sábado, 12 de dezembro de 2009

De repente, nas profundezas do bosque

Amós Oz é um escritor israelense, nascido em 1939, que sempre está entre os favoritos ao Nobel de Literatura. Selecionei um trecho de um belo livro seu, De repente, nas profundezas do bosque:

“Era um peixe pequeno, um peixinho, com o comprimento de meio dedo, com escamas prateadas e nadadeiras delicadas, branquiadas, espelhadas e trêmulas. Um olho de peixe redondo e arregalado ao máximo mirou os dois por um instante como se sugerisse a Maia e Mati que todos nós, todos os seres vivos sobre este planeta, pessoas e animais, aves, répteis, larvas e peixes, na realidade todos nós estamos bem próximos uns dos outros, apesar de todas as muitas
diferenças entre nós: pois quase todos nós temos olhos para ver formas, movimentos e cores, e quase todos nós ouvimos vozes e ecos, ou pelo menos sentimos a passagem da luz e da escuridão através da nossa pele. E todos nós captamos e classificamos, sem parar, cheiros, gostos e sensações.

Isso e mais: todos nós sem exceção nos assustamos às vezes e até mesmo ficamos apavorados, e às vezes todos ficamos cansados, ou com fome, e cada um de nós gosta de certas coisas e detesta outras, que nos inspiram temor ou aversão. Além disso, todos nós sem exceção somos sensíveis ao extremo. E todos nós, pessoas répteis insetos e peixes, todos nós dormimos e acordamos e de novo dormimos e acordamos, todos nós nos empenhamos muito para que fique tudo bem para nós, não muito quente nem frio, todos nós sem exceção tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura. Pois cada um de nós pode ser amassado com facilidade. E todos nós, pássaro e minhoca, gato menino e lobo, todos nós nos esforçamos a maior parte do tempo em tomar o máximo cuidado possível contra a dor e o perigo, e apesar disso nós nos arriscamos muito sempre que saímos para correr atrás de comida, atrás de uma brincadeira e também atrás de aventuras emocionantes.

E assim, disse Maia depois de refletir sobre esse pensamento, e assim no fundo é possível dizer que todos nós sem exceção estamos no mesmo barco: não apenas todas as crianças, não apenas toda a aldeia, não apenas todas as pessoas, mas todos os seres vivos. Todos nós. E ainda não sei bem dizer se as plantas são um pouco nossos parentes distantes.


Logo, disse Mati, quem debocha dos outros passageiros na realidade é um bobo que está no mesmo barco. E não existe aqui nenhum outro barco.”
Amós Oz (2005, p. 45-47) em De repente, nas profundezas do bosque
"We are like butterflies that flutter for a day and think it's forever"
Carl Sagan


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Desconstruindo Darwin

Esse texto foi publicado no número 3 da revista Biosferas (da Unesp-Rio Claro), uma edição especial em comemoração aos 150 anos do Origem das espécies.

Desconstruindo Darwin


Os manuscritos do mar Morto foram escritos entre o século III a.C. e o I d.C. Eles formam uma coleção de pergaminhos descobertos entre 1947 e 1956 em uma caverna em Israel. Em um deles, o escriba comentou: "Não existe nenhum homem capaz de contar a história inteira". Essa frase se encaixa perfeitamente na idéia que temos sobre a história do desenvolvimento da teoria evolutiva. Apesar de sua incomparável importância para o pensamento humano, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), nascido há exatos 200 anos, não é o único nome que deve ser lembrado quando discutimos evolução. Da mesma forma, referir-se ao evolucionismo apenas como darwinismo desconsidera uma série de autores essenciais para a história da biologia.

A obra seminal de Darwin é o "Sobre a origem das espécies", publicado em 1859. Nele podem ser identificadas pelo menos cinco diferentes teorias, todas elas compondo o corpo principal de um amplo projeto de pesquisa, o evolucionismo darwiniano. Nenhuma dessas cinco teorias é original de Darwin, nem mesmo a idéia de seleção natural como o mecanismo responsável pela diversificação das espécies.

A primeira das teorias baseia-se na concepção de que o mundo vivo não é estável e imutável como imaginava Aristóteles e grande parte dos religiosos que adotaram a visão de mundo desse filósofo grego. Darwin sustenta que a natureza está em um processo contínuo de transformação no tempo e que os organismos não foram criados por uma entidade sobrenatural. Essa idéia não é darwiniana: Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) já falava sobre o transformismo das espécies, assim como Robert Chambers (1802-1871) no seu “Vestígios da história da criação”, de 1844, e George Louis de Buffon (1707-1788). Esse último, em sua obra longa e multifacetada “História Natural”, dizia que o centro de origem das espécies teria sido a Europa. A partir de dispersões para outras áreas, como o continente africano e a América do Sul, as espécies originais se degeneraram (ou seja, pioraram), dando origem a novas espécies.

Como complemento à concepção de uma natureza em processo constante de modificação no tempo, segundo outra das teorias presentes no “Origem”, o processo de descendência com modificação seria lento e gradual, não ocorrendo saltos para a origem de novos tipos. Dessa forma, as descontinuidades encontradas no mundo natural seriam meramente exceções – a inexistência de muitas formas intermediárias fósseis, por exemplo, refletiria apenas a imperfeição do registro paleontológico.

Darwin ainda apontou que as populações de qualquer espécie apresentam inúmeras variações. Os gatos (Felix catus) não são todos idênticos, assim como as moscas Drosophila melanogaster ou os diferentes Homo sapiens. Qualquer pessoa com um senso mínimo de observação da natureza pode perceber que essa idéia levantada por Darwin é óbvia, ainda que importantíssima no contexto da teoria evolutiva.

Uma das premissas revolucionárias do "Origem" é a hipótese de que todos os organismos encontrados na natureza compartilham um ancestral comum em algum nível hierárquico. Isso significa que, dadas quaisquer duas espécies (por mais distantes que sejam, como uma planária e um tiranossauro), elas sempre terão um ancestral em comum – mesmo que ele tenha vivido há centenas de milhões de anos. Esse é o raciocínio genealógico aplicado à compreensão das relações entre as espécies. A idéia de ancestralidade comum destrói qualquer pretensão humana em ocupar uma posição privilegiada na natureza: nossa espécie corresponde apenas a um raminho na imensa árvore evolutiva que reúne todas as milhões (bilhões?) de espécies existentes desde a origem da vida, há cerca de 3,8 bilhões de anos. Ainda no século XVIII, Buffon já havia tratado de ancestralidade comum.

Apesar da importância fundamental dessas quatro teorias para a concepção de evolução, o “Origem das espécies” é lembrado principalmente por trazer, de forma detalhada, a descrição do mecanismo pelo qual as espécies se modificariam no tempo, a seleção natural. Partindo dos trabalhos do economista britânico Thomas R. Malthus (1766-1834) com populações humanas, Darwin percebeu que, como deveriam ser produzido mais indivíduos do que os recursos disponíveis permitiriam – uma vez que a capacidade de reprodução dos organismos é alta – deve existir algo como uma luta pela existência entre os indivíduos das populações, resultando na sobrevivência de apenas parte dos filhotes de cada geração. O que define a sobrevivência ou não de um indivíduo é sua constituição hereditária. A esse processo de sobrevivência diferencial Darwin deu o nome de seleção natural. No correr das gerações, a seleção natural conduziria a uma mudança gradual e contínua das populações, isto é, à evolução e origem de novas espécies.

Charles Darwin foi o "descobridor" da seleção natural? Difícil dizer com certeza. Ele foi um grande compilador, com um talento inegável para correlacionar evidências e dados de observação para sustentar suas teorias. No entanto, a história do pensamento evolutivo mostra que muitos outros autores quase "chegaram lá".

Em 1831, o naturalista escocês Patrick Matthew (1790-1874) esboçou a primeira descrição da seleção natural: “Há uma lei universal na natureza que tende a conferir a todo ser reprodutivo as melhores condições possíveis (...) modelando seus poderes físicos, mentais ou instintivos à sua perfeição”. Antes de Matthew, no século XVIII, Buffon já havia comentado algo a respeito. William Charles Wells (1757-1817) foi outro que discutira a seleção natural na espécie humana, no começo do século XIX. Além desses, também o naturalista britânico Alfred R. Wallace (1823-1913) levantou a hipótese da seleção natural independentemente de Darwin, o que resultou em uma publicação conjunta de ambos na revista da Sociedade Real britânica, no ano de 1858. Wallace contou com a ajuda de Henry W. Bates (1825-1892). Ambos, trabalhando na Amazônia, chegaram à mesma conclusão darwiniana a respeito do processo evolutivo, considerando ainda a importância da distribuição geográfica no processo de especiação.

