sábado, 25 de maio de 2013

Sobre especismo, inteligências artificiais e a posição do Homo sapiens

Cientificamente, avançamos muito na compreensão de como a senciência se distribui na árvore da vida. Entretanto, nossos princípios culturais e jurídicos são especistas por definição, e não levam em conta, ou contrariam frontalmente, as outras espécies do planeta. Visto que podemos estar às vésperas da singularidade tecnológica e da emergência de uma inteligência artificial sobre-humana, é premente a discussão de uma moralidade pós-Darwiniana que trate do direito de diferentes espécies, sejam elas não-humanas, humanas ou pós-humanas.

Senciência é a capacidade de sofrer, sentir prazer ou felicidade. Hoje, possuímos um amplo conhecimento sobre a distribuição da senciência na árvore da vida. Evolutivamente, as diferenças entre a capacidade cerebral e cognitiva do Homo sapiens e das demais espécies de vertebrados, em especial dos Mammalia, são de grau, não de tipo.

Desde a publicação do “On the origin of species”, de Charles Darwin (1859), sabemos que a evolução é um processo contínuo de descendência com modificação a partir de um ancestral comum. Apesar da existência de descontinuidades na história evolutiva – como explica a teoria do equilíbrio pontuado de Niles Eldredge e Stephen Jay Gould (de 1972), segundo a qual existem períodos curtos em termos geológicos de rápida diversificação biológica pontuados por longos períodos de estase em que eventos de especiação são menos frequentes –, há muitas evidências que suportam o compartilhamento de atributos entre todas as formas de vida no nosso planeta, desde aquelas mais mais simples, como bactérias e amebas, até as mais derivadas, com redes neuronais complexas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Ensinar a pensar: o desafio da alfabetização científica


Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre é impassível e duro. Quando uma árvore nasce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece, nunca vencerá.
do filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovski

Em 1831, então com 20 anos, o matemático francês Évariste Galois, publicou um artigo no Gazzete des Écoles intitulado "Sobre o ensino de ciências, os professores, os trabalhos, os examinadores". Galois, que morreria precocemente aos 21 anos, foi um dos pioneiros na teoria de grupos, fundamental para a compreensão do conceito de simetria.

O texto de Galois, segundo o astrofísico e matemático israelense (nascido na Romênia) Mario Livio, foi "um manifesto impressionante exigindo uma reforma completa no ensino das ciências" (Livio, 2008, p. 152). Ele seleciona dois trechos do artigo, que reproduzo aqui. Apesar de falarem da França do século XIX, são absolutamente atuais e válidos também para a realidade brasileira:

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Oceanos inteligentes e flores extraterrestres

No clássico da ficção científica Solaris, publicado em 1961, o escritor polonês Stanislaw Lem (1921-2006) discute algumas das questões mais profundas já levantadas pela nossa espécie em seus devaneios e investigações filosófico/científicas: O que é vida? Como identificar o que é vivo em comparação ao que não é? Por que parte das coisas que existem são vivas? Por que as coisas vivas são encontradas em uma grande diversidade de formas? Por que alguns seres vivos têm consciência e de que maneiras ela pode se manifestar? Toda vida no cosmo depende de informação codificada em moléculas de DNA ou de processos baseados na bioquímica do carbono? Como encontrar uma definição de vida que se aplica não somente ao que conhecemos? Reconheceríamos algum tipo de vida extraterrestre?

Lem não responde a praticamente nenhum desses questionamentos (e nem é essa a intenção do seu romance). Solaris trata do contato humano com formas de vida alienígenas e se poderíamos, uma vez encontrado um organismo extraterrestre, transcender o antropomorfismo e o antropocentrismo inerentes à nossa cognição na tentativa de compreendê-lo. A saga do psicólogo Kris Kelvin e de seus companheiros solaristas Sartorius e Snow demonstra a dificuldade que nossa espécie tem de se despir dos seus preconceitos e enxergar o lado do outro, alheio à nosso referencial e concepções prévias. Para Istvan Csicsery-Ronay Jr., professor do Departamento de Inglês da DePauw University (EUA), a ciência reflete as questões que os cientistas são impelidos a fazer sobre a natureza. O antropocentrismo é fundamento para a construção de hipóteses e, consequentemente, acaba por pré-selecionar os dados a serem estudados. 

domingo, 25 de novembro de 2012

A perigosa ideia de Darwin - parte 1



A natureza mostra-nos apenas a cauda do leão. Mas eu não tenho dúvida de que o leão lá está, mesmo que ele não possa se revelar por inteiro de uma vez. Nós o vemos apenas da maneira como um piolho que mora nele o veria
Albert Einstein (1914)
Na última semana, uma das minhas alunas finalmente entregou seu trabalho de conclusão de curso (que é um dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Ciências Biológicas na universidade em que leciono). O trabalho traz uma análise histórica sobre a seleção natural e seu papel na teoria evolutiva, desde Charles Darwin (1809-1882) e Alfred R. Wallace (1823-1913) até a contemporaneidade, detendo-se nas discussões contemporâneas cada vez mais acirradas sobre alguns dos argumentos fundamentais da teoria evolutiva.

É certo que a teoria da evolução não surge com Darwin e Wallace em meados do século XIX. Ideias sobre o transformacionismo no mundo orgânico já apareciam na literatura ao menos desde o século anterior, com autores como Pierre Louis Maupertuis (1698-1759), Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788) e Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829).

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Representando a evolução: a árvore da vida

Como é de conhecimento comum, a mais tradicional representação da teoria da evolução é uma fila indiana de hominídeos, liderada pelo Homo sapiens, tendo como maior retardatário um animal bípede de feições simiescas, o Australopithecus, ou mesmo um pequeno chimpanzé. Qualquer um já se deparou com tal ilustração, seja em peças publicitárias, charges humorísticas, outdoors, camisetas, obras religiosas que pretendem discutir conceitos científicos, e mesmo em livros e revistas de divulgação científica. Para a cultura pop, essa figura, chamada de iconografia canônica por Stephen Jay Gould no seu livro “Vida Maravilhosa”, é sinônimo de evolução darwiniana, e é igualmente equalizada à ideia de progresso. Apesar de onipresente, a iconografia carrega incorreções e ranços que empobrecem a concepção popular sobre as ciências da vida no geral, e sobre a teoria da evolução em particular.

Na interpretação corrente da iconografia da evolução, o primeiro indivíduo de uma série é tido como o mais primitivo, a partir do qual surge outro, "mais evoluído”, em um contínuo linear de transformações e substituições que culminaria no homem como ápice do processo evolutivo (algo como a obra prima da natureza).

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Grupos monofiléticos, Bombons Paraenses e as belezas do Norte

Manaus é quente, muito quente. As temperaturas chegam sem alarde aos trinta e oito, trinta e nove graus, e a sensação térmica ainda é aumentada pela umidade superior a 90% em boa parte do ano. Entretanto, o que torna a capital amazonense um quase literal caldeirão é menos o seu clima e mais a notável diversidade humana que lá encontramos.

Estive na cidade nas duas últimas semanas de agosto, ministrando um curso de Sistemática Filogenética para a pós-graduação em Entomologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Um dos centros de excelência em pesquisa brasileiro, o INPA reúne professores e alunos de todas as regiões do país. Na minha sala de aula havia desde um mineiro de Pratápolis (!) a uma gaúcha obrigada a traduzir descrições em alemão arcaico de espécies de louva-deus, passando por um paraense ex-vocalista de uma banda cover do Kiss (!) e uma capixaba especialista em insetos aquáticos que descobriu seu talento como coiffeur picotando o cabelo dos colegas pós-graduandos que queriam economizar no cabeleireiro. Em entomologia, todos os caminhos parecem mesmo levar à Manaus...

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Argumentos falaciosos que camuflam os OGMs

É sempre um prazer compartilhar realizações com quem respeitamos e admiramos pelo seu caráter e importância. Fernando Zucoloto é professor titular no Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP), especialista em comportamento alimentar, um dos criadores do Centro Estudantil da Biologia da USP/RP e organizador da primeira Semana de Bio Estudos (que já está na edição 40!) dessa instituição. Foi dos meus professores mais marcantes. Ouvi dele pela primeira vez a Darwiniana frase “evolução não é sobrevivência do mais forte, é descendência com modificação” e também “foi o homem quem fez a religião, não foi a religião que fez o homem” (essa de Karl Marx).

