uma contradição absoluta. Essa pseudociência, tão válida quanto a ufologia, a astrologia e a saúde quântica, baseia-se na premissa de que existe certo nível de complexidade irredutível nos sistemas biológicos, que os impediria de terem se originado por etapas através de um mecanismo lento e gradual como o da seleção natural. Já que a evolução gradualista não seria possível, nas palavras dos proponentes e defensores do movimento, a vida no planeta seria, portanto, obra de um designer ou projetista que tivesse pensado, a priori, no encaixe perfeito entre todos os componentes constituintes dos sistemas orgânicos. É a retomada da Teologia Natural, anterior à Darwin, segundo a qual as relações entre as partes constituintes dos seres vivos e entre estes e o ambiente no qual habitam seriam evidência irrefutável de um deus interventor responsável por toda a criação.

Para o bioquímico norte-americano Michael Behe (1952– ), da Universidade de Lehigh, autor do famigerado (e cientificamente questionável) A caixa preta de Darwin, o funcionamento de uma estrutura como o flagelo de uma bactéria, apêndice móvel em forma de chicote responsável pela movimentação dos microrganismos, estaria tão finamente relacionado a diferentes microestruturas e processos bioquímicos que só poderia ter sido fruto de um planejamento prévio feito por alguém (ou algo) de inteligência inescrutável. O conceito da complexidade irredutível de Behe revela nada mais do que a formação acadêmica enviesada do seu autor, ao menos na área da Biologia Evolutiva. A literatura especializada traz muitos exemplos de precursores do flagelo que de fato têm “partes faltantes”, quando comparados ao sistema irredutível apresentado por Behe, e, ainda assim, plenamente funcionais.

Behe fala de outras estruturas, como o olho, também inexplicáveis para ele dentro de uma perspectiva evolutiva gradualista, como a de Darwin e de muitos outros cientistas. No seu entendimento torto da natureza, olhos e estruturas fotorreceptoras não poderiam ter surgido “por partes” ou “incompletas”, uma vez que seriam sistemas irredutivelmente complexos – se retirássemos quaisquer dos seus componentes, todo o sistema colapsaria e perderia sua funcionalidade. Bobagem! Existem olhos muito menos intrincados, diferentes dos nossos, que funcionam e garantem a sobrevivência dos seus portadores (basta nos lembrarmos de planárias e seus ocelos estrábicos). No mais, existem espécies com acuidade visual maior que a do Homo sapiens, o que refuta a hipótese de que nossas estruturas orgânicas são o ápice da evolução. 

A questão do surgimento dos olhos nos animais é interessante. O gene Pax6 (referido como Eyeless em moscas, Aniridia em humanos e Small eyes em camundongos) está presente em todas as espécies portadoras de olhos ou ocelos, não apenas nos mamíferos mais modificados, como os primatas, grupo no qual nossa espécie se insere. Esse gene é capaz de induzir a formação de estruturas fotorreceptoras e exerce funções diferentes quando expresso em outros tecidos. Assim, vertebrados e insetos compartilham o mesmo gene fundamental e pelo menos parte das sequências de desenvolvimento que levam à expressão dos olhos, o que indica um alto grau de conservação evolutiva, e é também evidência inequívoca de parentesco evolutivo entre todos os animais.

Estima-se que o início da diversificação de genes como o Pax6 nos animais deu-se no período Cambriano, há cerca de 520 milhões de anos. Muitos dos sistemas gênicos que surgiram nesse período são, ainda hoje, compartilhados por diferentes grupos (águas vivas, baleias, insetos, minhocas, hominídeos...). Esses e outros exemplos podem ser encontrados em livros de ampla divulgação como o Infinitas formas de grande beleza (de 2006), do biólogo norte-americano Sean Carroll (1960– ) e O maior espetáculo da Terra (de 2009), publicado pelo evolucionista britânico Richard Dawkins (1941– ), ou ainda em inúmeros podcasts, postagens de blogs, vídeos  e artigos na internet. Aqui, e em qualquer outro tópico relacionado à Biologia Evolutiva, não há necessidade alguma de apelar para explicações sobrenaturais ou pseudocientíficas como fazem os defensores do Design Inteligente.

