quinta-feira, 14 de julho de 2011

Sobre darwinismo universal e vida em outros planetas

Os cientistas, portanto, estão acostumados a lidar com a dúvida e a incerteza. Todo conhecimento científico é incerto. Essa experiência com a dúvida e a incerteza é importante. Eu acredito que ela é de grande valor e se estende além das ciências. Eu acredito que para se resolver qualquer problema nunca resolvido antes, você tem que deixar a porta para o desconhecido entreaberta.
Richard Feynman em The meaning of it all (1998, p. 27)

Em uma recente discussão aqui na universidade, Letícia Alabi, estudante de graduação em Biologia e pesquisadora em Astrobiologia, perguntou:
Ao contrário das estrelas, que ainda nascem o tempo todo, as galáxias estão todas na primeira e única geração e com a mesma idade. Embora tenham colidido, fundido, fragmentando-se e se metamorfoseado em novas formas e cores, nenhuma nova galáxia nasceu desde que o cosmos era bebê. Nesse sentido (...) podemos extrapolar o Darwinismo Universal [e, consequentemente a idéia de seleção natural] à formação de estrelas e galáxias?
Desde a publicação do On the origin of species by means of natural selection por Charles Darwin, em 1859, uma série de autores têm tentado aplicar aspectos da teoria da evolução para explicar outros fenômenos naturais e sociais fora do espectro biológico propriamente dito. De estrelas e galáxias, passando pela economia, sociologia, antropologia e pela física das partículas elementares, é muito fácil encontrar os termos darwinismo e evolução fora de periódicos e livros dedicados às Ciências Biológicas. Seria isso uma evidência inquestionável do Darwinismo Universal, nos termos discutidos pelo biológico evolucionista Richard Dawkins em 1983? Considerada a questão de relance, essa poderia mesmo ser uma demonstração clara da pujança e do alto poder explanatório da teoria evolutiva. No entanto, ao analisarmos sob a lupa, fica claro o abuso intrínseco a essas extrapolações.

A ideia de Darwinismo Universal não tem nada a ver com a 'evolução' de galáxias ou estrelas. A universalidade, no caso, não significa que se pode aplicar o Darwinismo para compreender qualquer processo ou sistema que mude com o tempo. Ele, na verdade, é uma resposta à conjectura "Se existe vida em outros lugares do universo, esses organismos evoluem como evoluem os seres vivos da Terra?". Para se falar em evolução, no sentido biológico (que é aquele discutido por Darwin e Dawkins), é necessário considerar a existência de reprodução e metabolismo. O que Dawkins e outros autores defendem é que, se existe vida em qualquer lugar do universo, esses organismos sofrem pressões seletivas, devendo haver mudanças na sua constituição genética (independentemente de ser DNA, RNA, PNA ou qualquer outra molécula que carregue informação de uma geração para outra). Tais variações pré-existentes são fundamentais para a possibilidade de reprodução diferencial, i.e., seleção natural.

Segundo o filósofo Carl Emmeche (apud Darling, 2001, p. 10):
É altamente concebível que toda a vida no universo evolui por um tipo de seleção Darwiniana de interatores, cujas propriedades são em parte especificadas por um estoque de informações que pode ser replicado... A própria noção de seleção natural e replicação... parece ser específica para entidades biológicas... Essa definição é simples, elegante, geral, e cristaliza nossas idéias de um mecanismo geral da criação de sistemas vivos em uma perspectiva evolutiva.
Qual o mecanismo de informação de uma estrela? Ela tem DNA, RNA, PNA...? Estrelas só "evoluem" no sentido de mudança, não no sentido biológico. Utilizar o raciocínio evolutivo a qualquer coisa equivale, em termos de confiabilidade e relevância científica, a aplicar física quântica para explicar o comportamento humano, como celebrizado no filme "Quem somos nós" (no original inglês “What the bleep do we know”, de 2004) ou nas montanhas de bobagens esotéricas dos últimos anos que pretensamente utilizar conceitos de hard science, mas que, de fato extrapolam os resultados de pesquisas científicas muito além do contexto no qual haviam sido postulados inicialmente – para uma leitura instigante sobre abusos das ciências enfatizando a filosofia pós-moderna, leia “Imposturas intelectuais”, de Alan Sokal e Jean Bricmont (2010).