Na edição de julho da Scientific American Brasil (número 122) foi publicado um artigo de minha autoria em colaboração com o prof. Zucoloto discutindo como algumas considerações superficiais sobre organismos geneticamente modificados podem ocultar muitas das suas ameaças potenciais. O texto na íntegra pode ser lido abaixo.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Breves resenhas: Fogo na mente, de George Johnson (1997)

No meu segundo ano de graduação em Ciências Biológicas, um professor convidado a dar uma das aulas na disciplina Biofísica I nos brindou com uma bela (apesar de breve) explanação sobre teoria do caos e sua importância para a compreensão da realidade física. O tema me fascinava desde os tempos em que lia Super-Interessante - sim, essa revista já foi relevante para a divulgação científica brasileira! Falava muitas vezes sobre teoria da relatividade, física quântica, biologia, computação, publicava longas resenhas de livros como "Vida Maravilhosa", de Stephen Jay Gould, e até mesmo abria espaço para contos baseados em conceitos científicos, como o extraordinário "The last question", de Isaac Asimov.

Ao final da aula, o professor nos indicou a leitura de "Fogo na mente". Lembro-me que não nos passou o nome do autor ou qualquer informação adicional sobre o livro. Consegui uma cópia dele há alguns anos mas só o enfrentei em 2012. Boa leitura, a despeito de alguns trechos enfadonhos sobre a história do Novo México e adjacências (mas que fazem sentido no contexto da obra). O autor procura discutir, sob diferentes ângulos, o problema da ordem no universo, incluindo aí a origem da vida e da complexidade dos sistemas vivos. Selecionei alguns trechos a meu ver particularmente interessantes:

quarta-feira, 18 de abril de 2012

O que Dawkins não sabia: em busca de uma Teoria Estendida da Evolução

O biólogo britânico Richard Dawkins é reverenciado mundialmente como um dos grandes pensadores contemporâneos da teoria da evolução. Ele, junto com o finado paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould (1942-2002), provavelmente está entre os autores mais lembrados pela opinião pública quando se fala sobre o maior espetáculo da Terra, a evolução das espécies. Para muitos, as palavras de Dawkins a esse respeito constituem o estado da arte da teoria evolutiva. A idéia desenvolvida por ele no seu “The Selfish Gene” (“O gene egoísta”), originalmente publicado em 1976, ainda funciona como principal referência para a discussão sobre os níveis de seleção e o genecentrismo do processo evolutivo.

No entanto, como se descobre ao se estudar os desenvolvimentos das ciências biológicas nas últimas décadas, o escopo da obra de Dawkins talvez apenas arranhe a complexidade inerente da evolução orgânica e de seus processos multi-facetados. O título dessa postagem foi uma provocação do aluno de Graduação em Biologia da UFABC, Vinícius Parajara, um dos participantes do projeto "Leituras no Laboratório de Sistemática e Diversidade (LSD)", em que reservamos algumas horas semanais para trocar idéias e aprender um pouco mais a respeito de padrões e processos do mundo biológico. Muito do que Dawkins não mostra em seus livros é tema da assim chamada Teoria Estendida da Evolução.



domingo, 18 de março de 2012

Breves resenhas: Caim, de José Saramago (2009)



O escritor português, prêmio Nobel de Literatura em 1998, faz uma versão literária de "Deus, um delírio", de Richard Dawkins. Caim - o irmão de Abel, do mito bíblico do Gênesis - é o personagem principal, transformado por Saramago em um Marty McFly do Velho Testamento, condenado a vagar eternamente pelo espaço e pelo tempo com uma marca na testa e munido apenas de um "Delorean" bem mais modesto (um jumento de pernas fortes).

É um romance breve, que pode ser lido como um exercício de lógica aplicada às fantasias absurdas e incongruentes da Bíblia. Saramago, no seu estilo tradicional com poucos parágrafos e nenhuma separação entre diálogo e ação, aproxima-se da oralidade espontânea em passagens bem-humoradas e absolutamente "heréticas" que podem ser lidas como um discurso anti-conformismo e anti-sectarismos cegos:
O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isca. No terceiro dia de viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes (p. 79)
Os desígnios de deus são inescrutáveis, nem nós, anjos, podemos penetrar no seu pensamento, Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar dessa contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama, Foi ele quem te deu a vida, A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto, Deus está em todo lado, Sobretudo quando manda matar, uma só criança das que morreram feitas tições em sodoma bastaria para o condenar sem remissão, mas a justiça, para deus, é uma palavra vã (...) (p. 135).
Então caim disse, Com estas dimensões e a carga que irá levar dentro, a arca [de Noé] não poderá flutuar, quando o vale começar a ser inundado não haverá impulso de água capaz de a levantar do chão, o resultado será afogarem-se todos os que lá estiverem e a esperada salvação transformar-se-á em ratoeira, Os meus cálculos não dizem isso, emendou o senhor, Os teus cálculos estão errados, um barco deve ser construído junto à água, não num vale rodeado de montanhas, a uma distância enorme do mar, quando está terminado empurra-se para a água e é o próprio mar, ou o rio, se for esse o caso, que se encarregam de o levantar, talvez não saibas que os barcos flutuam porque todo o corpo submergido num fluido experimenta um impulso vertical e para cima igual ao peso do volume do fluido desalojado (...) (p. 152).
Referência:
Saramago, José. 2009. Caim. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 172 páginas.

Crédito da fotografia:
Euler Paixão. José Saramago no lançamento mundial do romance A viagem do Elefante no SESC Pinheiros. São Paulo SP, 27/11/08.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Breves resenhas: Antologia 2, de Isaac Asimov

A primeira vez em que me deparei com o nome Isaac Asimov foi nos idos de 1990, quando estreou no Brasil a finada revista Isaac Asimov Magazine. Era um pulp fiction publicado pela Editora Record que trazia histórias de ficção-científica escritas pelo "bom Doutor" e por outros autores internacionais (depois de alguns números, também de autores nacionais). Como à época crianças de 10 anos não tinham absolutamente nenhuma renda (nada de mesada lá em casa!), menti para os meus pais dizendo que precisava desesperadamente comprar aquela revista "de ciências" para a escola. Vendendo gibis para alguns colegas, consegui comprar os números 2 e 3 da revista. Os outros 22 (ela foi até a edição 25), só obtive quase 20 anos depois, em sebos.

Sempre fui um grande admirador de Asimov. Ele foi doutor em Bioquímica, divulgador da ciência e escritor de ficção-científica premiado que se vangloriava por ter um apetite infindável por conhecimento, o que se refletiu em sua vastíssima bibliografia, com mais de 400 títulos lançados em vida. Uma vez, quando perguntado o que faria se um médico o diagnosticasse com uma doença que o deixaria apenas pouco tempo de vida, ele respondeu "Datilografaria mais rápido!".

Seus romances não são alta literatura - ele mesmo se dizia um "escritor de idéias", pouco se importando com o que a maioria chamaria de qualidade literária. Seus ensaios científicos às vezes parecem simples, quando não simplórios. No entanto, ler a obra de Asimov é constantemente renovar a esperança no poder da ciência e do desenvolvimento humano.

Nesse Antologia 2, uma coletânea de 16 artigos escritos entre 1974 e 1989, há uma pequena amostra do amor de Asimov pelo conhecimento científico. A coletânea traz alguns textos um pouco datados, na temática e no estilo (especialmente se considerarmos a facilidade com que conseguimos informações técnicas na internet), mas outros, mais opinativos, são profundamente humanos e até mesmo emocionantes. Além disso, é difícil ficar impassível perante um sujeito que idolatra seu trabalho a ponto de dizer coisas como "Chegará o dia em que será escrito o últimos deles [seus ensaios], e não faço idéia de qual será o seu número. Quando esse dia chegar e eu me despedir da vida, suponho que poucas coisas hei de lamentar tanto quanto a impossibilidade de escrever estes ensaios eternamente" (p. 217).