Não existem sistemas de complexidade irredutível porque os atributos biológicos que surgem e se disseminam são locais, baseadas na relação entre os portadores desses atributos e o ambiente em que se encontram. Algo que garanta altas taxas de sobrevivência e reprodução em um período, se modificadas as condições do entorno e as pressões seletivas, pode se tornar um entrave à perpetuação dos descendentes tempos depois. O Design Inteligente parte da premissa equivocada de que tudo o que existe no mundo natural é perfeitamente ajustado. No entanto, como dito anteriormente, evolução não diz respeito à perfeição, e sim ao que funciona.

Alguém poderia manifestar que os “teóricos” do Design Inteligente, assim como os “teóricos” dos alienígenas do passado (ou do Antigo Astronauta)[i], têm todo o direito de se expressar. Isso é óbvio. O que é temerário não é a existência de panfletos defendendo a realidade de um projetista que tenha conscientemente criado todas as formas de vida do universo, ou a realização de congressos de “pesquisadores” e entusiastas sobre o tema. Qualquer forma de conhecimento, seja ela convergente ou dissonante das nossas premissas científicas ou crenças, deve circular livremente; o fomento ao debate de ideias é condição essencial para o refinamento do intelecto e a manutenção de sociedades democráticas e menos desiguais. O que não se pode é misturar maçãs e laranjas: o Design Inteligente NÃO é ciência e, portanto, NÃO deve ser ensinado como tal. Ele não é uma explicação alternativa à teoria evolutiva. O Design Inteligente é retórica criacionista, uma forma de introduzir o literalismo bíblico nas aulas de ciências, que deveriam ter por objetivo permitir aos estudantes discutir e examinar evidências científicas utilizadas para compreender a natureza, e não tratá-la simplesmente como o resultado de um evento único e deliberado de criação perpetrado por um agente externo à própria natureza e que teria relatado todo o seu trabalho em um livro confuso, contraditório, e cheio de circunvoluções literárias.

Quem entraria em uma padaria para encher o tanque do seu carro ou procuraria na loja de materiais de construção por um maço de alfaces? É muito simples: se não é ciência, não deve ser ensinado ou discutido como ciência. Não existem artigos sobre Design Inteligente publicados em periódicos científicos confiáveis – é de se esperar que revistas bem qualificadas tenham um sistema de revisão por pares, ou peer-review, no qual os trabalhos submetidos são avaliados por pesquisadores especializados, que emitem pareceres favoráveis ou não à publicação. Não há experimentos ou observações capazes de testar as premissas dessa pseudociência[ii].

Se alguém imagina que os relatos criacionistas judaico-cristãos devam ser ensinados durante as aulas de ciências, que defenda também o ensino dos mitos de criação indígenas, das mirabolâncias fantásticas da Cientologia e dos ditames do Pastafarianismo, além de todas as mais de 6.000 crenças religiosas existentes no planeta. Foi mais ou menos esse o argumento levantado pelo físico norte-americano Bobby Henderson (1980– ) em 2005. Ele era um estudante da Oregon State University, nos EUA, e mandou uma carta aberta ao conselho de educação do estado do Oregon, que discutia a possibilidade de incluir o Design Inteligente no currículo escolar. Seu texto é um estupendo exemplo de ironia e sarcasmo (faço aqui uma tradução livre de um excerto. O original pode ser encontrado AQUI ):

Eu e muitos outros ao redor do mundo aceitamos fortemente que o universo foi criado por um Monstro Espaguete Voador. Foi Ele quem criou tudo o que vemos e o que sentimos. Sentimos fortemente que as extraordinárias evidências científicas que defendem a existência de processos evolutivos não são mais do que coincidências, colocadas lá por Ele.

É por essa razão que estou lhes escrevendo hoje, para formalmente requisitar que essa teoria alternativa seja ensinada em suas escolas, juntamente com as outras duas teorias. De fato, eu iria longe o suficiente para processá-los caso vocês não concordem com isso. Estou certo que vocês estão percebendo para onde vamos. Se a teoria do Design Inteligente não é baseada na fé, mas é apenas outra teoria científica, como ela clama, então vocês devem permitir que nossa teoria seja ensinada, uma vez que ela também se baseia na ciência, e não na fé.

Alguns acham difícil acreditar por isso talvez seja útil contar-lhes um pouco sobre nossas crenças. Nós temos evidências que um Monstro Espaguete Voador criou o universo. Nenhum de nós, é claro, estava lá para ver, mas temos escritos que contam a respeito. Temos inúmeros volumes grossos explicando todos os detalhes do Seu poder (...)