Para Dawkins (1983):
A perspectiva universal me leva a ressaltar a distinção entre o que pode ser chamado ‘seleção uma única vez’ [tradução livre para one-off selection] e ‘seleção cumulativa’. A ordem no mundo não-vivo pode resultar de processos descritos como um tipo rudimentar de seleção. Os seixos à beira-mar são organizados pelas ondas, de forma que os grandes seixos acabam se dispondo em camadas separadas dos menores. Podemos considerar isso um exemplo de seleção de uma configuração estável a partir de uma maior desordem aleatória inicial. O mesmo pode ser dito dos padrões orbitais ‘harmoniosos’ dos planetas ao redor das estrelas, dos elétrons em torno dos núcleos, dos formatos dos cristais, bolhas, das gotículas e até mesmo da dimensionalidade do universo em que nos encontramos (...) Mas isso é ‘seleção uma única vez’. Ela não dá origem à evolução contínua porque não há replicação nem sucessão de gerações. Adaptação complexa requer muitas gerações de seleção cumulativa, sendo a mudança de cada geração construída a partir do que havia antes. Na ‘seleção uma única vez’, um estado estável se desenvolve e é mantido. Ele não se multiplica ou gera prole.

Na vida, a seleção que acontece em uma geração é ‘seleção uma única vez’ análoga à organização dos seixos na praia. A característica peculiar da vida é que gerações sucessivas de tal seleção desenvolvem, progressiva e cumulativamente, estruturas que são eventualmente complexas o suficiente para criar a forte ilusão de design. ‘Seleção uma única vez’ é um lugar comum da física, e não pode originar complexidade adaptativa. Seleção cumulativa é a marca registrada da biologia e é, eu acredito, a força subjacente a toda complexidade adaptativa.
No mesmo artigo, Dawkins pondera sobre o fator limitante para a vida no universo. Na opinião dele, “se uma forma de vida apresenta complexidade adaptativa, ela deve possuir um mecanismo evolutivo capaz de gerar complexidade adaptativa. Independentemente de quais sejam esses mecanismos evolutivos, se alguma generalização puder ser feita sobre a vida no universo, eu aposto que ela sempre será reconhecida como vida Darwiniana”.


Muitos podem discordar da visão de Dawkins. Sim, certamente a vida em outros planetas pode ser muito distinta do que concebemos hoje em dia. Nas palavras do físico e astrônomo David Darling (2001, p. 12), “a vida em outros lugares pode ser tão estranha que, se basearmos nossas expectativas muito rigidamente em padrões terrestres, nós talvez tenhamos problemas em reconhecê-la”. No entanto, ele continua (p.13, o grifo é dele), “A abordagem adotada pela comunidade científica é simples, direta e prática: procurar pelo tipo de vida que conhecemos, com possíveis adaptações para diferentes ambientes”. Ou seja: se podemos identificar vida em outros planetas, ela deve estar dentro dos limites que definimos como vida, certo? Se sim, podemos dizer que, dada a existência de vida alienígena (uma vez que fomos capazes de identificar um organismo extraterrestre como tal), ela evolui da mesma forma que algo na Terra. Isso não significa, porém, que coisas completamente diferentes do que consideramos a priori não possam existir. Mas, se existirem, como conseguiremos dizer que são vivos, se não se encaixam na nossa definição pré-estabelecida?

No geral, o que fazemos é extrapolar nossa Biologia para o universo. Mesmo que outras Biologias existam, por mais que estejam debaixo dos nossos narizes, provavelmente não temos (ainda) a competência para identificá-las. A não ser, obviamente, que estendamos nossos conceitos, para que sejamos capazes de desvendar formas alternativas de vida (alienígenas), talvez presentes mesmo no nosso planeta, na chamada “biosfera sombria”.

A busca por uma conexão íntima entre a origem da vida na Terra e o Cosmo pode ser o início de uma “teoria geral da Biologia, uma estrutura de conceitos que sustentaria o desenvolvimento da vida onde quer que ela exista” (Darling, 2001, p. xiii). Essa conexão cósmica “não apenas ajudaria a explicar alguns dos problemas mais agudos da nossa Biologia e a extrema velocidade com que a vida se disseminou aqui. Ela também sugeriria que outras formas de vida no universo poderiam compartilhar muito da mesma base química” (Darling, 2001, p. 50).

É claro que não podemos ser arrogantes a ponto de considerar que chegaremos de fato a responder quais são as condições para a vida em todo o universo. Ainda desconhecemos muito do nosso próprio planeta! Astrobiologia é sobre saber se podemos extrapolar as condições que reconhecimentos como essenciais para a existência de vida para o restante do universo. Precisamos aceitar a limitação de que só podemos identificar o que podemos identificar... A Astrobiologia não vai ser capaz de dizer, de forma peremptória, como aparece a vida em qualquer parte do cosmo. Vai apenas criar possibilidades, metodologias e técnicas para saber se, fora da Terra, existem formas de vida como dentro da Terra (ou pelos como concebíveis pela nossa espécie).