Alguns trechos:
A existência da evolução é um fato quase tão patente quanto pode ser qualquer fenômeno não trivial. Em muitos aspectos, os detalhes exatos do mecanismo pelo qual a evolução se processo só foram explicados do ponto de vista teórico. O mecanismo, contudo, não é o aspecto fundamental. Da mesma forma, muito poucas pessoas compreendem realmente o mecanismo que move um automóvel, mas isso não leva ninguém a argumentar que o próprio automóvel não existe. (p. 7)
Não creio que os fundamentalistas sintam que qualquer coisa que eu escreva possa abalar sua fé na verdade literal do mito bíblico da criação. Eles estão certos de que são firmes como o aço, inatingíveis e imbatíveis em sua convicção, leais às suas crenças, inabaláveis pelas tempestades.
Mas o que os leva a imaginar que eu seja diferente? Alguns chegam a me enviar pequenos folhetos, panfletos e homilias, seguros de que algumas frases primárias podem me fazer abandonar três séculos de meticulosas descobertas científicas racionais, sem mais nem menos. Será que eles imaginam deter o monopólio da firmeza e da convicção? (p. 14)
Com grande freqüência os líderes espirituais cerraram fileiras no sentido de apoiar o escravismo, direta ou indiretamente. Não eram poucos os que justificavam o seqüestro forçado dos negros africanos para a escravidão americana, dizendo que estes, dessa forma, eram convertidos ao cristianismo e que a salvação de suas almas compensava amplamente a escravidão de seus corpos.
E quem é o maior beneficiário de uma religião que se propõe a suprir as necessidades espirituais de escravos e servos, assegurando a estes que sua condição terrena representa a vontade de Deus e prometendo-lhes uma vida de eterna bem-aventurança após a morte, contanto que não cometam o pecado de se rebelar contra essa vontade? Será o escravo, cuja vida poderá tornar-se mais suportável pela contemplação dos Céus? Ou será o senhor de escravos, que poderá ficar menos preocupado em mitigar o pesado fardo dos oprimidos e despreocupado quanto a uma possível revolta. (p. 23-24).
A grande massa da humanidade se terá tornado mais ética, virtuosa, decente e bondosa graças à existência da religião, ou será o estado em que se encontra a humanidade mais um testemunho do fracasso de milhões de anos de mero palavreado sobre a bondade e a virtude? Existirá indicação de que um grupo, adepto de uma religião qualquer, seja mais moral, mais virtuoso ou mais decente que outros grupos, adeptos de outras religiões o de nenhuma delas, no presente ou no passado? Nunca ouvi falar de alguma indicação nesse sentido. A ciência teria desaparecido há muito tempo se não pudesse apresentar conquistas melhores que a religião. O rei está nu, mas o temor supersticioso parece impedir que o fato seja denunciado. (p. 38)
A ciência em si, em sentido abstrato, é um instrumento autocorretivo e direcionado para a verdade. Pode haver enganos e concepções equivocadas, em razão de dados incompletos ou errôneos; no entanto, o movimento vai sempre do menos verdadeiro para o mais verdadeiro. (…) Os cientistas, todavia, não são a ciência. Por mais gloriosa, nobre e sobrenaturalmente incorruptível que ela seja, infelizmente os cientistas são humanos. (p. 67)
O que dizer, porém, de uma variação "inteligencial" totalmente diversa de tudo que se possa observar em qualquer ser humano? Seríamos capazes de apenas reconhecê-la como inteligência, por mais que a estudássemos? (p. 140)
O problema talvez se resumo, parcialmente, a uma questão semântica. Insistimos em definir o "raciocínio" de tal maneira que chegamos a conclusão automática de que somente os seres humanos raciocinam. (…) Suponhamos que se defina o "raciocínio" como a modalidade de ação capaz de levar determinada espécie a tomar as medidas específicas que melhor garantam sua própria sobrevivência. Por essa definição, todas as espécies raciocinam a partir de um mesmo feitio. O raciocínio humano se tornaria tão-somente uma variante, e não necessariamente melhor que as outras.
Se considerarmos que a espécie humana, com toda a sua capacidade de antever e de ter a exata noção do que está fazendo e do que pode acontecer, conta, não obstante, com uma enorme possibilidade de se autodestruir em um holocausto nuclear - a única conclusão lógica a que podemos chegar, na minha opinião, é que o Homo sapiens raciocina de maneira mais rudimentar e que é menos inteligente que qualquer espécie existente, ou que tenha existido, sobre a Terra. (p. 141)
Acredito que o Universo, em sua essência, seja dotado de propriedades fartais de natureza extremamente complexa e que a atividade científica compartilhe das mesmas propriedades. Logo, qualquer porção do Universo que permaneça incógnita e qualquer parte da investigação científica que permaneça sem solução, por menores que sejam em comparação ao já conhecido e solucionado, trazem em si toda a complexidade original. Jamais chegaremos a um fim. Por mais que avancemos, o caminho à frente será tão longo quanto o foi no início. Este é o segredo do Universo. (p. 214)
As idéias são ninharias. O que conta é o que a gente faz com elas. (p. 214)

Referência:
Asimov, I. (1992) [1989] Antologia 2 (1974-1989): os melhores ensaios científicos de Asimov escolhidos pelo autor. 217 páginas. Editora Nova Fronteira (tradução Júlio Fischer).

sábado, 7 de janeiro de 2012

Breves resenhas: Nêmesis, de Philip Roth

Philip Roth (2011) [2010] Nêmesis. 

Um dos favoritos do autor desse blog, Philip Roth, em seu 31º livro, mais uma vez acerta. A história se passa nos anos 1940, em meio a um surto de poliomielite e às terríveis notícias vindas do front aliado durante a Segunda Guerra Mundial.
O personagem central é Eugene "Bucky" Cantor, jovem de 23 anos que não pode se alistar no exército por conta de sua forte miopia, e que ganha a vida como fiscal do pátio em uma escola em Newark, maior cidade do estado norte-americano de Nova Jersey.
Uma obra curta, dura, singular, sem malabarismos formais ou experimentalismos estéreis, como tem sido toda a produção de Roth nas últimas décadas. Se ele não for logo laureado com o prêmio Nobel de literatura (está sempre no topo das listas de apostas, ano após ano), pior para o Nobel...
194 páginas.
Editora Companhia das Letras (tradução Jorio Dauster)

Alguns trechos:
Mas o que talvez não tivesse ocorrido à família Michaels não passou despercebido ao Sr. Cantor. Não que ele próprio houvesse ousado questionar Deus por levar seu avô quando o velho chegou a uma idade em que as pessoas costumam mesmo morrer. Mas por matar Alan de pólio aos doze anos? Pela existência da poliomielite? Como poderia haver perdão - e ainda mais aleluias - diante de uma crueldade tão insana? Ao sr. Cantor pareceria uma afronta menor caso aquelas pessoas unidas pelo luto se declarassem celebrantes do Astro Rei, filhos de uma imutável divindade solar e, no estilo fervoroso das antigas civilizações pagãs de nosso hemisfério, se abandonassem a uma dança ritual em torno da sepultura do menino - melhor isso, seria melhor sacrificar e aplacar os raios não refratados do Grande Pai Sol do que se submeter a um ser supremo capaz de perpetrar os crimes mais atrozes ao Seu bel-prazer.Sim, muito melhor louver o insubstituível gerador que vem sustentando nossa existência desde o começo - muito melhor honrar com nossas preces o encontro diário com aquele olho ubíquo no céu e seu poder imanente de incinerar a Terra - do que engolir a mentira oficial de que Deus é bom e se intimidar diante de um assassino de crianças a sangue-frio. Melhor em termos de nossa dignididade pessoal, de nosso senso de humanidade, do valor que damos a nós próprios, sem falar na dúvida cotidiana sobre que merda é essa que estamos fazendo por aqui. (p. 58)
Será que ele queria dizer que era um enigma teológico? Seria essa sua versão corriqueira da doutrina gnóstica, incluindo um demiurgo malevolente? O divino contrário à nossa presença aqui na Terra? As provas que ele podia extrair de sua experiência, cumpria reconhecer, não eram insignificantes. Só um espírito maligno poderia ter inventado a poliomielite. Só um espírito maligno poderia inventar Horace. Só um espírito maligno poderia inventar a Segunda Guerra Mundial. Somando tudo isso, o espírito maligno é o vencedor, ele é onipotente. A concepção que Bucky fazia de Deus, segundo eu imaginava, era de um ser onipotente cuja natureza e propósito deviam ser deduzidos não a partir de um duvidoso testemunho bíblico, e sim das irrefutáveis provas históricas colhidas durante uma existência passada nesse planeta em meados do século. A concepção que ele fazia de Deus era de um ser onipotnte que representava a união não de três pessoas em uma Divindade, como preconizava o cristianismo, mas de apenas duas: um filho da puta maluco e um gênio do mal. (p. 184)
Não há ninguém menos passível de ser salvo do que um sujeito bom destroçado. (p. 190)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Breves resenhas: Carl Sagan, a life


Keay Davidson (1999) Carl Sagan: a life.