O Design Inteligente é tão científico quanto o Monstro Espaguete Voador e não pode ser ensinado em aulas de ciências, de nenhum nível, seja fundamental, médio ou superior. Design Inteligente é uma tática desonesta que tem por objetivo tornar obrigatório aos estudantes entrarem em contato com uma visão de mundo criacionista compartilhada por um grupo em detrimento a milhares de outras igualmente absurdas do ponto de vista científico. 

Incluir o Design Inteligente nos currículos escolares é um crime contra o Estado laico, contra a ciência e até contra a liberdade religiosa. Se o sujeito é hindu, ou xintoísta, ou pastafariano, por que tem que estudar o mito de criação de outra religião e não da sua?). No Brasil, ainda (escrevo isso em janeiro de 2019, pouco após a posse do novo presidente do Brasil), tal medida seria frontalmente inconstitucional[iii].

As aulas de ciências são espaços próprios para se discutir a necessidade de evidências que suportem nossas afirmações. Crianças e adolescentes devem ser incitados a não acreditarem em proposições quando não existem fundamentos para supô-las verdadeiras: sem ceticismo não há alfabetização científica. Ao tentar impor aos jovens em formação a ideia de que um projetista foi responsável por tudo o que existe no universo, advogamos abertamente a favor da irracionalidade e do obscurantismo. Influenciar a educação científica dos estudantes, por força de lei e de interesses sub-reptícios de congregações religiosas e agendas políticas, é impedir que uma geração inteira acorde do pesadelo do subdesenvolvimento e da submissão intelectual.

Dum spiro spero[iv]. Mesmo na atual realidade distópica em que vivemos, repleta de ignorância, retrocessos e crenças cegas que se sobrepõem às evidências e ao livre pensar, uma aurora menos cinzenta é possível. Para tal, devemos combater a crescente barbárie que assola a civilização contemporânea com as armas da razão, do pensamento científico e do humanismo. Incansavelmente.

Notas 


[i] Essa hipótese pseudocientífica descreve a crença de que criaturas extraterrestres visitaram a Terra há milhares de anos, e que interagiram de alguma forma com civilizações humanas; em algumas das suas vertentes, “teóricos” dos alienígenas do passado chegam mesmo a dizer que foi os ETs interviram na evolução da vida no nosso planeta através de experimentos genéticos.

[ii] No dia 14 de dezembro de 2015, a conceituada revista PLoS One (acrônimo para Public Library of Science One) aceitou para publicação o artigo “Biomechanical Characteristics of Hand Coordination in Grasping Activities of Daily Living” – em tradução livre “Características Biomecânicas da coordenação da mão em atividades de agarramento na vida diária” – de autoria de Ming-Jin Liu, Cai-Hua Xiong, Le Xiong e Xiao-Lin Huang. Em linhas gerais, o trabalho tinha entre suas conclusões a ideia de que a habilidade manual humana extraordinária revela (pasmem!) o design divino. Se somos tão hábeis em agarrar objetos, clicar em sites maliciosos e digitar infindáveis mensagens no Whatsapp, o artigo da PLoS One sugere fortemente que isso tudo é obra de Deus. Para os autores: “(...) A ligação funcional explícita indica que a característica biomecânica da arquitetura conectiva tendínea entre músculos e articulações é o design adequado feito pelo Criador para realizar uma infinidade de tarefas diárias de uma maneira confortável”. Dado o burburinho da comunidade científica, o artigo de Liu e seus colaboradores foi retratado pelo periódico, que se desculpou e prometeu apurar em que passo (ou passos) do processo de revisão houve equívocos.

[iii] Em 03 de janeiro de 2019, foi aprovada no Brasil a lei 13.796, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e assegura, aos alunos regularmente matriculados em instituições de ensino públicas ou privadas, o direito de ausentar-se de provas ou aulas marcadas para os dias em que for vedado o exercício de tais atividades segundo os preceitos de sua religião; essa nova lei entra em conflito com o princípio de um Estado laico, garantido pela Constituição Federal brasileira promulgada em 1988.

[iv] Enquanto respiro, tenho esperança.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Taxonomia não é ufologia!


"Eu quero acreditar". Esse era o mote de um dos seriados mais icônicos dos anos 1990, Arquivo X. Semana a semana, os agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully se viam investigando o aparecimento de seres espetaculares, monstros pré-históricos redivivos, pés-grandes e organismos extraterrestres co-participantes de uma conspiração mundial de proporções quase inimagináveis. Eu achava tudo muito divertido e acompanhava fielmente a série, ainda que o criador Chris Carter não tivesse preocupação alguma com precisão científica.