Wallace e Bates trabalhavam de forma obsessiva-compulsiva, chegando a passar 16, 18 horas seguidas coletando no infernal calor amazônico. Bates viveu no Brasil por onze anos, enviando mais de oito mil novas espécies de insetos para a Inglaterra durante esse tempo! Além da Amazônia, Wallace passou um longo período no arquipélago Malaio, sempre compilando toneladas de informações em trabalhos amplos. Ele não tinha a mesma reputação científica que Darwin, já conhecido como naturalista por conta de obras importantes como sua monografia sobre cracas. A pequena fama de Wallace à época do lançamento do “Origem das espécies”, e mesmo depois, pouco tem a ver com a qualidade do seu trabalho e mais com a genealogia: Darwin era de família abastada, Wallace não. O primeiro trabalhava em sua casa de campo; o segundo ganhava a vida no campo de fato. Também pode tê-lo afastado das primeiras sínteses históricas do evolucionismo o pendor espiritualista de Wallace, para quem todos os organismos passavam pelo processo da seleção natural, menos o homem, que teria sido "ungido" por Deus com sua inteligência extraordinária.

A história da teoria evolutiva nos mostra que muitos autores anteriores à Darwin haviam chegado a concepções muito semelhantes às suas. A teoria da evolução, atualmente, está anos à frente do que Darwin dizia ou mesmo do que ele teria condições de pensar, com base na ciência do seu período. Hoje se sabe, por exemplo, que o papel do acaso é tão (ou, para alguns, mais) determinante que a seleção natural. Pode-se estudar evolução em outros níveis que não o estritamente populacional – parece haver competição até mesmo entre genes!

Darwinismo, portanto, não deve ser visto como sinônimo de evolucionismo. Dizer isso não é desrespeitar o legado de Darwin mas sim preservar a importância da sua obra dentro do contexto histórico. Não há heróis absolutos, sem falhas, perfeitos em todos os seus quesitos, detentores da sabedoria completa de uma área do conhecimento. Como citado em um dos manuscritos do mar morto, ninguém pode escrever sozinho a história. Devemos desconstruir nossos heróis intelectuais para que a essência do seu gênio prevaleça.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ensinando evolução através de filogenias - III

A postagem a seguir é a última parte de uma discussão iniciada aqui e continuada aqui.

A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento.
É apenas o melhor que temos

Carl Sagan

Filogenias e filosofia da ciência

A utilização de filogenias nas salas de aula, além de permitir a organização do conteúdo programático da biologia dentro de um arcabouço evolutivo, também levanta a possibilidade de se trabalhar conteúdos de filosofia da ciência. Pode parecer uma excentricidade incluir conceitos filosóficos em disciplinas científicas desde antes do ensino médio, mas não é. Como exposto em um trabalho publicado há cinco anos (e discutido anteriormente nesse blog):

A importância da filosofia para o ensino de ciências tem sido há muito negligenciada. Muitas das discussões de pensadores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend permitem sugerir modelos pedagógicos que rompam com o tradicional caráter linear e atemporal do ensino, substituindo-as por uma visão mais dinâmica do processo ensino-aprendizagem.
Calor & Santos (2004, p 59)

Essa perspectiva está de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais brasileiros para o Ensino Médio, que ratifica a importância de se apresentar as disciplinas científicas em um contexto histórico-filosófico. Isso possibilitaria aos estudantes um contato mais próximo a algumas das particularidades da produção científica. Trabalhar o ensino de ciências a partir da perspectiva de que o campo é rico justamente por conta da existência de inúmeras idéias conflitantes, uma vez que a ciência é, na sua essência, um campo aberto e dinâmico, é uma forma de introduzir os alunos ao mundo científico e de fornecer-lhes ferramentas para melhor compreenderem a realidade que os cerca. Dessa forma, o ensino de biologia passa a ser encarado como um exercício constante de avaliação e discernimento de hipóteses científicas. Não há um cânone científico que sirva de baliza ou medida de comparação – apesar encontrarmos no discurso termos como dogma central da biologia molecular, qualquer conceito nas ciências é passível de questionamento e pode ser modificado.

Infelizmente, a adoção de uma postura crítica por parte dos estudantes pouco é estimulada durante as aulas. Os docentes, no geral, não se preocupam em expor critérios que permitam avaliar hipóteses científicas ou de que forma evidências são levantas a fim de descartar ou corroborar essa ou aquela teoria.

Onde as filogenias entram nisso tudo? Como qualquer hipótese científica, filogenias são idéias a respeito de quais são as relações de parentesco entre as espécies (ou entre grupos mais inclusivos, como gêneros, famílias, etc). Elas correspondem a reconstruções sobre como pode ter sido a evolução dos grupos considerados e estão sujeitas à corroboração ou refutação de acordo com evidências adicionais. Uma vez que teorias científicas são transitórias, as filogenias, por mais que sejam baseadas em grandes conjuntos de dados, nunca representam cenários conclusivos sobre a história evolutiva.

Ao apresentar o conhecimento científico como dinâmico e não absoluto no contexto das filogenias, o professor é capaz de trazer a filosofia da ciência para dentro da sala de aula, especialmente sobre a natureza transitória das teorias e a importância do criticismo em relação aos métodos e hipóteses. Os alunos são estimulados a utilizar a argumentação para escolher entre hipóteses rivais, ultrapassando a mera assimilação de conteúdos conceituais e factuais. Por exemplo, quais evidências sustentam a hipótese de que as aves são, na verdade, dinossauros? Por que essa idéia é mais informativa do que pontos-de-vista tradicionais, que traziam as aves como um grupo distinto dos répteis? Tomemos o grupo conhecido como celenterados, que reúne cnidários e carambolas-do-mar (ctenóforos). Por que não se pode, a partir do conhecimento atual sobre esses animais, defender a existência desse grupo? Além de fornecer respostas embasadas fortemente na teoria evolutiva, as filogenias levantam novas questões, o que está de acordo com o pensamento de Theodore Sturgeon (1918-1985): faça a próxima pergunta, sempre.


de http://store.xkcd.com/xkcd/#StandBackScience

É preciso deixar claro que a abordagem aqui proposta exige do professor um conhecimento adequado das bases da sistemática filogenética e das suas implicações – informações a esse respeito podem ser encontraras na internet ou em livros-textos de ampla circulação. É importante evitar caricaturas e simplificações demasiadas (mesmo que não se vá aplicar em sala de aula o método filogenético). Como em qualquer área do conhecimento, leitura e atualização constantes, incluindo consultas a obras, compêndios e sites confiáveis sobre os tópicos estudados, são de grande importância para que os professores tornem-se cada vez mais refinados na sua argumentação.

O objetivo central das propostas aqui apresentadas é o de permitir que os estudantes de ciências sejam participantes ativos do mundo científico, não apenas receptores passivos de teorias prontas e inquestionáveis. Alunos de ciências precisam ter desenvolvida a sua capacidade de criticar conceitos e hipóteses sob a luz da metodologia científica, minimizando, assim, suas próprias concepções errôneas.

Alguém pode se levantar na platéia e gritar: “Mas estudantes ainda não são cientistas!”. Isso é parcialmente verdade. No entanto, os alunos não precisam ser tratados como pesquisadores no sentido estrito para que seja trabalhada a ênfase no desenvolvimento de espírito crítico. O cerne da proposta é possibilitar aos alunos visualizar problemas evolutivos reais através de filogenias, além de muni-los das ferramentas metodológicas necessárias para a comparação entre hipóteses alternativas que explicam problemas derivadas da análise de diagramas ramificados, aproximando-os da epistemologia e da prática científica.

O físico italiano Enrico Fermi (1901-1954) certa vez disse que nunca deve ser subestimado o valor de se ouvir a mesma coisa repetidas vezes. Por isso, repito: o uso de filogenias como base para as aulas, além de solucionar interpretações incorretas sobre a teoria evolutiva, ajuda os professores e alunos a compreender a evolução como um processo histórico profundamente atuante na história da vida. Além de filosoficamente profunda, a apresentação da diversidade biológica através de filogenias é uma maneira elegante de enxergar as maravilhas da natureza.

Bibliografia sugerida
Gregory, T. (2008). Understanding Evolutionary Trees Evolution: Education and Outreach, 1 (2), 121-137 DOI: 10.1007/s12052-008-0035-x
Lombrozo, T. & Thanukos, A. & Weisberg, M. 2008. The importance of understanding the nature of science for accepting evolution. Evolution, Education and Outreach 1:290–298.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007. Ensino de biologia evolutiva utilizando a estrutura conceitual da sistemática filogenética - I. Ciência & Ensino 1, 1-8.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007. Ensino de biologia evolutiva utilizando a estrutura conceitual da sistemática filogenética - II. Ciência & Ensino 2, 1-8.
Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2008. Using the logical basis of phylogenetics as the framework for teaching biology. Papéis Avulsos de Zoologia 48, 199-211.
Thanukos, A. 2008. Bringing homologies into focus. Evolution, Education and Outreach 1:498–504.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ensinando evolução através de filogenias - II

A postagem a seguir continua a discussão iniciada aqui.