Biografia do cientista e grande divulgador da ciência Carl Sagan. Revela algumas facetas muito pouco conhecidas de Sagan - os problemas nos seus dois primeiros casamentos (com Lynn Margulis e Linda Salzman), as dificuldades em ser aceito na comunidade cientiífica dita "séria" (que via nele apenas a sua persona midiática e milionária), a influência opressora da mãe Rachel, os deslumbramentos oriundos da fama e celebridade - e traz análises pormenorizadas das suas principais realizações científicas e da sua visão sobre a necessidade da popularização do conhecimento científico. Obrigatório para admiradores e detratores.
560 páginas.
Editora Wiley.

O livro pode ser adquirido (em inglês) aqui (novo) ou aqui (usado).

Alguns trechos (em tradução livre):

A busca moderna por inteligência extraterrestre (SETI) [do inglês Search for Extraterrestrial Inteligence] está baseada na premissa de que a inteligência é um atributo biológico convergente - isto é, um atributo gerado vezes seguidas em muitos mundos. Se não for, então não há ninguém inteligente lá fora para se "conversar"! De fato, cientistas anti-SETI acusam defensores do SETI (como Sagan) de (...) aceitar a aleatoriedade e a repetibilidade infrequente de todos os tipos de atributos biológicos, menos um: inteligência. Como se a "grande cadeia do ser" medieval ainda fosse válida, entusiastas do SETI tratam a inteligência como o objetivo final de toda evolução, como o ápice em direção ao qual a vida converge em todos os mundos.
No entanto, na Terra, apenas uma das bilhões de espécies estimadas, Homo sapiens, desenvolveu algo como a inteligência humana. (Chimpanzés brincando com fichas coloridas e contando até nove não valem). E por que (os críticos perguntam) deveria o universo ser diferente? O cosmos pode estar fervilhando com vida e ainda assim ninguém pode se importar ou ser capaz de se "comunicar" conosco, não mais do que nós podemos, ou desejamos, nos "comunicar" com tênias, oricteropos [uma espécie de mamífero africano] ou besouros rola-bosta. (p. 30)
Com Marx, os bolcheviques concordaram que a religião era o "ópio das massas"; ela impedia as pessoas de reconhecer seus verdadeiros opressores, os capitalistas. Assim, cientistas marxistas tinham a responsabilidade de procurar explicações não-supersticiosas para os fenômenos biológicos. Historiadores contestam exatamente quão decisivo foi o Marxismo na disseminação da moderna ciência da origem da vida. No entanto, é surpreendente que, durante a primeira, esperançosa, década do socialismo bolchevique, três propostas históricas sobre a origem da vida tenham vindo de marxistas - Oparin na Rússia, J.B.S. Haldane na Inglaterra e H.J. Muller nos Estados Unidos. (p. 59)
A ciência é como um diagrama de gestalt: onde um cientista vê coelhos, outro vê moças com chapéu. (p. 105) 
Sagan respondeu: "Congressista Roush, eu já tenho dificuldade suficiente tentando determinar se existe vida inteligente na Terra para ter certeza se existe vida em qualquer outro lugar". (p. 229)
No começo dos anos 1970, cientistas universalmente reconheceram Vênus pelo que ele é: um inferno Dantesco. Não há geleiras, nem lagos, nem topos de montanha habitáveis onde estranhas criaturas brincar no ar fresco alpino. O oceano venusiano proposto por Menzel e Whipple é uma fantasia esquecida, um conto cauteloso da infância da era espacial que deveria ser relembrado hoje em dia, quando especulações sobre "mares desaparecidos" em Marte e formas de vida bizarras nas profundidades escuras do oceano de Europa [lua de Júpiter] correm soltas. (p. 245)
Futuros historiadores provavelmente vão considerar a exobiologia como uma das mais importantes ciências do século XX; ainda que estritamente em termos Popperianos ela não seja falseável e, portanto, não científica. Algumas críticos chegam a afirmar que ela é indistinguivel da religião. Cristãos esperam pela Segunda Vinda; cientistas do SETI esperam pela primeira mensagem das estrelas. Eles são irmãos de sangue. (p. 260)
Meios mais sutis são necessários para combater a pseudo-ciência. Não se deve falar para as pessoas como se elas fossem crianças balbuciando sobre o Papai Noel; ao invés disso, elas devem ser educadas, pacientemente e respeitosamente. (p. 274)
A energia de Sagan era especialmente marcante, dado seu total desdém por exercícios físicos regulares. (Esse desdém é apontado por seu amigo próximo, Lester Grinspoon, que lembra de quando Sagan comprou uma esteira e tentou usá-la uma vez mas, perdido em pensamentos, caiu dela. Ele nunca a utilizou novamente). A energia de Sagan vinha do puro entusiasmo intelectual. (p. 367)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Top 10 livros do (meu) ano

Listados em ordem alfabética pelo nome do autor, seguem os 10 livros que mais me marcaram no ano de 2011.


Charles Bukowski (1982) Misto-quente.
Sobre a infância, adolescência e início da vida adulta de Henry Chinaski, espécie de alter ego de Bukowski. Livro sincero, duro e aflitivo, passado no período da Grande Depressão norte-americana do século passado. Um Bukowski pouco condescendente consigo mesmo, com seus pais, com seu país, bem distante da imagem auto-importa do velho safado. "Mas vá se aproximar e ouvir seus pensamentos escorrendo boa afora, você vai sentir vontade de cavar um buraco ao sopé de uma colina e se entrincheirar com uma metralhadora" (p. 270).

Christopher Hitchens (2010) Hitch-22.
Auto-biografia de um dos grandes jornalistas e polemistas dos últimos 30 anos. Hitchens não poupa ninguém em um tour-de-force sobre política, economia, literatura e amizades. Passagens saborosas sobre seus relacionamentos com Martin Amis, Ian McEwan, Salman Rushdie e opiniões fortes sobre a guerra, as religiões e a condição humana fazem desse livro essencial. O "controvertido" Diogo Mainardi não passa de uma pulguinha perto de Hitchens, que morreu no último dia 15 de dezembro. 

David Mazzucchelli (2009) Asterios Polyp.
Extraordinária graphic novel, do mesmo ilustrador de Batman Ano Um e A queda de Murdock, sobre um arquiteto de 50 anos que tenta refazer a vida após um acidente em seu apartamento. Diagramação genial, uso das cores e da tipografia sem paralelos em qualquer outra história em quadrinhos e um texto triste e, ao mesmo tempo, redentor. Tem talvez o melhor final que já apareceu em uma HQ (ou mesmo de qualquer obra de ficção, seja filme ou livro).

Frank Ryan (2009) Virolution.
A seleção natural, cerne da teoria sintética da evolução, é o processo suficiente para explicar a evolução dos organismos? Ryan discute a necessidade de uma extensão da síntese moderna da teoria da evolução, apontando para a importância de conceitos como simbiogênese e herança epigenética para a geração da diversidade biológica. Além disso, aqui se discute o papel dos vírus como responsáveis diretos pelo aumento da variação e porque a maioria dos questionamentos acerca esse grupo (são seres vivos? não são?) está desfocada.

Ian McEwan (2010) Solar.
Conta as desventuras de um físico ganhador do prêmio Nobel, Michael Beard, transformado em um burocrata trabalhando em um projeto governamental voltado a estudos sobre aquecimento global. McEwan é tão bom escritor que não deveria ser lido por qualquer um que sonhe em viver de literatura (a comparação sempre seria injusta, para dizer o mínimo). Descubra aqui porque você não deve tentar urinar do lado de fora da sua cabana quando estiver visitando o Ártico...