Recentemente, alguns taxonomistas ressuscitaram o slogan "Eu quero acreditar" em um contexto distinto: eles têm defendido a possibilidade de se descrever novas espécies mesmo ser terem em mãos qualquer material biológico fisicamente palpável. Bastaria uma foto e a indicação de um especialista, sugerindo que a espécie fotografada não é conhecida pela ciência, para justificar um novo trabalho de descrição taxonômica. Coleta de material biológico? Não é necessário! Depósito de espécimes em museus e coleções de história natural? Dispensável! Sequenciamento de material genético, dissecção de partes anatômicas importantes para a diagnose da espécie, análise do comportamento do organismo no ambiente natural? Detalhes demais para um mundo de demandas tão aceleradas...

Na taxonomia tradicional, é prática corriqueira a coleta de espécimes através de técnicas como armadilhas montadas em áreas naturais ou procedimentos ativos (na entomologia, ramo da zoologia que trata do estudos dos insetos, usamos puçás no campo, que são redes de "caçar borboletas"). Os indivíduos coletados, caso não sejam identificados como nenhuma espécie conhecida, podem ser descritos como novas espécies, recebendo um nome - formado pelo gênero mais um epíteto específico - a partir de regras de nomenclatura derivadas daquelas criadas por Carolus Linnaeus no século XVIII.

As descrições de espécies dependem da observação pormenorizada dos indivíduos coletados. Estas podem ser realizadas a olho nu, em microscópios ópticos, eletrônicos ou estereomiscroscópios, muitas vezes após dissecções dos espécimes e montagem das suas partes em lâminas permanentes ou temporárias. Tal trabalho consome muito tempo porém é imprescindível para identificações e descrições precisas.

A única forma de garantir que as “novas espécies” descritas não existam apenas no mundo das ideias é estudando os indivíduos que serviram de base para as descrições. Sem eles, a zoologia e a botânica sempre se remeterão à autoridade: a existência de uma espécie dependerá de se acreditar (ou não) na idoneidade do taxonomista e na pertinência da sua fonte única de evidências primárias. Só que não é difícil encontrar pesquisadores inidôneos...

Neste ano de 2016, um entomólogo russo - Sergey Viktorovich Pushkin - publicou uma nova espécie de besouro da família Dermestidae. Ele a nomeou Thaumaglossa zhantievi. No trabalho original (que pode ser baixado AQUI), há uma foto da região dorsal de um espécime e uma ilustração da terminália (a porção reprodutiva, fundamental para a diagnose de muitos insetos) (Figura 1).

Figura 1: A "nova espécie" Thaumaglossa zhantievi.

Ainda que a descrição seja demasiado sintética, seria válida. Está de acordo, por exemplo, com o que define o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica. No entanto, a foto utilizada no artigo de Pushkin como representativa dessa nova espécie foi simplesmente roubada de um outro artigo publicado anos atrás, que descrevia a espécie de dermestídeo Thaumaglossa laeta (as fotos do material utilizado nesta descrição podem ser vistas AQUI). Pushkin COPIOU a foto de T. laeta, fez algumas pequenas alterações através de algum software de edição digital de imagens, e inseriu no seu próprio trabalho. Não contente, a ilustração da terminália da "espécie nova" T. zhantievi também foi roubada de outro trabalho, que descrevia Thaumaglossa mroczkowskii (Figuras 7 e 9 do artigo disponível AQUI).

Em suma: o entomólogo russo simplesmente INVENTOU uma nova espécie! Ele surrupiou a foto de uma espécie publicada e já descrita, deu uma arrumada no Photoshop (deixando o espécime simétrico), roubou a ilustração de uma terminália de outra espécie, fez o mesmo procedimento no Photoshop e... voilá! Mais uma "espécie nova" para emporcalhar a literatura, publicada em uma revista com índice de impacto e revisão-por-pares (ou ímpares já que deixaram passar tamanho absurdo).

A recente defesa da utilização de fotografias (sem coleta, sem análise de material de referências) como evidência suficiente para a descrição de novas espécies presta um desserviço à prática taxonômica. Abre precedentes para picaretagens como a de Pushkin e pode ser fatal para nossos esforços em direção ao aumento do conhecimento da biodiversidade e para a conservação biológica.