Mesmo a tentativa de extrapolar a nossa Biologia para o resto do universo é extraordinariamente válida e interessante. É uma questão crucial e com implicações sociais e filosóficas gigantescas. Mas temos que ter a dimensão exata da nossa ignorância e da nossa condição diminuta frente ao Cosmos. É o que o físico prêmio Nobel Richard Feynman dizia "A imaginação da natureza é muito, muito maior que a imaginação do homem. Todos que não tiverem ao menos uma idéia vaga dessa observação não poderem nem imaginar quão maravilhosa a natureza é” (Feynman, 1998, p. 10).

Essa não é uma "visão utilitarista" da ciência, como alguns podem pensar. Penso na ciência como um conjunto de ferramentas e visões de mundo que desenvolvemos para compreender a vida, o universo e tudo mais. Penso, no entanto, que é dever dos cientistas conhecer suas limitações e o escopo do seu trabalho, por mais amplo que seja, sempre buscando extrapolar sua perspectiva circunscrita para fazer avançar o conhecimento. Ainda nas palavras de Feynman (1998, p. 24), “(...) as extrapolações são as únicas coisas que tem algum valor [científico] real”.

Partir do pressuposto que vamos conseguir todas as respostas e que já temos condições de chegar a elas me parece uma grande presunção (esse foi o erro da Física do final do século XIX, pouco antes do aparecimento da teoria da relatividade e da física quântica). Para o paleontólogo e evolucionista Stephen Jay Gould (1987, p. 19):
É importante que nós, cientistas atuantes, combatamos esses mitos da nossa profissão que a colocam como algo superior e à parte. (...) a longo prazo, a ciência só poderá vir a ser prejudicada por sua autoproclamada distinção como um sacerdócio capaz de preservar um rito sagrado conhecido como o método científico. A ciência é acessível a todos os seres pensantes porque aplica os instrumentos universais do intelecto aquilo que é o seu material distintivo. Entender a ciência - e nem seria preciso repetir a litania - torna-se cada vez mais crucial num mundo de biotecnologia, computadores e bombas.
Conviver com as incertezas, nunca perder o “senso de maravilhamento” perante o universo e observar (mas nem tanto) o rigor da formalização são premissas da ciência válidas para qualquer um que queira compreender a natureza e suas idiossincrasias.

Referências sugeridas:
Darling, D. (2001) Life everywhere: the maverick science of Astrobiology. Basic Books, New York.
Feynman, R.P. (1998) The meaning of it all: thoughts of a citizen scientist. Helix Books, Massachusetts.
Dawkins, R. (1983) Universal Darwinism. Em: Bendall, D.S. (ed.) Evolution from molecules to man. Cambridge University Press, 403–425.
Gould, S.J. (1981) [1987] Seta do tempo, ciclo do tempo: mito e metáfora na descoberta do tempo geológico. Companhia das Letras, São Paulo.
Sokal, A. & Bricmont, J. (2010) Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Editora Record, São Paulo.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Um gênio matemático fala sobre o ensino

Em 1831, então com 20 anos, o matemático francês Évariste Galois, publicou um artigo no Gazzete des écoles intitulado "Sobre o ensino de ciências, os professores, os trabalhos, os examinadores". Galois, que morreria precocemente aos 21 anos, foi um dos pioneiros na teoria de grupos, fundamental para a compreensão do conceito de simetria.

O texto de Galois, segundo Mario Livio (2008, p. 152), foi "um manifesto impressionante exigindo uma reforma completa no ensino das ciências". Livio seleciona dois trechos do artigo, que reproduzo aqui (apesar de falarem da realidade da França do século XIX, são absolutamente atuais. Os grifos são meus):
Até quando os pobres jovens serão obrigados a ouvir ou a repetir o dia inteiro? Quando lhes será concedido algum tempo para refletir sobre esse acúmulo de conhecimento, para ser capaz de coordenar essa infinidade de proposições, nestes cálculos sem relação? (...) Os alunos estão menos interessados em aprender e mais interessados em passar nos exames.