Mario Livio (2010) [2009] Deus é matemático? 
A matemática pode ser considerada uma descoberta ou uma criação humana? O astrofísico Mario Lívio sugere que ambas as respostas estão certas: a matemática surge como linguagem para descrever a natureza mas também é parte indissociável dela. Observação: o livro não fala de religião; esse "Deus" do título é o mesmo de Spinoza e de Einstein…

Philip K. Dick (2006) [1962] O homem do castelo alto.
Ficção especulativa distópica que se passa em um mundo no qual os Eixo ganhou a Segunda Guerra Mundial. O mundo está dividido em zonas de influência nazista e nipônica. O I-Ching é o oráculo que dita os caminhos. Um autor imagina como seria a realidade caso os Aliados tivessem vencido. P.K. Dick menos paranóico mas não menos genial e obrigatório.

Ray Bradbury (2007) [1953] Fahrenheit 451.
Livros são queimados por "bombeiros" em um mundo futuro dominado pela televisão e pela ausência de opiniões. Bradbury, nos anos 1950, prevê com absoluta precisão a influência das mídias de massa na sociedade humana contemporânea. "Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver, dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum" (p. 79).

Reinaldo Moraes (2009) Pornopopéia.
Conta a história de um ex-cineasta marginal (sua produtora se chama "Khmer Videofilmes - uma produtora, muitas cabeças", referência óbvia ao regime comunista ditatorial e sanguinário do Camboja na década de 1970), que ganha a vida fazendo comerciais vagabundos, em meio a farras de drogas e sexo no dark side da cidade de São Paulo. Para quem acha que não existe literatura inteligente e com voz própria no Brasil, "Pornopopéia" é uma grande pedida.

Steven Johnson (2010) De onde vêm as boas idéias.
Livro rápido e interessantíssimo sobre a importância das interrelações e das redes de contatos para o surgimento da inovação e de grandes mudanças conceituais. Johnson fala de como a emergência é dependente do contexto - e.g., a possibilidade do aparecimento de novas idéias em uma cidade metropolitana é maior do que em um vilarejo do interior especialmente por conta da maior probabilidade do encontro entre pessoas com os mesmos interesses e/ou referenciais.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Apontamentos para o Natal



Somente alguns trechos de alguns livros...
Uma posição radicalmente ateísta pode até significar que sua vida é uma corrida rumo ao esquecimento - mas ao menos você pode fazer isso com estilo. Como você se comporta hoje, o que você faz em cada momento, como você explora os talentos e as oportunidades à sua disposição são coisas muito mais importantes para um ateu genuíno do que para os devotos mais religiosos. Longe de perder o sentido, o que você faz nesta vida subitamente torna-se incrivelmente importante, já que você só tem essa única possibilidade de fazer a coisa certa, de mudar alguma coisa, de contribuir de alguma forma para aqueles que você ama ou que seguirão seus passos.
Bradley Trevor Greive, no prefácio de O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams (2004)

Você pode sair por aí beijando todos os muros do mundo, e todas as cruzes, e fêmures, e tíbias de todos os santos mártires abençoados que já foram trucidados pelos infiéis e, de volta ao escritório, ser um filho da puta para os seus funcionários e em casa um perfeito pentelho para a família.
Philip Roth em O Avesso da Vida (1986)

(…) nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que nossas minorias sejam transtornadas e agitadas. Pergunte a si mesmo: o que queremos nesse país, acima de tudo? As pessoas querem ser felizes, não é certo? Não foi o que você ouviu durante toda a vida? Eu quero ser feliz, é o que diz todo mundo. Bem, elas não são? Não cuidamos para que sempre estejam em movimento, sempre se divertindo? É para isso que vivemos, não acha? Para o prazer, a excitação? E você tem que admitir que nossa cultura fornece as duas coisas em profusão…
Ray Bradbury em Fahrenheit 451 (1953)

É um fato importante, e conhecido por todos, que as coisas nem sempre são o que parecem ser. Por exemplo, no planeta Terra os homens sempre se consideraram mais inteligentes que os golfinhos porque haviam criado tanta coisa - a roda, Nova York, as guerras, etc - enquanto os golfinhos só sabiam nadar e se divertir. Porém, os golfinhos, por sua vez, sempre se acharam muito mais inteligentes que os homens - exatamente pelos mesmos motivos.
Douglas Adams em O Guia do Mochileiro das Galáxias (2004)

Nada estava em sintonia, nunca. As pessoas vão se agarrando às cegas a tudo que existe: comunismo, comida natural, zen, surf, balé, hipnotismo, encontros grupais, orgias, ciclismo, ervas, catolicismo, halterofilismo, viagens, retiros, vegetarianismo, Índia, pintura, literatura, escultura, música, carros, mochila, ioga, cópula, jogo, bebida, andar por aí, iogurte congelado, Beethoven, Bach, Buda, Cristo, heroína, suco de cenoura, suicídio, roupas feitas à mão, vôos a jato, Nova York, e aí tudo se evapora, se rompe em pedaços. As pessoas têm de achar o que fazer enquanto esperam a morte. Acho legal ter uma escolha.
Charles Bukowski em Mulheres (1978)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

As três flechas do jovem samurai

Abertura e conectividade podem, no final das contas, ser mais valiosas para a inovação que mecanismos puramente competitivos
Steven Johnson em De onde vêm as boas idéias (2010)
A vida é uma extensão do ser para a geração seguinte, para a espécie seguinte. É a engenhosidade de tirar o máximo proveito da contingência
Lynn Margulis & Dorion Sagan em What is life? (1992)

Na primeira seqüência de Ran, obra-prima do diretor japonês Akira Kurosawa livremente inspirada no Rei Lear de Shakespeare, o lorde samurai Hidetora, cansado de guerras e conquistas, em reunião com seus principais comandados, decide delegar a liderança ao seu primogênito, Taro. Sob o olhar atônito dos assessores e do bobo da corte, Hidetora faz a partilha do império, incumbindo a Jiro e Saburo, seus dois outros filhos, a tarefa de escudar o irmão mais velho. Para demonstrar a necessidade da colaboração, o velho lorde dá a cada um deles uma flecha de madeira e pede que tentem quebrá-la, o que fazem de pronto. Hidetora, então, agrupa três flechas em um único feixe e repete o pedido. O conjunto resiste às investidas dos irmãos, corroborando a tese do pai, até que o mais jovem, Saburo, consegue quebrar as flechas apoiando-as no joelho. O comportamento cooperativo funciona mas não é inquebrantável: a competição sempre surgirá, de uma ou outra forma.

Assim como no filme de Kurosawa, também a evolução das espécies é marcada por esses dois extremos. No ambiente natural, os organismos estão à procura de alimento, água, território, parceiros reprodutivos. Diferentemente do preconizado pelo senso comum e pela biologia neodarwinista ortodoxa, que vê os organismos na natureza engalfinhados em sanguinolentas batalhas pela sobrevivência, nas quais apenas os fortes obtêm sucesso, a competição acontece em diferentes níveis e é por vezes sutil e não “declarada”. Desde os naturalistas britânicos Charles Darwin e Alfred Wallace, no século XIX, sabe-se que as populações naturais têm altas taxas de variação e que, em resposta a pressões seletivas, alguns grupos podem tornar-se mais representativos em razão de portarem características que os diferenciem e que sejam vantajosas à medida que garantam a manutenção da sua prole. Tais grupos são selecionados positivamente, o que significa a continuidade de uma parte considerável de seu patrimônio genético nas gerações subseqüentes. É uma falácia biológica afirmar que são os fortes os melhores competidores, uma vez que força não garante sobrevivência.