Por mais que estejamos vendo todos os dias os ambientes naturais se deteriorando - quando não completamente destruídos -, ainda que muitas espécies estejam sendo extintas (uma delas pode ter perecido no exato momento em que você lê esse breve ensaio), nada justifica a frouxidão científica. Descrever espécies não é um jogo em que ganha aquele cientista, grupo de pesquisa ou país que nomeia a maior quantidade de novos táxons. Não estamos nos Jogos Olímpicos da taxonomia. É preciso seriedade e apreço por práticas que garantam a repetibilidade nos laboratórios, permitindo a outros pesquisadores e interessados conhecer o máximo possível sobre uma espécie. Fotografias não são suficientes - elas não são substituto da realidade e sim uma representação dela.

"Eu não quero acreditar" que uma espécie descrita existe de fato para além daquilo que foi publicado em um artigo científico. "Eu quero saber"! E, para isso, não dá para contar apenas com imagens. Taxonomia não é ufologia, é ciência. Deve ser tratada assim sempre.

Referências
Amorim, D.S. et al. 2016. Timeless standards for species delimitation. Zootaxa, 4137(1), 121-128.
Pape, T. et al. 2016. Taxonomy: species can be named from photos. Nature, 537, 307.
Santos, C.M.D. et al. 2016. On typeless species and the perils of fast taxonomy. Systematic Entomology, 41, 511-515.
Spineli, P.K. 2010. Mais humano que humano: o cyberpunk na fotografia de Blade Runner. Revista Olhar, 22, 162-186. 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Breves resenhas: O mal ronda a Terra

Desde 2013, sou representante docente no Conselho Universitário da universidade em que leciono. Um dia desses, apresentando o relato de uma proposta de pós-graduação neste conselho, sugeri que os coordenadores do projeto tomassem bastante cuidado com a produção científica/acadêmica dos seus docentes credenciados e que levassem em consideração a possibilidade de reduzir o número de disciplinas ofertadas, na tentativa de garantir uma alocação didática mais eficiente nos anos vindouros. Por isso, fui taxado de “direitista” e “alinhado com o imperialismo exploratório eurocentrista” por uma das representantes deste mesmo conselho, particularmente encarniçada (e, como de praxe entre os extremistas de qualquer matiz, sem nenhuma finesse ou humor), ainda que minha sugestão de encaminhamento tenha sido pela aprovação da proposta de pós-graduação.