A abordagem na escola


Em "Rimas da vida e da morte", o escritor israelense Amos Óz escreve: "Existem respostas espertas e respostas evasivas. Respostas simples e diretas não existem". Essa frase é coerente com os desafios e problemas encontrados pelos professores ao ensinarem evolução nas escolas. Aqui não serão discutidas fórmulas fáceis ou receitas prontas para enfrentar cada situação particular.


Qualquer pessoa que já tenha lidado com uma sala de aula em disciplinas de biologia percebe que a linguagem é um dos maiores obstáculos para o ensino efetivo das ciências da vida. As limitações do nosso vocabulário e o fato dele ter sido construído muito antes de qualquer proposição de teoria evolutiva acabam por trazer inúmeras dificuldades para a comunicação de qualquer coisa relacionada à evolução. Desde pequenos, aprendemos com base na noção de analogia e não de homologia - nem poderia ser diferente. Usamos, por exemplo, termos como mandíbula para identificar estruturas presentes em insetos e em vertebrados, ou asas, para fazer referência a insetos, aves, pterossauros, aviões... São as mesmas palavras para descrever estruturas com funções semelhantes e origens completamente distintas. Quando os professores vão discutir evolução, a desconexão entre a linguagem comumente utilizada e uma linguagem que acomode os conceitos evolutivos fica patente - como bem lembrou Gerardo Furtado em um dos comentários da postagem anterior, também os docentes trazem conceitos deficientes para a sala de aula. É necessário, portanto, alterar o modo como utilizamos a linguagem para que alcancemos um conhecimento mais apropriado da natureza.


Uma possível abordagem para o ensino de evolução concentra-se na definição de homologia. Não há motivos para protelar essa discussão no ensino formal: ela pode ser introduzida desde o primeiro contato dos alunos com a diversidade do mundo natural.


Homologias, homologias


Quando consideramos que dois atributos são homólogos em dois organismos distintos, o que isso significa? Em linhas gerais, no contexto evolutivo, podemos dizer que tais características surgiram no ancestral comum desses dois organismos e se modificaram até o estado atual observado. Pernas anteriores de cavalos e braços de primatas são estruturas homólogas porque são modificações de membros anteriores, com esqueleto interno e musculatura, que remontam ao ancestral comum de todos os animais tetrápodes (com quatro patas). O conceito moderno de homologia fundamenta-se na hipótese de que mudanças na função de estruturas orgânicas são anteriores às alterações morfológicas dessa estrutura durante a evolução - isso vale para uma grande quantidade de casos. A partir dessa perspectiva, professores serão capazes de apresentar a evolução como um conjunto de modificações contínuas de funções ao longo do tempo, eventualmente seguidas de modificações da morfologia.


O sucesso nessa etapa inicial é perceptível quando se nota que o aluno consegue compreender que o raciocínio finalista ("essa estrutura serve para...") não cabe no discurso evolutivo. A teleologia é uma das grandes pragas da biologia evolutiva, disseminada inclusive entre professores e divulgadores de ciência. Qualquer estrutura deve ser compreendida como o resultado de um processo histórico. Partes corpóreas relacionadas a uma dada função no presente podem não ter estado relacionadas às mesmas funções no passado. É o caso dos apêndices de artrópodes. O erro decorrente do finalismo fica evidente quando comparamos espécies recentes desse grupo com seus primos distantes extintos, os Trilobita. Nestes, todas as pernas são semelhantes, apesar de desempenharem múltiplas funções (alimentar, reprodutiva, respiratória e locomotora). Em outras linhagens de Arthropoda, os apêndices foram profundamente modificados ao longo da evolução. É o caso de cupins, nos quais há apêndices bucais especializados na alimentação (mandíbulas e maxilas), apêndices locomotores e apêndices abdominais reprodutores. De fato, os apêndices são todos homólogos nas diferentes linhagens dos artrópodes – apesar da grande variedade morfológica dentro do grupo, apêndices são estruturas de mesma origem, mas modificadas durante o processo evolutivo. Como alguém pode dizer que pernas existem para andar se essas estruturas nem sempre estão relacionadas apenas à função de locomoção? Nos cupins, por exemplo, as pernas bucais trabalham na alimentação; nos trilobitos, as pernas participavam de quase todas as funções vitais.

Discutir o conceito de homologia pode ser mais fácil quando a ele se associa o reconhecimento da biodiversidade. As espécies estão todas historicamente conectadas em algum nível hierárquico, independentemente da quantidade de diferenças existentes entre quaisquer organismos escolhidos para a comparação (você e um paramécio são primos, sim! Distantes, mas ainda assim parentes).Todos os animais, por exemplo, são organismos multicelulares. Alguns grupos de metazoários têm ossos e esses ossos são modificações de uma estrutura esquelética presente no ancestral comum de todos os vertebrados (os ossos são homólogos entre os vertebrados). O aluno deve ser levado a compreender que as células da parede da cavidade gástrica de uma água-viva têm a mesma origem que grande parte das células do estômago de uma barata, de um gato e do dele próprio. Essas células endodérmicas são homólogas, pois estão presentes desde o ancestral comum de todos os ditos "animais verdadeiros" (que incluem todos os metazoários menos as esponjas). Há muitos outros exemplos de homologias que podem ajudar os professores a explicar como a evolução funciona.

Hierarquias no mundo natural

A compreensão do que são as homologias e da sua importância na evolução só será adequada quando a estrutura hierárquica da natureza também for discutida. Uma das maneiras de começar a falar disso na sala de aula é utilizar os próprios conhecimentos do aluno a respeito da genealogia da sua família. Como cita Stephen Jay Gould na sua última coletânea de ensaios sobre história natural (I have landed - the end of a beggining in natural history, publicada em 2003, um ano após sua morte), "a árvore da vida e a genealogia de cada família compartilham a mesma topologia e o mesmo segredo de sucesso na mistura de dois temas aparentemente contraditórios de continuidade (...) e mudança" (página 23).
Com uma árvore genealógica em mãos, o aluno poderá visualizar aquilo que, no início, parece apenas uma abstração, como o conceito de ancestralidade comum ou a idéia de grupos-irmãos. Toda criança em idade escolar sabe que os filhos dificilmente são idênticos aos seus pais (eles têm diferenças na altura, coloração dos olhos, da pele e cabelos, forma do nariz, das orelhas, dos dedos). Apesar disso, não é difícil convencê-los de que existem muitas semelhanças entre eles e seus pais, ou entre eles e seus irmãos e primos. Mesmo com características particulares, em geral dois irmãos se parecem mais entre si quando comparados a uma terceira pessoa, como um primo ou vizinho (a não ser que alguma cerca tenha sido pulada...). Qual é a causa da maior proximidade entre os irmãos? Simples: eles têm os mesmos pais, ou seja, têm um ancestral imediato compartilhado, que não é o mesmo do seu vizinho ou do seu primo. O que dizer dos filhos desses irmãos? Eles provavelmente serão mais similares a seus pais do que aos seus avós. 

Extrapolando o cenário familiar para a "natureza selvagem", e tomando-se o cuidado de apresentar um vetor temporal maior, de milhões ou mesmo bilhões de anos, associando-o com o conceito de homologia, podemos explicar porque um gato doméstico e um leão são mais proximamente relacionados um com o outro (são grupos-irmãos) do que com um cachorro, um peixe ou uma esponja. Meus alunos preparam breves ensaios sobre o assunto, que podem ser lidos aqui, aqui e aqui.


A maneira de representar as hierarquias de homologias é uma filogenia - uma árvore cheia de ramos, no ápice dos quais são posicionadas as espécies ou grupos discutidos, também chamada de cladograma. Esses diagramas ramificados são fundamentais para a descrição do mundo vivo como resultado do processo de descendência com modificação ao longo do tempo e não como um processo de transformação linear de uma espécie em outra. O que torna essa perspectiva tão interessante é que qualquer atributo biológico pode ser plotado nas filogenias - todos os aspectos bioquímicos da vida (e.g., evolução da fermentação, respiração celular, processo fotossintético), todas as características animais e vegetais, qualquer detalhe na fisiologia e comportamento dos organismos, etc.

de Cardoso et al. BMC Evolutionary Biology 2006 6:108 doi:10.1186/1471-2148-6-108


Aqui, é preciso respeitar as necessidades pedagógicas das turmas em que se está trabalhando. Pode ser vantajoso utilizar filogenias mais gerais, sacrificando o detalhamento em prol de uma melhor compreensão por parte dos estudantes e também dos professores. O foco não é na memorização de intermináveis listas de nomes de espécies (ou grupos) e das características de cada uma delas. A idéia é mostrar o que se mantém e o que modifica: o ancestral de todos os "animais verdadeiros" tem dois folhetos embrionários (ectoderme e endoderme); isso permanece em TODOS os outros animais! Não é preciso repetir, sempre que se falar de um grupo qualquer de metazoários, que ele apresenta ectoderme e endoderme se a filogenia dos animais estiver mais ou menos sedimentada na cabeça do aluno (e do professor).