Para a sobrevivência diferencial, não se pode desconsiderar o valor da cooperação para a evolução. Associações entre organismos são comuns e amplamente difundidas na biologia. A cooperação aparece em vertebrados, artrópodes, cnidários e mesmo em organismos unicelulares, como as colônias do protista Choanoflagellata, espécie evolutivamente aparentada aos animais. Formigas, abelhas e cupins têm estrutura social com divisão de castas e de trabalho no interior das suas colônias – em geral, os soldados cuidam da defesa do ninho e as operárias da limpeza dos túneis e da obtenção de alimento, ficando a reprodução destinada somente à rainha e aos machos reprodutores (utiliza-se o termo operária apenas no caso dos himenópteros, pois todas são fêmeas. Para cupins, usa-se operários, uma vez que a casta é composta tanto por fêmeas quanto por machos). Entre os cnidários, o grupo formado pelas águas-vivas, pólipos e corais, a caravela portuguesa é um exemplo excepcional de associação. O organismo observado sobre as águas como um conjunto transparente de bexigas gelatinosas é de fato formado por milhares de indivíduos diferentes, muito modificados, com funções específicas relacionadas à captura de alimento, movimentação da colônia, defesa e reprodução.

O exemplo dos Choanoflagellata é mais surpreendente, pois nos dá pistas de como se deu a formação de organismos multicelulares e como foram os primeiros passos da evolução anima. Essas colônias são as mais próximas, em termos filogenéticos dos metazoários, e apresentam divisão de trabalho entre os seus constituintes. As algas verdes do gênero Volvox também têm estrutura colonial. As células individuais de uma colônia de Volvox ficam encrustadas na superfície gelatinosa de uma esfera oca que pode atingir de 0.5 a 1 mm de diâmetro. Cada uma delas tem um núcleo, um par de flagelos e um único cloroplasto grande. As células adjacentes conectam-se entre si através de pontes citoplasmáticas. Nessa esfera oca coberta de indivíduos dispostos lado a lado, apenas alguns são responsáveis pela reprodução. Associações biológicas são muito antigas, remontando ao aparecimento dos eucariotos – o grupo de organismos com núcleo celular definido e delimitado por uma membrana, no interior do qual se encontra o material genético –, há quase dois bilhões de anos.

É certo que não apenas a opinião pública tende a descartar a cooperação biológica quando se trata de descrever a história da vida. Muitos entre os evolucionistas modernos defendem que a evolução se dá através de um selecionismo ferrenho. Em alguns dos clássicos de Richard Dawkins, como “O gene egoísta” (1976), “O relojoeiro cego” (1986) e “Escalando o monte improvável” (1996), esse raciocínio darwiniano extremado é recorrente. Para os ultra-darwinistas, o processo evolutivo dá-se através da seleção natural de variedades pré-existentes, surgidas a partir de mutações genéticas aleatórias e recombinações cromossômicas (crossing-over, trocas entre pedaços de DNA em cromossomos homólogos durante a formação das células reprodutivas, que acabam por aumentar a variedade do produto final, os gametas). Em linhas gerais, essas modificações seriam selecionadas caso promovessem algum tipo de vantagem adaptativa ao portador, garantindo a manutenção dos seus genes na descendência. Entretanto, o que se ignora nesse caso é que a sinergia (do grego synergos, trabalhar junto) constitui um fenômeno essencial para a evolução. A vida no planeta não teria o mesmo perfil, e talvez nem mesmo existisse nos moldes conhecidos, se a cooperação entre organismos não fosse mais do que uma simples nota ao pé da página da evolução biológica.

Partindo do pressuposto de que a sinergia está disseminada no ambiente natural, o biólogo russo Konstantin Mereschkovsky (1855-1921) criou o termo simbiogênese, na tentativa de explicar a origem dos cloroplastos a partir de algas verde-azuladas (cianobactérias). Em termos gerais, a simbiogênese refere-se à formação de novas formas de vida, novos órgãos ou novas organelas celulares através da associação permanente com formas de vida preestabelecidas e, conseqüentemente, mais antigas. Não se sabe exatamente como acontece o compartilhamento ou a influência entre o material genético dos componentes dessa associação, mas a simbiogênese é um fato: corais têm simbiontes dinoflagelados em seus tecidos, lulas associam-se a bactérias luminosas, fungos unem-se a algas verdes ou cianobactérias, originando os líquens, entre outros milhares de exemplos.

Em 1966, a bióloga Lynn Margulis (1938-2011), que viria ao Brasil em dezembro para a São Paulo Advanced School of Astrobiology (mas que, infelizmente, faleceu no dia 22 de novembro, aos 73 anos), retomou as idéias de Mereschkovsky para a sua proposição sobre como as bactérias fundiram-se diversas vezes durante a evolução, originando espécies diferentes através de simbiogênese. Ela escreveu um artigo sobre a origem das células eucarióticas – trabalho que foi recusado inúmeras vezes por revistas especializadas, até finalmente ser publicado. Para Margulis, muitas das características que organismos complexos apresentam derivam da junção de dois ou mais microorganismos diferentes que passaram a viver uma vida comum através da cooperação. De uma forma bem simplificada, podemos dizer que as organelas celulares que hoje conhecemos como mitocôndrias e cloroplastos foram, um dia, organismos bacterianos livres. Essas bactérias, precursoras da respiração celular e da fotossíntese, devem ter sido fagocitadas por outras, mas não digeridas. Provavelmente as enzimas digestórias não funcionaram a contento, ou nem mesmo começaram a agir, e o “alimento” foi incorporado, sem maiores danos, ao ambiente interno das bactérias ingestoras.

Uma série de evidências ajuda a corroborar a teoria de Margulis. Tanto mitocôndrias quanto cloroplastos têm material genético próprio, fora do núcleo da célula, suas paredes e membranas internas assemelham-se às bicamadas fosfolipídicas da grande maioria das células conhecidas e sua forma de duplicação dá-se através do seu próprio material genético. Não obstante, há extraordinária semelhança entre o DNA dos cloroplastos e mitocôndrias com o de algumas bactérias fotossintetizantes e algumas que utilizam oxigênio na obtenção de energia. Apesar de não se ter esclarecido por definitivo como o processo aconteceu, eventos de simbiose são explicações extraordinariamente robustas para a origem de mitocôndrias e cloroplastos. Em um pólo oposto ao dos selecionistas radicais (o que não é exatamente o caso de Dawkins, vide as posições apresentadas na coletânea “O capelão do diabo”, de 2003, e em trabalhos posteriores), a contribuição de Margulis para o debate evolutivo enfatiza mais a sinergia entre as espécies do que a competição darwinista.

A hipótese da sinergia na evolução sugere que o individualismo exacerbado é uma negação da essência do ser vivo – as mitocôndrias e os cloroplastos das células eucarióticas seriam uma evidência clara para suportar tal afirmação. Tanto quanto a luta pela sobrevivência, também a cooperação é de fundamental importância para a vida desde os primórdios da evolução biológica, há aproximadamente quatro bilhões de anos. Infelizmente, aos olharmos para a janela, abrirmos os jornais ou assistirmos à qualquer noticiário da televisão, percebemos que o comportamento da espécie humana parece ignorar esse fato, gerando desequilíbrios não-naturais que afetam praticamente toda biota, do fluxo energético no planeta às nossas próprias relações sociais. 
O caminho para se compreender a evolução das espécies passa pela aceitação tanto do selecionismo de Dawkins quanto da sinergia de Margulis (e do papel do acaso, como discutido em outros momentos nesse blog, como aqui e aqui). Essa solução é coerente e lógica, como a percepção do jovem Saburo sobre o futuro do reino de seu pai. O filho do lorde samurai não estava de todo errado ao questionar o comportamento cooperativo, uma vez que ele também se insere em um contexto de competição. Algumas espécies têm condicionada a sua sobrevivência à vida cooperativa, o que não as exclui das relações competitivas no ambiente natural. Em grande parte das vezes, associações são selecionadas se conferirem um diferencial aos indivíduos, sob a forma de maiores taxas de reprodução e, conseqüentemente, maiores chances de permanência daquelas características herdáveis no correr da evolução do grupo.

Desde civilizações pré-históricas, as sociedades valorizam ao extremo a concorrência e a competição, por vezes desleal, em detrimento do comportamento cooperativo. É óbvio que, quando em conjunto, geralmente os grupos humanos agem em prol de interesses próprios, independente dos efeitos de suas atitudes no coletivo. Quanto maior o poder e a estatura social, mais se acompanha a regra tola da “lei do mais forte”, que tem pouco a ver com o processo evolutivo, por mais que tentem utilizá-lo como justificativa ou pretexto para a exploração, o racismo e o segregacionismo. Toma-se a cooperação apenas como escada imediata para a cobrança de favores futuros. 