O historiador Tony Judt (1948–2010) levantou-se inúmeras vezes contra perspectivas anacrônicas como a citada acima, dada a sectarismos e ausência completa de empatia e generosidade para com o alheio. Para Judt, é preciso aprender a lidar com as necessidades comuns rejeitando o individualismo niilista da direita e o socialismo deturpado do passado. Em seu último livro publicado em vida, “O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente” (de 2010), ele discute a necessidade de se abandonar a fé cega no mercado e de colocar o respeito à igualdade de direitos acima de qualquer coisa. Seguem abaixo alguns trechos da obra:
O caráter materialista e egoísta da vida contemporânea não é inerente à condição humana. (p. 16)
A última vez que um grupo de jovens expressou comparável desânimo pelo vazio de suas vidas e da frustrante falta de sentido do mundo foi nos anos 1920: não por acaso os historiadores falam de uma geração perdida. (p.17)
O governo pode desempenhar um papel maior em nossas vidas sem ameaçar a liberdade. (p. 19)
A desigualdade é corrosiva. Faz com que as sociedades apodreçam por dentro. (p. 30)
Quanto mais nos tornamos iguais, mais acreditamos que a igualdade é possível. (p. 32)
O crescimento econômico beneficia a todos, mas privilegia desproporcionalmente uma pequena minoria em posição de explorá-lo. (p. 33)
[O pensamento econômico hoje] decreta que busquemos nossos interesses (definidos como vantagens econômicas maximizadas) com o mínimo de referência a critérios externos como altruísmo, renúncia, gosto, hábitos culturais ou propósitos coletivos. (p. 44-45).
O medo e o descontentamento das classes médias deram origem ao fascismo. (p. 58)
Todos os empreendimentos coletivos exigem confiança (...) os humanos não conseguem atuar juntos a não ser suspendendo a desconfiança que sentem uns pelos outros. (p. 67)
O individualismo da nova esquerda não respeitava nem o propósito coletivo nem a autoridade tradicional (...) o que lhe restava era o subjetivismo do interesse e do desejo privados – medido de forma pessoal. Isso, por sua vez, conduzia ao recurso do relativismo estético e moral: se algo é bom para mim, não me cabe determinar se é bom ou mal para outros – e muito menos impor isso a eles (p. 90)
O único motivo para os investidores privados adquirirem empresas publicas aparentemente ineficientes é a eliminação ou redução de sua exposição ao risco, bancada pelo Estado (...) como jamais se permitira a quebra de serviços indispensáveis, elas podiam correr riscos, gastar mal e desbaratar recursos à vontade, sabendo que o governo acabaria pagando a conta. (p. 108-110).
Ao reduzir as responsabilidades e possibilidades do Estado, minamos sua situação pública. (p. 113-114).
Qualquer sociedade (...) que destrói a estrutura de seu Estado logo se vê ‘desconectada, reduzida ao pó da individualidade’. (p. 116)
Uma consequência impressionante da desintegração do setor público tem sido a crescente dificuldade em compreender o que temos em comum com outras pessoas. (p. 117)
Se os bens públicos – serviços, espaços, instalações – se desvalorizam, perdendo importância aos olhos dos cidadãos, e dão lugar a serviços privados disponíveis só para quem pode pagar, então perdemos o senso de que os interesses comuns e as necessidades comuns devem ter prioridade sobre as preferências privadas e a vantagem individual. (p. 125)
Numa era em que os jovens são estimulados a maximizar o interesse e o progresso individuais, o incentivo ao altruísmo e até ao bom comportamento se torna obscuro. (p. 125)
Se não respeitamos os bens públicos; se permitimos ou estimulamos a privatização nos espaços, recursos e serviços públicos; se apoiamos com entusiasmo a propensão de uma geração mais jovem a cuidar exclusivamente de suas próprias necessidades, então não deveremos nos surpreender com a progressiva redução do engajamento cívico no processo público de tomada de decisões. (p.126)
Por que temos tanta certeza de que planejamento ou taxação progressiva, ou propriedade coletiva de bens públicos, são restrições intoleráveis à liberdade? Por outro lado, por que câmeras de televisão de circuito fechado, ajuda estatal para bancos de investimentos “grandes demais para quebrar”, telefones grampeados e guerras custosas no exterior são ônus aceitáveis para um povo livre? (p. 144)
Há um preço a pagar pelo conformismo. Um círculo fechado de opiniões ou ideias no qual o descontentamento ou a oposição jamais são permitidos – ou aceitos apenas dentro de limites predeterminados e artificiais – perde sua capacidade de reagir a novos desafios com energia ou imaginação. (p. 147)
Repúblicas e democracias só existem em virtude do engajamento de seus cidadãos na condução dos negócios públicos. Se cidadãos ativos e preocupados descartam a política, eles abandonam a sociedade aos mais medíocres e venais servidores públicos. (p. 153)
Politicamente falando, vivemos na era dos pigmeus. (p. 154)
Os ricos não querem a mesma coisa que os pobres. Quem depende do trabalho para sustentar a família não quer a mesma coisa que quem vive de investimentos e dividendos. Quem não precisa dos serviços públicos – pois pode adquirir transporte, educação e segurança privadas – não busca o mesmo que as pessoas que dependem exclusivamente do setor público. (...) As sociedades são complexas e convivem com interesses conflitantes. Afirmar o contrário – negar distinções de classe, riqueza ou influência – é só um jeito de privilegiar um conjunto de interesses em detrimento de outro. (p. 157)
Acesso desigual a recursos de qualquer tipo – dos direitos humanos à água – é o ponto de partida de qualquer crítica progressista verdadeira do mundo. Mas a desigualdade não é apenas um problema técnico. Ela ilustra e exacerba a perda da coesão social – a ideia de morar num conjunto de condomínios fechados cujo principal propósito é afastar outras pessoas (menos afortunadas que nós) e restringir nossos privilégios a nós a nossas famílias tornou-se a patologia da época e a maior ameaça à saúde de qualquer democracia. (p.170-171)
A volta à ditadura pode ser sedutora em países nos quais a tradição autoritária mantém considerável apoio silencioso. (p. 199)
Todos os argumentos políticos precisam começar por uma avaliação de nossa atitude não apenas em relação aos sonhos de progresso futuro mas também das conquistas passadas: nossas e de nossos antecessores. (p. 209)
Referência:
Judt, T. 2010. O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Tradução: Celso Nogueira. Editora Objetiva, Rio de Janeiro.

Ilustração de Joe Ciardiello (www.nytimes.com)