A partir dessa estrutura ramificada, podemos discutir o que se modifica durante a evolução, o que permanece invariável e o que surge apenas em um ou outro grupo. Nessa proposta, filogenias funcionam como guias para preparar e apresentar todos os conteúdos em sala de aula - não só em disciplinas onde esse tipo de abordagem é mais aceita, como zoologia e botânica, mas também em disciplinas de citologia, genética ou embriologia. Os diagramas ramificados orientarão os professores na preparação e escolha de conteúdo para as aulas e durante as discussões em sala, além de ajudar os alunos na visualização da hierarquia da natureza à luz do paradigma evolutivo.
Continua

sábado, 7 de novembro de 2009

Ensinando evolução através de filogenias - I

As próximas postagens derivam de três artigos meus, publicados em parceria com o prof. Adolfo Calor (da UFBA) nos anos de 2007 e 2008. Como já foi discutido aqui nesse blog de forma sucinta, nossa idéia foi a de apresentar uma proposta de utilização do raciocínio filogenético no ensino da teoria evolutiva, levando em consideração também a importância de se discutir evolução à luz de conceitos de filosofia da ciência – que são válidos não apenas nos domínios da biologia.

Evolução e filogenias

Em 2009, ano do sesquicentenário da publicação do On the origin of species, obra-magna de Charles Darwin (que completaria 200 anos se estivesse vivo e se fosse da família MacLeod), não há pessoa instruída que não tenha ouvido falar da teoria evolutiva como unificadora da biologia. Também já faz parte do senso comum a idéia de que todos os organismos do planeta (incluindo as espécies extintas e o homem) compartilham um ancestral em algum nível hierárquico, por mais remoto que seja, e que, dessa forma, todas as espécies estão conectadas. Após os trabalhos de Alfred Wallace e Charles Darwin (os artigos de 1858 e o clássico supracitado de 1859) e especialmente depois da fusão com a genética redescoberta no início do século XX, novos achados paleontológicos e descobertas naturalistas, a teoria da evolução transformou-se no paradigma central da biologia, influenciando inúmeras outras áreas do conhecimento humano. Hoje, como qualquer um que lê regularmente jornais sabe, o mundo todo fala a respeito de evolução (muita gente, infelizmente, demonstra "amplo" conhecimento na área quando este apenas arranha o real espectro da pesquisa séria em biologia evolutiva). Nas palavras do ornitólogo Ernst Mayr (1904-2005), em um interessante artigo publicado na Scientific American em 2000, “a forma como concebemos o mundo e o lugar que ocupamos nele neste início do século XXI difere radicalmente daquela vigente no início do século XIX”. O estabelecimento da teoria da evolução nas ciências naturais foi crucial para essa nova concepção da realidade.

Uma vez que a teoria da evolução é o arcabouço estrutural das ciências biológicas, é lógico pensar que ela pode ser tomada como o princípio organizador do ensino de biologia, em qualquer nível, desde o primeiro contato do estudante com os seres vivos (eu diria antes mesmo do primário!). No entanto, as escolas ainda restringem a evolução a uma limitada visão descontextualizada tanto em termos históricos quanto conceituais. Não há quem não tenha ouvido algum professor falar, ou visto em algum material “didático”, que a evolução pode ser sintetizada em duas grandes figuras, Darwin e Lamarck. Aproximações grosseiras da teoria, juntamente com a falta de cuidados na sua exposição, aliada ainda a preconceitos de docentes e alunos culminam em um aprendizado deficiente. É triste mas verdadeiro: por mais que se fale a respeito de evolução, por mais que se publique na grande mídia textos sobre o assunto, a percepção do grande público ainda está muito aquém do mínimo suficiente para possibilitar uma opinião crítica balizada não apenas em achismos ou na palavra da “autoridade” eclesiástica.

Quem já se encontrou falando sobre evolução em público (em uma sala de aula, por exemplo) provavelmente identificou muitas das dificuldades inerentes à aventura de se discutir o tema. Ouvi várias vezes frases como “professor, existem duas teorias que explicam a evolução, certo? Darwin e a religião” ou “mas não é possível que os animais tenham evoluído tão rápido!” (como se 600 milhões de anos fosse pouca coisa!). Assim como é difícil conceber o que seria 600 milhões de reais, não é tão fácil assimilar o que significariam 600 milhões de anos de mudanças evolutivas. Ainda mais complicado é falar sobre como não há uma tendência para o progresso na evolução ou como não podemos dizer que há sempre um aumento de complexidade durante a história das linhagens. Quando o assunto é a descoberta de ancestrais ou o encontro de elos perdidos, tudo fica nebuloso – nesse momento, um em cada dois estudantes está mentalmente abrindo a geladeira da sua república em busca da última cerveja. Ao discutirmos a questão da ancestralidade do homem e sua semelhança com outros primatas, a atenção volta, mas a compreensão continua diminuta. Junta-se à esse caldeirão uma série infindável de falsas concepções transformadas em clichês pela publicidade e mídia não especializada. O que temos? Um ciclo infinito de interpretações equivocadas, desinteresse e desinformação.

Há uma solução para todos esses problemas? Qual a resposta para essa pergunta fundamental? 42? Mesmo sendo o homem apenas a terceira espécie mais inteligente da Terra, fomos capazes de criar ferramentas para nos guiar por essa floresta escura.

Apesar de normalmente aplicada a estudos acadêmicos de classificação biológica, a sistemática filogenética pode ser utilizada para enfraquecer o paradigma essencialista corrente no ensino de biologia, incutindo na disciplina a idéia de que a melhor metáfora para a evolução NÃO é uma fila indiana que vai de organismos mais “simples” até aqueles mais “complexos” ou dos menos até os mais evoluídos, e sim uma árvore toda ramificada. Simples assim: ao pensar em evolução, tenha em mente um diagrama ramificado que conecta ancestrais e descendentes. Nessas árvores, que mostram as relações de parentesco entre os grupos, podemos sintetizar muita informação biológica (tais como características de morfologia externa, embriologia, fisiologia e comportamento). Ao utilizarmos (bem) essas árvores filogenéticas, também podemos começar a trabalhar conceitos relativos à construção, corroboração e refutação de hipóteses científicas. Tudo em um mesmo pacote.


O método de Hennig

Foi o entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1967) o primeiro a propor um conjunto de regras para se estabelecer as relações de parentesco entre os seres vivos, fundamentado no evolucionismo, que ele chamou de sistemática filogenética. Prisioneiro de guerra em 1945, Hennig escreveu um o primeiro rascunho da obra Grundzüge einer Theorie der Phylogenetischen Systematik (Fundamentos de uma teoria da sistemática filogenética) ainda na cadeia, sem dispor de bibliografia ou de anotações! O método representou uma reviravolta na prática da classificação biológica, que à época afundava no autoritarismo dos taxonomistas clássicos como Mayr. A idéia de Hennig foi a de construir um método que permitisse o reconhecimento das relações genealógicas entre os organismos resultantes da sua descendência com modificação a partir de um ancestral comum.

Segundo Hennig, entre os organismos somente poderiam ser conhecidas as relações de parentesco colaterais ou de grupos-irmãos (quando dois táxons são evolutivamente mais próximos entre si em relação a um terceiro). A reconstrução dessas relações depende do levantamento e da análise de características homólogas presentes nos grupos estudados (veja um ensaio sobre homologia aqui). Em linhas gerais, caracteres homólogos são atributos semelhantes que surgiram no ancestral comum de grupos evolutivamente relacionados que se modificaram com o passar das gerações. A partir do reconhecimento das relações de grupos-irmãos, expressas nas árvores evolutivas (ou cladogramas, usando a terminologia contemporânea), pode-se contar um pouco da história evolutiva dos grupos biológicos considerados.