O comportamento humano em relação ao ecossistema do qual o homem também faz parte é ainda mais individualista e estúpido, apoiado na ideia infundada de sua superioridade evolutiva. Se fomos todos criados à imagem e semelhança de um deus benevolente para conosco, e se todos os demais organismos viventes não têm esse mesmo privilégio, é correto pensar que eles foram, então, criados para nosso deleite e usufruto, uma vez que nada está mais próximo do divino do que nossa própria espécie? Por superficial que seja a análise, fica claro que essa idéia esconde um viés de ignorância desmedida. A vida na Terra é holárquica, uma grande rede de seres vivos conectados e coexistindo sem forma absoluta de controle de uns sobre os outros. Não há hierarquia alguma que alce a espécie humana ao topo. Em tempos duros como os atuais, descartar o individualismo cego e desestimular a competição que visa apenas à vitória unilateral parecem as únicas maneiras de se restabelecer o equilíbrio natural há muito perdido e de se chegar à compreensão de que somos apenas mais um dos componentes do mundo orgânico. 

Referências sugeridas: 
Dawkins, R. 1976. The selfish gene.
Dawkins, R. 1986. The blind watchmaker.
Gould, S.J. 2002. The structure of evolutionary theory.
Margulis, L. & Sagan, D. 1992. What is life?
Margulis, L. & Sagan, D. 2002. Acquiring genomes: a theory of the origin of species.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Gould, ultra-Darwinismo e falsas medidas



O darwinismo, como um conjunto de idéias, é amplo o suficiente e definido de uma forma tão variada que inclui uma abundância de verdades e pecados.
S.J.Gould em “Is a new and general theory of evolution emerging?” (1980, p.119)

Um dos meus heróis intelectuais é o paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002). Ele foi um dos maiores divulgadores do evolucionismo na segunda metade do século XX, árduo defensor de uma visão materialista do mundo biológico, calcada nos trabalhos de Charles Darwin e dos evolucionistas que vieram depois dele (a despeito de sua posição respeitosa frente às religiões do mundo). Gould não se afiliava totalmente à tradição ortodoxa da teoria sintética da evolução, representada por luminares como Ernst Mayr (1904-2005), Theodosius Dobzhansky (1900-1975) e George G. Simpson (1902-1984), pois dava extraordinário peso ao papel do acaso na evolução da vida. Para ele, eventos não previsíveis como extinções em massa teriam importância quase tão grande para a evolução quanto a seleção natural de variedades pré-existentes, tida como o principal processo evolutivo responsável pela geração de diversidade biológica.

O primeiro artigo que li de S.J. Gould intitulava-se “Dinomania”. Originalmente publicado na The New York Review of Books de 12 de agosto de 1993, esse texto foi traduzido para o português pelo jornal Estado de São Paulo no mesmo ano seguinte e publicado no Caderno Especial dos dias 19 e 20 de setembro (ainda tenho os jornais amarelados nos meus arquivos). A prosa gouldiana me impressionou muito. Seu estilo elegante parecia algo a ser tomado como referência para um trabalho futuro. E foi a partir daí que comecei a delinear minha carreira e perceber que eu trabalharia com algum aspecto das ciências naturais. Esse artigo foi republicado na sétima coletânea de ensaios de Gould, “Dinossauro no palheiro”, originalmente lançada em 1995 sob o nome “Dinosaur in a Haystack” e lançada no Brasil há mais de uma década.

Apesar de ser uma influência constantemente presente na visão de mundo de boa parte dos evolucionistas e de ter um dos textos mais saborosos – senão o mais saboroso – entre todos os divulgadores científicos, S.J. Gould cometeu muitas falhas durante a sua carreira, foi intransigente, quase leviano, e um tanto personalista. Chegou a dedicar mais da metade de um dos seus livros (“Full House: the spread of excellence from Plato to Darwin”, de 1996, aqui traduzido em 2001 como “Lance de Dados”), que sintetizaria a história do pensamento evolutivo de Platão à Darwin, à análise de estatísticas de beisebol, um esporte que pouco diz fora do EUA e adjacências (com exceção talvez do Japão, Cuba e Venezuela). Por mais que as idéias de Gould sejam interessantes a esse respeito, é difícil chegar ao fim das suas 250 páginas sem um misto de desconforto e sensação de tempo perdido. O ensaio Chauvinismo humano e progresso evolutivo do livro “Capelão do diabo”, de Richard Dawkins (2003), é um comentário irônico sobre essa obra menor de Gould.


Outro ponto considerado por muitos como falho na carreira de S.J. Gould foi seu feroz ataque ao darwinismo a partir do final dos anos 1970 até quase meados da década de 1980. Juntamente com seu colega paleontólogo Niles Eldredge, Gould propôs a hipótese do equilíbrio pontuado. Em linhas gerais, eles contrapunham à concepção de processo evolutivo contínuo e gradual dos teóricos sintéticos da evolução a idéia de que os eventos de especiação, i.e., aparecimento de novas espécies, ocorreriam em curtos períodos de tempo geológico, seguidos de longos períodos de estase, com pouquíssimas alterações perceptíveis. Gould chegou a proferir que o darwinismo estava morto em um trabalho publicado em 1980 na revista Paleobiology. Essa demonstração de pretensão e arrogância obviamente não foi bem vista pela comunidade acadêmica, o que dificultou a discussão isenta sobre processos alternativos ao gradualismo darwiniano. Atualmente, há correntes que interpretam o equilíbrio pontuado como um gradualismo ocorrendo em curtos intervalos de tempo, seguidos por períodos longos em que as modificações se acumulariam, mas não seriam agraciadas com explosões de diversidade.

Recentemente, em um artigo publicado em junho de 2011 na revista PLoS Biology por Jason Lewis e colaboradores, Gould foi acusado de falsificar dados de medidas de crânios apresentados originalmente pelo físico americano Samuel Morton no século XIX. Em 1978, na revista Science, e posteriormente no seu livro “A falsa medida do homem” (de 1981), Gould teria fraudado de forma deliberada algumas das medidas feitas por Morton para corroborar a sua hipótese de que os resultados deste seriam enviesados por conta de preconceito – para Morton, haveria uma relação direta entre o tamanho do cérebro e a inteligência, com os Caucasianos assumindo uma posição privilegiada nestes quesitos. Por irônico que pareça, a tese de Gould aplica-se ao próprio trabalho em que ele a descreve, revelando como a visão de mundo de um cientista pode influenciar nas observações, experimentos e na apresentação das suas idéias...

O trabalho de Lewis e equipe vem causando controvérsia na comunidade acadêmica e reações exaltadas, como a do blogueiro e professor associado de Antropologia da Universidade de Wisconsin, John Hawks, que taxa Gould de cometer deslealdade consciente (para dizer o mínimo). Esse pode não ser um fato isolado na obra do evolucionista, mas me parece exagero taxar Gould de má-fé em toda sua obra, dadas as suas sérias contribuições ao debate das ciências naturais.

No final dos anos 1980, o discurso de Gould perdeu muito do seu caráter corrosivo, o que, em conjunto com o sucesso de seus livros e a popularização da paleontologia através de filmes como Jurassic Park (que foi o mote do ensaio “Dinomania” supracitado), transformaram-no em um ícone pop – Gould inclusive fez uma aparição no desenho Simpsons, no episódio “Lisa, a cética”, em que a filha mais velha de Homer encontra um esqueleto que lembra um anjo, que é testado pelo paleontólogo (os resultados são inconclusivos!). A massificação do trabalho de Gould não significou o fim das controvérsias e polêmicas: poucos meses depois da sua participação na série animada, ele se viu em meio a uma discussão com autores do quilate de psicólogo evolucionista Daniel Dennet (autor de “A perigosa idéia de Darwin”) e Dawkins, acerca da sua crítica exacerbada ao que ele chamou de fundamentalismo darwinista, representado por aqueles que consideravam que TODA a evolução poderia se resumir em adaptação via seleção natural.