Outro conceito fundamental para Hennig é a idéia de grupo monofilético (discutida aqui). Desde a Antigüidade clássica, procurava-se uma maneira de se identificar, na natureza, quais grupos teriam existência real e quais seriam apenas construções da perturbada mente humana. Eu consigo distingüir que baratas, moscas, abelhas e borboletas são parentes próximos mas o que dizer de um grupo contendo insetos, pterossauros, aves e morcegos? Todos têm asas! Seria esse um grupo natural, considerando o processo evolutivo? Hennig propôs que apenas os grupos monofiléticos são naturais, pois são os únicos que carregam a informação da história evolutiva e, assim, refletem o processo de descendência com modificação. Grupos monofiléticos contêm o ancestral comum mais recente e todos os seus descendentes, sendo portadores de homologias exclusivas não apresentadas por outros grupos. Nesse sentido, o grupo dos animais "alados" é uma construção artificial.

Ah, você pode estar pensando, como é que eu vou falar sobre grupos monofiléticos e homologias na sexta série? Isso não é necessário. O mais importante é mostrar o raciocínio subjacente, apontando para a necessidade de pensar em diagramas ramificados ao tratar de evolução. Ensinar biologia através de uma abordagem filogenética não significa utilizar o método e seus algoritmos na sala de aula. Isso seria muito pouco efetivo (até mesmo no ensino universitário de biologia!). No entanto, árvores filogenéticas são ferramentas poderosas na organização e apresentação dos conteúdos biológicos. Por exemplo, em uma aula voltada à citologia, a partir de uma árvore que mostre as relações entre as bactérias, as arqueobactérias e os eucariotos, pode-se mostrar a evolução da respiração celular nas espécies com carioteca a partir de características já existentes em alguns procariotos. Uma árvore filogenética dos animais permite mostrar a mudança dos padrões de simetria no tempo, os compartilhamentos de estruturas e genes e mesmo as características exclusivas desse ou daquele grupo. Essas árvores filogenéticas orientam os professores antes e durante as aulas, permitindo ao aluno visualizar os padrões hierárquicos entre as espécies à luz da teoria da evolução. Continua...

fonte da figura: http://www.camiseteria.com/design.aspx?did=20399

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Parábola cética atualizada

Surfista Prateado por Jean Giraud Moebius (1988-1989)


Entre 1988 e 1989, foi publicada uma edição especial do Surfista Prateado, escrita por Stan "The Man" Lee e ilustrada por Jean Giraud Moebius, intitulada Parábola. Nela, Galactus, uma entidade cósmica conhecida como "o Devorador de Mundos", vem à Terra para destruí-la e se alimentar da sua energia. Para isso, Galactus permite que as pessoas façam o que bem desejarem em seu nome para, assim, encontrarem a "salvação" – o plano é permitir que a humanidade se aniquile por meios próprios. Nesse ínterim, surge seu ex-arauto, o Surfista Prateado, questionando o direito de Galactus de atacar a Terra com um estratagema tão ardiloso.

Ao final, o vilanesco semi-deus galáctico parte deixando nosso planeta incólume. O Surfista, alçado à categoria de herói planetário, é recebido na sede das Nações Unidas e fala para o mundo. Os diálogos, em uma páginas tocante e dolorosa, é esse:


Embaixador 1: “Nós fomos visitados por dois seres do espaço. Um, tratado como um deus. O outro, para nossa perpétua vergonha, desprezado e condenado. Mas, finalmente, enxergamos a verdade. O surfista é o verdadeiro salvador das estrelas”.
Surfista: “Não! Nenhum homem pode ser colocado acima dos demais. A chama divina está em todos ... ou em ninguém”.
Platéia: “Que humildade. A verdade essência da pureza. Só pode ser um santo. Você deve nos liderar! Oriente-nos. Seremos seus discípulos”.
Surfista (pensando): “Isto é loucura! Eles desejam um líder. Assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas. Por que eles não procuram a verdadeira fé em sim mesmos? Por que buscam outro que lhes mostre o caminho?”.

Essa é uma das mais belas histórias em quadrinhos de super-heróis já criadas. Definitivamente, não é leitura apenas para crianças...

Com uma das prosas filosóficas mais elegantes do século XX, Bertrand Russell (1872-1970) foi filósofo, lógico, matemático e escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1950. Defensor do racionalismo e do ceticismo, Russel escreveu, no seu ensaio Sonhos e fatos, que pode ser encontrado na coletânea Ensaios Céticos:

“Os sonhos de um homem ou de um grupo podem ser cômicos, mas os sonhos humanos coletivos, para nós que não podemos ultrapassar o círculo da humanidade, são patéticos. O universo é muito vasto, como revela a astronomia. (...) No mundo visível, a Via Láctea é um fragmento minúsculo; e, nesse fragmento, o sistema solar é uma partícula infinitesimal, e, dessa partícula, nosso planeta é um ponto microscópico. Nesse ponto, pequenas massas impuras de carbono e água, de estrutura complexa, com algumas raras propriedades físicas e químicas, arrastam-se por alguns anos, até serem dissolvidas outra vez nos elementos de que são compostas. Elas dividem seu tempo entre o trabalho designado para adiar o momento de sua dissolução e a luta frenética para acelerar o de outras do mesmo tipo. As convulsões naturais destroem periodicamente milhares ou milhões delas, e a doença devasta, de modo prematuro, mais algumas. Esses eventos são considerados infortúnios; mas quando os homens obtêm êxito ao impor semelhante destruição por seus próprios esforços, regozijam-se e agradecem a Deus. Na vida do sistema solar, o período no qual a existência do homem terá sido fisicamente possível é uma porção minúscula do todo; mas existe alguma razão para esperar que mesmo antes desse período terminar o homem tenha posto fim à sua existência por seus próprios meios de aniquilação mútua. Assim é a vida do homem vista de fora.”

Theodore Sturgeon (1918-1985) foi um escritor norte-americano de ficção científica. Ficou muito conhecido pela chamada "Lei de Sturgeon": “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de TUDO o que se escreve é lixo”. Em 1967, publicou um artigo na Cavalier Magazine, em que escreveu: "Todo avanço que essa espécie já alcançou é o resultado de alguém, em algum lugar, olhar o mundo, sua vizinhança, seu vizinho, sua caverna ou a si mesmo e fazer a próxima questão. Todo erro mortal que essa espécie cometeu, todo pecado contra si e seu destino, é o resultado de não se fazer a próxima questão ou de não se ouvir aqueles que a fizeram".

Certa vez, quando perguntado a respeito do significado da sua marca registrada pessoal (uma letra Q com uma seta apontando para a direita), Sturgeon respondeu:


“Ela significa "Faça a próxima questão" [em inglês, "Ask the next question"], e a seguinte, e a seguinte. É o símbolo de tudo que a humanidade criou e é a razão pela qual as coisas são criadas. O sujeito está sentado na caverna e diz ‘Por que um homem não pode voar?’. Bem, essa é a questão. A resposta pode não ajudá-lo, mas agora a questão foi formulada. Qual é a próxima questão? Como? E assim, através das gerações, as pessoas têm tentado encontrar a resposta para aquela questão. Nós encontramos a resposta e nós voamos. Isso é verdade para qualquer realização humana, seja na tecnologia ou na literatura, na poesia, nos sistemas políticas ou em qualquer outro assunto. É isso. Faça a próxima questão. E a outra depois dela”.

Como podemos depreender dos exemplos supra-citados, que vêm de autores tão diferentes quanto quadrinhistas, filósofos e escritores de ficção-científica, um posição inquiridora e cética não é exclusiva das ciências. Até mesmo as religiões poderiam se beneficiar dele (através, por exemplo, de uma auto-análise periódica - quiçá constante - que levasse à depuração de suas premissas reiteradas vezes consideradas infundadas). No entanto, essa me parece uma visão de mundo otimista demais, quase ingênua. As religiões, quando tomadas no geral, não fazem um esforço sincero para depurar o que podemos chamar de suas "superstições infundadas".

Religiões deveriam se limitar a tratar de alguns dos aspectos éticos e morais do homem e da sua condição na existência. Obviamente, a religião é uma poderosa atividade humana e provavelmente remonta a tempos remotos pré-científicos, muito antes da invenção de qualquer tipo escrita. Para muitos, a fé pode ser uma fonte de conforto para suas vidas - a devoção ao divino, independente de como ele se expressa, funciona como a tábua de salvação. Pode-se até mesmo construir um cenário adaptacionista para explicar o surgimento e desenvolvimento do misticismo: se funcionava como fator organizador dos agrupamentos sociais primitivos, aparecendo por vezes associado às primeiras tentativas do homem de interpretar os fenômenos naturais, essas proto-religiões teriam sido selecionadas, propagando-se na descendência. O evolucionista britânico Richard Dawkins considera as religiões como memes, ou unidades de evolução cultural, que podem se autopropagar – meme, termo criado por Dawkins em seu clássico “O gene egoísta” (de 1976), análogo ao gene, seria a unidade mínima de informação transmitida entre representantes da nossa espécie, através da conexão cérebro-cérebro ou entre locais onde essa informação está armazenada, como livros ou páginas da internet e outros locais de armazenamento e/ou cérebros.