Desde meados do século XX, após a bem sucedida Síntese da Teoria Evolutiva, existe uma tendência generalizada dos biólogos enxergarem na seleção natural o processo responsável por toda a diversidade e disparidade orgânica existente no planeta. Esse conceito, que praticamente qualquer pessoa letrada nas bases das ciências biológicas conecta à figura de Charles Darwin, é de fato central na teoria da evolução mas não dá conta de todas as alternativas necessárias para a reconstrução de cenário evolutivos confiáveis. Gould chama essa “fé” na seleção natural de ‘programa adaptacionista’ – sua talvez mais famosa incursão no tema, em colaboração com o também biólogo evolucionista Richard Lewontin, foi publicada em 1979 com o título The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: a critique of the adaptationist programme e se transformou em um clássico da literatura evolucionista. Nesse artigo, Gould & Lewontin (1979, p. 83) apresentam o tema nos seguintes termos:
Nós gostaríamos de questionar um hábito de pensamento profundamente enraizado entre os estudantes de evolução. Nós os chamamos de programa adaptacionista ou paradigma Panglossiano. Ele se fundamenta na noção popularizada por A.R. Wallace e A. Weismann (...) em fins do século XIX: a quase onipotência da seleção natural em forjar o design orgânico e talhar o melhor entre os mundos possíveis. Esse programa considera a seleção natural tão poderosa e as restrições sobre ela tão pequenas que a produção direta de adaptação através de sua operação se torna a causa primária de praticamente todas as formas orgânicas, funções e comportamentos.
Para Gould & Lewontin, estudos sob a égide do programa adaptacionista dividem os organismos em atributos, que são explicados como estruturas desenhadas pela seleção natural de forma ótima para desempenhar suas funções; caso essa otimização falhe, os organismos são interpretados como melhor resultado possível dada a existência de demandas competidoras. A despeito da admissão de alternativas à seleção natural, a tendência é a de separar os organismos em partes, contando histórias adaptativas particulares para cada uma delas – se um argumento do tipo falhar, tenta-se outro.

Niles Eldredge, em seu livro “Reinventing Darwin”, de 1995, chama os defensores do programa adaptacionista de ultra-Darwinistas. Para ele (Eldredge, 1995, p. 4):
Os ultra-Darwinistas adotaram a posição de que a seleção natural é o processo evolutivo central. Mas, ao fazer isso, eles alteraram significativamente o conceito básico da seleção natural. Em suma, ultra-Darwinistas veem a seleção natural como competição (entre membros da mesma espécie) para o sucesso reprodutivo. Mas isso não é tudo. Ultra-Darwinistas veem toda competição, inclusive competição por alimento e outros recursos econômicos, como fundamentalmente um epifenômeno da competição real: competição por sucesso reprodutivo.

Eldredge, na sequência, cita Richard Dawkins como o ultra-Darwinista por excelência, lembrando que a tese principal do “Gene Egoísta” de Dawkins (1976) é que são os genes, e não os organismos, que estão em uma competição titânica e constante para deixar cópias de si mesmos para as gerações futuras.

Segundo Eldredge, Gould e Lewontin, o ultra-Darwinismo fere o espírito pluralista de Darwin. Eldredge (1995) vê a seleção natural como um filtro: os organismos competem por recursos; como efeito de tal competição, os mais eficientes terão maior chance de sucesso reprodutivo e a sua prole tenderá a herdar a informação genética responsável pelo sucesso dos seus pais. Gould & Lewontin (1979) apresentam uma série de alternativas ao selecionismo estrito dos ultra-darwinistas, a saber:

1) Evolução sem adaptação e sem seleção natural: é a mudança da frequência de alelos através da deriva genética aleatória, que pode levar à diferenciação genética de populações e à fixação de alelos em determinados locus gênicos na completa ausência de qualquer força seletiva.

2) Ausência de adaptação e seleção na estrutura sob análise: a evolução da forma de uma estrutura pode estar correlacionada à seleção em outra estrutura, uma vez que os organismos são todos integrados, não passíveis de decomposição em porções independentes otimizadas. Há inúmeros exemplos da biologia evolutiva do desenvolvimento que se encaixam aqui.

3) Desacoplamento de seleção e adaptação: para Gould & Lewontin (1979), há seleção sem adaptação e adaptação sem seleção. No primeiro caso, citam um exemplo hipotético (p. 90):
Uma mutação que dobre a fecundidade dos indivíduos irá se espalhar rapidamente pela população. Se não houver mudança na eficiência da utilização de recursos, os indivíduos não terão prole maior que antes, mas simplesmente botarão duas vezes mais ovos, o excesso morrendo devido à limitação de recursos. Em que sentido estão os indivíduos ou a população como um todo melhor adaptadas que antes? De fato, se um predador de formas imaturas estiver presente agora que os imaturos são abundantes, o tamanho da população vai diminuir como consequência, apesar da seleção natural sempre favorecer indivíduos com maior fecundidade.
No caso de adaptação sem seleção, eles citam os casos de modificações nos organismos que são puramente fenotípicas, notando que existem diferentes interpretações do que adaptação significa – adaptações fisiológicas, como a resposta do sistema circulatório às grandes altitudes; adaptações culturais, herdadas pelo aprendizado; e adaptação Darwiniana via mecanismo de seleção a partir de variação genética. “A mera existência de uma boa adequação entre organismo e ambiente é insuficiente para inferir a ação da seleção natural” (Gould & Lewontin, 1979, p. 91).

4) Adaptação e seleção mas sem base seletiva para diferenças entre adaptações: é a questão dos múltiplos picos adaptativos. Muitas vezes, espécies de organismos relacionados chegam a diferentes soluções para os mesmos problemas. Assim, é impossível dizer que uma solução é melhor que a outra.

A conclusão de Gould & Lewontin (1979, p. 95) é uma defesa à pluralidade no estudo da evolução:
Sentimos que as recompensas potenciais de abandonar o foco exclusivo no programa adaptacionista são de fato grandes (...) Damos as boas vindas à riqueza que a abordagem pluralista, tão afeita ao espírito de Darwin, pode proporcionar. Sob o programa adaptacionista, os grandes temas históricos da morfologia do desenvolvimento e Bauplan [termo em alemão que significa plano estrutural] foram largamente abandonados; se a seleção pode quebrar qualquer correlação e otimizar as partes separadamente, então a integração de um organismo conta muita pouco. Muito frequentemente, o programa adaptacionista nos dá uma biologia evolutiva de partes e genes, mas não de organismos. Ele assume que todas as transições podem ocorrer passo a passo e subestima a importância de blocos de desenvolvimento integrados e restrições importantes da história e arquitetura. Uma visão pluralista pode colocar os organismos de volta, ainda que com toda a sua recalcitrante ainda que obstinada complexidade, de volta à teoria evolutiva.

Uma vez que o programa adaptacionista não é suficiente para explicar a evolução, como Gould, Lewontin, Eldredge (e muitos outros antes e depois deles) defendem, certamente não tem sentido limitar a definição de vida apenas aquilo que, independentemente do lugar que ocupa no universo, passa por um processo natural de seleção, no sentido Darwiniano do termo.

Gould nos mostra que, para entendermos a história da vida no planeta Terra, precisamos transcender o ultra-Darwinismo (como o próprio Darwin apontava, já no século XIX). Se assim for no nosso quintal, é muito provável que também o seja no restante do cosmo.



Referências sugeridas:
Dawkins, R. 2007 [1976] O gene egoísta. Companhia das Letras, São Paulo.
Eldredge, N. 1995. Reinventing Darwin: the great debate at the High Table of Evolutionary Theory. John Wiley & Sons, New York.
Gould, S.J. 1980. Is a new and general theory of evolution emerging? Paleobiology, 6 (1), 119-130.
Gould, S.J. 1997 [1995]. Dinossauro no palheiro: reflexões sobre história natural. Companhia das Letras, São Paulo.
Gould, S.J. & Lewontin, R.C. 1979. The Spandrels of San Marco and the Panglossian paradigm: a critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of London B, 205, 581–598.
Lewis, J.E., DeGusta, D., Meyer, M.R., Monge, J.M., Mann, A.E. & Holloway, R.L. 2011. The Mismeasure of Science: Stephen Jay Gould versus Samuel George Morton on Skulls and Bias. PLoS Biol, 9(6): e1001071. doi:10.1371/journal.pbio.1001071.