Como é de amplo conhecimento, as doutrinas religiosas baseiam-se em dogmas, fundamentos doutrinários muitas vezes frutos de pretensas revelações ditadas pelos deuses, santos ou espíritos iluminados, todos eles manifestações do imponderável. Visto que seriam as palavras divinas em si, apesar de transcritas e interpretadas por homens, e uma vez tidos como certos pela alta hierarquia da igreja, congregação, seita e similares, esses preceitos transformam-se em ditos sagrados e, infelizmente, não se prestam a indagações sobre seus fundamentos. Assim, passam a corresponder à verdade absoluta proferida pelo altíssimo. Nesse sentido, o desenvolvimento de uma postura cética torna-se pouco provável no âmbito das religiões, pois o questionamento dos dogmas pode levar à dúvida quanto à validade desse ou daquele preceito, conseqüentemente erodindo os pilares sustentadores do pensamento religioso.

A questão é ainda mais ampla e extrapola a frágil dicotomia ciência-religião. Qual seria o objetivo de se estimular a reflexão individual (ou coletiva), o "pensar com a própria cabeça", se tudo parece já estar escrito, refletido e "pensado"? É muito mais cômodo transferir o ato de raciocinar para o padre, o pastor, o papa... ou o jornalista, o professor, o cientista... Como professor, as frases dos estudantes mais desanimadoras são "Professor, o que eu tenho que saber?" ou "Professor, o que o senhor quer que eu estude?" ou ainda "Professor, como eu devo pensar a respeito desse assunto?".

Parece que é da condição humana ansiar por um führer, um condutor para revelar como agir perante o vazio infinito da existência. Esse guia não precisa, necessariamente, estar personificado: ele se apresenta em distintas formas, que trazem, subjacentes ao seu discurso, a questão do controle e do desestímulo ao livre-pensar. Nossa indústria cultural ajuda na padronização das populações, em todos os sentidos (vestuário, ideário político, cinema, literatura, música) – o mesmo vale para muitos dos formadores de opinião, que por vezes parecem se preocupar mais em reforçar estereótipos do que em estimular o espírito crítico do seu público. A democratização da internet, nesse ínterim, tem papel ambíguo (ou paradoxal, dependendo do ponto de vista assumido). Apesar de possibilitarem a veiculação de qualquer conteúdo, qualquer informação, por mais obscura ou pouco usual que seja, ferramentas como blogs, independentemente da boas intenções dos seus criadores, estão cada vez mais semelhantes (doutrinários?).

Apesar de impressas em uma forma de arte ainda tida como menor ou infantil, as sábias palavras do Surfista Prateado bem se encaixam nesse quadro: "Eles desejam um líder, assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas".

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Iluminação recíproca e consiliência

Em linhas gerais, a biogeografia é o estudo dos padrões e processos responsáveis pela distribuição dos seres vivos no planeta. Ela é extraordinariamente complexa porque engloba uma grande quantidade de evidências e áreas distintas de investigação biológica.

Recentemente, publiquei um artigo (com um colega da USP-RP, Msc. Renato Capellari) discutindo alguns conceitos relativos à filosofia da biogeografia histórica. Sua versão on-line pode ser encontrada no site da Evolutionary Biology (o trabalho impresso deve sair na edição de dezembro da revista).

Santos, C.M.D. & Capelari, R.S. 2009. On reciprocal illumination and consilience in biogeography. Evolutionary Biology. DOI 10.1007/s11692-009-9070-y

Segue o resumo do texto:
A biogeografia lida com a análise combinada dos componentes espacial e temporal do processo evolutivo. Para esse propósito, uma análise biogeográfica deve considerar dois passos extras: um passo de iluminação recíproca e um passo de consiliência. Mesmo que os desafios tradicionais da biogeografia forem sobrepujados com sucesso, a hipótese obtida não é necessariamente significativa em termos biogeográficos – ela precisa de teste contínuo à luz de hipóteses externas. Por isso, um conceito análogo à iluminação recíproca de Hennig é valioso, assim como um tipo de consiliência biogeográfica no sentido de Whewell. Inicialmente, através da busca por diferentes classes de evidência, informação útil para aperfeiçoar a hipótese pode ser acessada via iluminação recíproca. Em seguida, uma hipótese mais geral pode ser encontrada através de um processo de consiliência, quando a hipótese explica fenômenos não contemplados durante sua construção, como a distribuição de outros táxons ou a existência (ou ausência) de fósseis. Esse procedimento visa à avaliação da robustez das hipóteses biogeográficas como teorias científicas. Tais teorias são descrições confiáveis de como a vida muda sua forma no espaço e no tempo, colocando a biogeografia histórica próxima à concepção de Croizat de evolução como um fenônemo tridimensional.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um pouco mais a respeito de elos perdidos

Continuando uma discussão iniciada aqui nesse blog...



Uma pesquisa rápida para "elo perdido" feita na área de ciências de qualquer jornal de grande circulação certamente vai resultar em um grande número de notícias relacionadas a esse tema. A wikipedia tem um artigo a respeito, que começa da seguinte forma: "Em paleontologia, dá-se o nome de forma ou fóssil de transição a um organismo conhecido apenas do registo fóssil que combina características dos seus descendentes e antecessores evolutivos. Estes fósseis são conhecidos popularmente como elos perdidos da evolução". Esse é um clichê utilizado por toda a mídia sempre que se discute a descoberta de um fóssil de algum grupo representativo. Infelizmente, ele está fundamentalmente incorreto.

Há uma série de relatos na literatura biológica a respeito de elos perdidos e ancestrais. Um dos mais famosos ficou conhecido como Homem de Piltdown, uma notória fraude do começo do século XX, formada por fragmentos de um crânio e de uma mandíbula recuperados de uma mina de cascalho em Piltdown, no condado inglês de Sussex - era um crânio de Homo sapiens moderno fundido à mandíbula de um orangotango, proposto à época de sua "descoberta" como o elo perdido entre esses dois grupos de primatas. Desde a proposição da teoria da evolução por meio da seleção natural por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), no século XIX, abriu-se a temporada de caça aos elos perdidos. Por que, então, criticar o uso desse termo? O que ele traz de problemático?

Costuma-se dizer que uma hipótese é científica se ela pode ser falseada ou pelo menos se ela está aberta a questionamentos, feitos com base em outras evidências observacionais ou hipóteses alternativas. Imputar o status de ancestral ou elo perdido a qualquer grupo biológico, seja ele fóssil ou recente, passa longe da boa ciência. O biólogo Edward Wilson (1929- ) diz em sua autobiografia que devem ter existido cerca de um bilhão de espécies de insetos desde o aparecimento do grupo, há mais de 350 milhões de anos. Desses, apenas uma ínfima parte se fossilizou. Como podemos ter certeza que um fóssil encontrado é de fato uma forma de transição entre um grupo antigo e um grupo recente? Não podemos! Não somos capazes de dizer se esse fóssil foi o ancestral de qualquer grupo reconhecido atualmente uma vez que, para cada espécie encontrada hoje no planeta, devem ter existido ao menos 100 outras que foram extintas sem deixar marcas da sua passagem. Toda inferência a respeito que qual teria sido o ancestral de um grupo é pouco mais que um palpite – a sistemática filogenética de Hennig incorpora essa impossibilidade ao definir que os ancestrais comuns dos grupos monofiléticos são sempre hipotéticos, correspondendo à construções teóricas sobre que características devem ter estado presentes no ancestral de fato do grupo sob análise.

A idéia de que fósseis devem ser tratados de forma especial quando comparados com organismos recentes começou a se tornar disseminada a partir de meados dos anos 1930, com a teoria sintética da evolução, tornada célebre por figuras como Ernst Mayr (1904-2005), Theodozius Dobzhansky (1900-1975) e George Gaylord Simpson (1902-1984). Esse último, um paleontólogo, acreditava que os fósseis seriam "janelas para o passado" e que somente a partir deles poderíamos compreender a evolução das espécies e os padrões de relações de parentesco. Grupos extintos mostrariam a partir de onde as espécies evoluíram. Dessa forma, um fóssil como o Archaeopteryx litographica, uma ave do Jurássico extinta há 150 milhões de anos, foi tomado como sendo o elo perdido entre os répteis e as aves e o ancestral dessas últimas. Os exemplos são abundantes na literatura técnica. Para ficarmos apenas em duas grandes descobertas dos últimos anos: em 2008, o Gerobatrachus hottoni foi chamado de elo perdido na evolução das rãs; em maio de 2009, foi descrito o Darwinius masillae, rapidamente tratado pela mídia como o elo perdido que explicaria a transição entre primatas e o homem (tratamento dado inclusive pela prestigiada revista de divulgação Scientific American).

A partir da publicação do Origem das espécies de Darwin, em 1859, a idéia da "cadeia do ser", que remonta aos trabalhos do filósofo grego Aristóteles, foi seriamente questionada. A melhor representação para a evolução é uma árvore ramificada, não um conjunto de organismos conectados entre si como elos em uma corrente – como não existem os tais elos, não precisamos fazer esforço algum para tentar encontrá-los! A evolução é mais complexa que uma seqüência de espécies organizada com base em um pretenso grau de aumento de complexidade. Os intermediários são TODOS os ramos da árvore da vida posicionados entre quaisquer dois grupos escolhidos. Dessa forma, não há apenas UM determinado elo: todas as espécies que fazem parte da hierarquia natural resultante do processo evolutivo são elos.

Basta um pouco de lógica e bom senso para se perceber que a a busca por pretensos “organismos-chave” para a evolução perde o sentido quando vista sob o prisma dos métodos filogenéticos de reconstrução das árvores evolutivas. Como a biologia faz pouco sentido a não ser à luz de filogenias, são elas que nos mostram os padrões de ramificação que fornecem o arcabouço para estudos sobre processos e mecanismos de evolução. Não há menor necessidade, nesse contexto, de apontar um ou outro organismo como sendo o ancestral de qualquer grupo, uma vez que, como resultado de uma análise filogenética, podemos sugerir como devem ter sido esses ancestrais, mesmo que não tenhamos qualquer fóssil dos grupos estudados. Há ferramentas que nos permitem postular até mesmo quais genes estavam presentes nesses ancestrais (a biologia evolutiva do desenvolvimento ou evo-devo é uma das áreas que têm fornecido impressionantes reconstruções sobre a evolução dos genes de vários grupos animais).

Diz-se que uma ciência está madura quando conceitos “primitivos” são substituídos por outros mais refinados e com maior estruturação filosófica. O abandono de concepções incorretas como a de fósseis como ancestrais e elos perdidos, arraigada à uma concepção ortodoxa da evolução, é indicativo de que a biologia evolutiva deixou de ser uma mistura de “arte e ciência”, como proferiu G.G.Simpson nos anos 1960. Ela não pode se basear na autoridade de um seleto grupo de pesquisadores sobre determinados temas mas tem que se esforçar cada vez mais na busca por hipóteses robustas, suportadas por evidências observacionais e empíricas, com grande poder explanatório, independentes do seu autor.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Blog de divulgação científica na UFABC

Caros colegas,

Meus alunos do PDPD (Pesquisando Desde o Primeiro Dia) acabaram de criar um blog, sob minha supervisão, que tem como objetivo servir como plataforma de divulgação e discussão dos resultados obtidos nos seus dois projetos.
Na página, serão postados ensaios e material produzido por Anna Carolina Russo e Leandro Pereira Tosta, alunos do Bacharelado em Ciência & Tecnologia da UFABC. Ambos estão se debruçando sobre certos aspectos da evolução dos Metazoa (animais), com especial ênfase em filogenias baseadas em dados morfológicos, embriológicos e moleculares.
Se tiverem um tempo, por favor visitem (e comentem, caso achem pertinente):
http://www.evolucaodemetazoa.blogspot.com/

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Sobre conceitos de espécie



"Um
a das ironias da história da biologia é que Darwin
não explicou realmente a origem de novas espécies
no Origem das espécies porque ele não sabia como
definir uma espécie"
Douglas Futuyma (1983)

As ciências naturais estão repletas de conceitos controversos à espera de uma definição. Só para citar alguns, na biologia, não se sabe exatamente o que é ou como identificar uma área de endemismo ou um caráter homólogo. Apesar desses termos terem sido introduzidos nas ciências há mais de quase dois séculos - o primeiro a falar de área de endemismo foi Auguste de Candolle (1778-1841), em 1820, e o primeiro a definir homologia foi Sir Richard Owen (1804-1892), em 1823 - são continuamente revisados nas publicações especializadas. Um outro conceito, ainda mais fundamental, tem sido motivo de rusgas e comentários há bem mais tempo: discussões acerca do conceito de espécie remontam à filosofia grega clássica e podem ser encontradas em praticamente todos os autores que tiveram alguma importância na história do pensamento biológico. No geral, esses autores não concordam entre si ou têm uma perspectiva paradoxal a respeito do problema, com os conceitos cambiando conforme as necessidades práticas dos estudos de cada um. Até mesmo um dos pais do evolucionismo moderno, Charles Darwin (1809-1882), mostrou-se ambíguo ao tratar de espécies.

Apesar das dificuldades, a biologia moderna é quase unânime em reconhecer a existência de descontinuidades reais natureza. Isso quer dizer que podem ser identificadas entidades naturais, as quais damos o nome de espécies. Fica claro, portanto, que qualquer área das ciências biólogicas baseia-se em, ou pelo menos utiliza, espécies. Zoólogos, obviamente, lidam dia-a-dia com espécies, assim como botânicos. Geneticistas, apesar de estarem distantes da imagem popular do pesquisador naturalista, também fazem uso de espécies: há quem trabalhe com genética de populações de Drosophila melanogaster (uma espécie de dípteros antes conhecidos como moscas-das-frutas), há quem faça clonagem de Ovis aries (ovelhas, como a famosa Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de células adultas)... Assim, o conceito de espécie é um dos fundamentos de todas as disciplinas biológicas.

Para o ornitólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005), em seu livro Toward a new philosophy of biology: observations of an evolutionist (Em direção a uma nova filosofia da biologia: observações de um evolucionista), publicado em 1988, “a diversidade da vida orgânica, consistindo de espécies e grupos de espécies (...), é produto da evolução. Isso torna necessário o estudo da origem e história evolutiva da cada espécie e cada táxon superior. O estudo das espécies é, portanto, uma das preocupações fundamentais da biologia”.

Entendi, você pode dizer. Lidar com espécies é condição sine qua non para o estudo da biologia. Isso está claro. Mas, o que é uma espécie? A dificuldade para responder à essa simples pergunta levou ao desenvolvimento de uma série de conceitos diferentes que tentaram definir o que essa entidade natural. O objetivo aqui não é descrever cada um deles mas apenas separá-los em classes reconhecidas na literatura biológica.

Segundo o conceito tipológico, uma espécie é uma entidade que difere de outra espécie por apresentar características diagnósticas identificáveis constantes. Dessa forma, espécies corresponderiam a agregados aleatórios de indivíduos que têm em comum algumas propriedades essenciais. O conceito remonta ao eidos platônico - o primeiro significado de eidos, presente na obra do poeta grego Homero (autor da Ilíada e da Odisséia), é "aquilo que se vê", "aparência", "forma" ou ainda "propriedade característica". Para a filosofia aristotélica, corresponderia à “essência” ou “natureza” de algum objeto ou organismo, no caso, da espécie-tipo. Aqui, a palavra “espécie” significa “tipo de” e designa um certo grau de similaridade. Do conceito tipológico deriva o conceito morfológico: uma morfoespécie é uma espécie reconhecida apenas com base na sua morfologia. Na prática, é o mais utilizado pelos sistematas e taxonômos. Qualquer um que já viu uma descrição de espécie publicada deve ter notado que um novo nome de espécie proposto sempre vem relacionado à um espécime, chamado de holótipo, e a uma diagnose, que aponta os atributos necessários para identicar aquela nova espécie.

Durante a Idade Média, especialmenta a partir do século VII, um dos problemas filosóficos muito discutido foi a questão dos universais ou o problema da correspondência entre nossos conceitos intelectuais e as coisas que existem fora do nosso intelecto. Apesar dos objetivos serem determinados e individuais, nossas representações mentais são realidades infependentes de qualquer determinação particular. A questão se resumo em descobrir em que extensão os conceitos da mente correspondem às coisas que eles representam: o quanto o sapo que concebemos representam do sapo que existe na natureza? Os conceitos apenas palavras ou são mesmo realidade? Uma das respostas para esse tipo de questão quase esotérica vem de uma escola de pensamento medieval chamada nominalismo.

Para os nominalistas, as idéias gerais não têm realidade fora do que é concebido por nossa mente - elas não passam de simples nomes. Real é o objeto considerado. Não há um universal per se. Ele é apenas um nome sem conteúdo concreto, um vocábulo com significado geral. O que isso tem a ver com o conceito de espécie? Bem, há um conceito nominalista de espécie. De acordo com ele, apenas objetos individuais existem na natureza. Tais objetos ou organismos são mantidos unidos por um nome – espécies, dessa maneira, seriam construções mentais arbitrárias, nada mais que isso. Elas não teriam realidade na natureza.

Esse pode ser um conceito filosoficamente interessante mas carece de substância, quando confrontado com situações corriqueiras. O reconhecimento das mesmas entidades como sendo espécies por culturas tão distintas quanto ocidentais brancos e nativos da Nova Guiné, como relatado por Mayr na sua obra de 1988, demonstra como o nominalismo não é a melhor saída para o nosso problema. Qual a chance de culturas tão diferentes, espacialmente separadas por um oceano, chegarem exatamente às memas construções arbitrárias, ou seja, à delimitação de espécies idênticas? Eu diria que ínfima.

O nominalismo foi a base do pensamento biogeográfico do jesuíta Athanasius Kircher (1602-1680). Hoje quase uma anedota, Kircher publicou uma descrição detalhada da Arca de Noé e de todos os compartimentos necessários para acomodar as 310 espécies de animais que ele reconhecia. Esse número é pequeno, mesmo para a época (século XVII), pois se sabia que a diversidade biológica existente era muito maior. Para Kircher, a linguagem natural era a linguagem divina. Na sua obra Arca Noë, de 1675, ele tentou explicar o grande número que teria aparecido após o dilúvio universal através da existência de “cópula promíscua” (hibridação) entre as espécies animais que foram escolhidas por Noé para sua arca, apoiado no conceito nominalista de espécie. Durante os 40 dias e 40 noites que a arca de Noé ficou à deriva, os mais extraordinários intercursos sexuais do mundo animal devem ter acontecido. O leopardo (cujo nome latino é leopardus), por exemplo, seria o resultado do cruzamento entre o leão (leo) e a pantera (pardus). À junção dos nomes do leão e da pantera corresponderia o nome do leopardo. Esse cruzamento é até fácil de ser aceito. Díficil é pensar na cópula entre um camelo e uma pantera, que originaria, nas palavra de Kircher, o "camelopardo" ou girafa, ou no sexo dantesco entre um camelo e um pardal, que resultaria em um avestruz...



Talvez o conceito de espécie mais aceito, especialmente fora da academia, seja o biológico. Ele é ensinado desde o ensino fundamental e está arraigado em nossa percepção sobre o assunto. Dizemos que dois indivíduos são de uma mesma espécie se, ao cruzarem, tiverem descendentes também aptos à reprodução. O grande popularizador do conceito biológico foi o já citado Mayr mas ele não foi o primeiro a descrevê-lo. Quem o fez foi naturalista britânico John Ray (1635-1672). Trabalhando com plantas no seu Historia plantarum (1686-1704), para Ray, se dois ou mais indivíduos se originavam das sementes de uma mesma planta, eles seriam da mesma espécie, não importando o quanto de variação apresentassem. Muito mais próximo do conceito biológico moderno esteve o aristocrata francês George-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), que foi superintendente do Le Jardim du Roi (Jardim do Rei). No curso dos 44 volumes da sua Histoire Naturelle (História Natural), Buffon fez vários comentários - por vezes de forma confusa e contraditória - a respeito da sua concepção de espécie. Para ele, dois animais pertenceriam à mesma espécie se, através da cópula, eles pudessem se perpetuar; seriam de espécies diferentes se fossem incapazes de produzir filhotes. Segundo ele, no segundo volume do Histoire, "Saber-se-á que a raposa é uma espécie diferente do cachorro se for provado o fato de que, a partir do cruzamento de um macho e uma fêmea desses dois tipos de animais, nenhuma prole nascer; e mesmo que daí nasça uma prole híbrida, um tipo de mula, isso seria suficiente para provar que a raposa e o cachorro não são da mesma espécie - contanto que essa mula seja estéril. Assumimos que, para que uma espécie seja constituída, há necessariamente reprodução contínua, perpétua e invariável".

Para a perspectiva biológica, portanto, uma espécie corresponderia a um grupo de populações naturais que podem cruzar entre si e que permanecem reprodutivamente isoladas de outros grupos. Uma nova espécie adquire isolamento reprodutivo como resultado de um processo de especiação, que só se realiza quando da aquisição, por parte dessa espécie, de um novo, estabilizado e integrado genótipo (o conjunto de genes de um indivíduo), que a possibilitará adquirir, em grande parte dos casos, também um modo de vida particular no seu habitat.

Os mecanismos de isolamento de uma espécie funcionariam como instrumentos de proteção da integridade dos genótipos - sem eles, o cruzamento entre espécies diferentes levaria ao esfacelamento do equilíbrio dos genótipos, que seriam rapidamente extirpados pela seleção natural. A coesão interna das espécies é continuamente reforçada pelo cruzamento. Organismos que pertencem a uma espécie são parte da espécie, não membros dela (uma vez que a espécie, nesse sentido, não é uma classe). A compatibilidade de genótipos de parceiros co-específicos – documentada pela produção de novos genótipos viáveis na sua prole – indica que a população dessa espécie tem o tipo de “harmonia interna” que se esperaria encontrar em partes de um sistema único.

Todos sabem que as espécies não estão soltas no espaço. Elas localizam-se espaço-temporalmente, ocorrendo em locais e períodos específicos. Dentro dessa localização espaço-temporal, espécies correspondem a conjuntos contínuos de organismos, como comentara Buffon no século XVIII. Após o estabelecimento da teoria da evolução no século XIX, ficou clara que a continuidade entre as espécies era decorrente da sua conexão histórica (uma vez que todas as espécies compartilhariam um ancestral comum em algum nível). É interessante notar que o conceito biológico de espécie adequa-se bem à perspectiva da descendência com modificação preconizada pela teoria evolutiva. Nada aqui lembra o idéario platônico de essências fixas e transcendentais já que, se as espécies realmente portassem tais essências, a evolução gradual seria impossível. O fato da evolução mostra que as espécies não têm essências. Sendo assim, espécies podem ser caracterizadas pela presença de variação de organismos dentro de uma população, variação na distribuição geográfica das populações e variação no tempo (evolução).

Apesar do conceito biológico de espécie funcionar para grande parte dos grupos biológicos, com especial ênfase em animais que se reproduzem apenas de forma sexuada, ele encontra problemas quando da definição de bactérias - que trocam material genético livremente, umas com as outras, através de processos de transferência horizontal de porções do DNA -, protistas, vírus ou plantas (muitas das quais formam híbridos reprodutivamente aptos).

Segundo o conceito evolutivo, uma espécie é uma linhagem (uma seqüência de populações ancestrais-descendentes) que evolui separadamente, mantendo sua identidade, a partir de outras espécies. Como característica especial, ela possui tendências evolutivas - o que quer que isso signifique - e destino histórico particulares. Esse conceito foi modificado de idéias de George Gaylord Simpson (1902-1984) e E.O. Wiley, e é utilizado especialmente na paleontologia e também por sistematas que fazem análises filogenéticas. Como aponta Mayr no seu livro de 1988, a definição evolutiva de espécie utiliza termos vagos. O que significaria “manter sua identidade”? Isso implicaria na manutenção das barreiras geográficas? E “tendência evolutiva”? Para muitos, eu estou entre eles, “tendências” só poderiam ser observadas em reconstruções históricas com base em um registro fóssil completo e, ainda assim, seriam meramente descrições da evolução de uma dada linhagem e de alguns dos seus atributos. E o que seria um “destino histórico” particular?

Há uma profusão de outros conceitos. Alguns reconhecem que todas populações isoladas geograficamente constituem espécies distintas ou que uma espécie ancestral deixaria de existir a partir do momento em que uma noca espécie se originasse dela, remontando, de certa maneira, à sistemática filogenética de Willi Hennig (1913-1976). Para outros, uma espécie é a mais extensa unidade na economia natural na qual ocorre competição reprodutiva, por recursos genéticos, entre suas partes. Há ainda conceitos "aberrantes" como o de agamoespécie, exclusiva para grupos biológicos assexuais, como no caso da ocorrência de partenogênese em alguns animais e apomixia em plantas, quando se formam sementes sem fecundação.

No parágrafo final do Origem das espécies, Darwin disse que "há uma grandeza nessa visão da vida". Ele estava falando da sua perspectiva evolutiva de um mundo em constante modificação a partir de processos materialistas, que não necessitavam de nenhum tipo de Deus ex machina ou interventor sobrenatural. As muitas percepções sobre um único conceito, o de espécie, também cabem nessa visão grandiosa do mundo natural, uma visão científica que se baseia no teste de hipóteses e no levantamento de evidências que possam suportá-las. As descontinuidades presentes na natureza tornam óbvia a existência de espécies como entidades naturais. Identificá-las, no entanto, não é tão simples. Cabe à ciência, a partir de trabalho árduo e contínuo, criar formas de descortinar toda a sutileza do mundo natural. Conhecer a natureza das espécies é passo essencial para respondermos à célebre pergunta: "De onde viemos?".