Por que os examinadores não propõem aos candidatos perguntas formuladas de uma outra maneira que não ludibriosa? Parece que eles temem ser compreendidos por aqueles a quem estão interrogando: qual é a origem desse deplorável hábito de complicar as perguntas com dificuldades artificiais?
Esses fragmentos vão ao encontro de alguns dos resultados apresentados em um artigo recente, publicado na revista Science (Deslauriers et al., 2011), que mostra como aulas baseadas em atividades e resolução de problemas, i.e., em um comportamento ativo do aluno, são mais eficientes que aulas tradicionais, nas quais apenas o professor fala.

Sobre a obra de Mário Livio, ela faz uma síntese do pensamento matemático e político de Galois e também discute interessantes aspectos do papel das simetrias nas ciências naturais. São pouco mais de 300 páginas ágeis e escritas em uma linguagem atraente, a despeito da presumida aspereza do tema.

Referências:
Deslauriers, L., Schelew, E. & Wieman, C. 2011. Improved learning in a large-enrollment physics class. Science 332, 862-864. DOI: 10.1126/science.1201783.
Livio, Mário. 2008. A equação que ninguém conseguia resolver: como um gênio da matemática descobriu a linguagem da simetria. Editora Record, Rio de Janeiro.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Escolas acabam com a criatividade



Sir Ken Robinson é um autor britânico, conselheiro internacional em educação. Sua palestra na conferência TED (Technology Entertainment and Design), em 2006, nos faz pensar como o nosso sistema educacional é um poderoso instrumento para acabar com a criatividade das crianças...
A palestra pode ser assistida no endereço abaixo (com legendas em português):
http://www.ted.com/talks/lang/por_br/ken_robinson_says_schools_kill_creativity.html

terça-feira, 26 de abril de 2011

Não se ensina ciência no Brasil!

Ainda Feynman e o ensino...


A notícia veiculada recentemente sobre a posição do Brasil no ranking da educação feito pela Unesco (88º em 127 países analisados!) vai ao encontro do cenário apresentado pelo físico ganhador do Nobel Richard P. Feynman quando da sua passagem por aqui, na década de 1950. Os trechos são do Surely you’re joking, Mr Feynman! (1985), traduzido para o português como Deve ser brincadeira, Sr. Feynman! e lançado em 2000 pela Editora da Universidade de Brasília. As ênfases são minhas.


“Depois de muita investigação, finalmente descobri que os estudantes tinham decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer”.
p. 238

“Então, você vê, eles podiam passar nas provas, ‘aprender’ essa coisa toda e não saber nada, exceto o que eles tinham decorado”.
p. 239

“Uma outra coisa que nunca consegui que eles fizessem foi perguntas. Por fim, um estudante explicou-me: ‘Se eu fizer uma pergunta para o senhor durante a palestra, depois todo mundo vai ficar me dizendo: Por que você está fazendo a gente perder tempo na aula? Nós estamos tentando aprender alguma coisa, e você o está interrompendo, fazendo perguntas’.
Era como um processo de tirar vantagens, no qual ninguém sabe o que está acontecendo e colocam os outros para baixo como se eles realmente soubessem. Eles todos fingem que sabem e se um estudante faz uma pergunta, admitindo por um momento que as coisas estão confusas, os outros adotam uma atitude de superioridade, agindo como se nada fosse confuso, dizendo aquele estudante que ele está desperdiçando o tempo dos outros.
Expliquei a utilidade de se trabalhar em grupo para discutir as dúvidas, analisá-las, mas eles também não faziam isso porque estariam deixando cair a máscara se tivessem de perguntar alguma coisa a outra pessoa. Era uma pena! Eles, pessoas inteligentes, faziam todo o trabalho, mas adotaram essa estranha forma de pensar, essa forma esquisita de autopropagar a ‘educação’, que é inútil, definitivamente inútil!”.
p. 240-241

“Daí eu disse: ‘O principal propósito da minha apresentação é provar aos senhores que não se está ensinando ciência alguma no Brasil’”.
p. 242

“Por fim, eu disse que não conseguia entender como alguém podia ser educado neste sistema de auto-propagação, no qual as pessoas passam nas provas e ensinam os outros a passar nas provas, mas ninguém sabe nada”.
p. 244

“O outro estudante que havia se saído bem em sala de aula tinha algo semelhante a dizer. O professor que eu havia mencionado levantou-se e disse: ‘Estudei aqui no Brasil durante a guerra quando, felizmente, todos os professores haviam abandonado a universidade: então aprendi tudo lendo sozinho. Dessa forma, na verdade, não estudei no sistema brasileiro’.
Eu não esperava aquilo. Eu sabia que o sistema era ruim, mas 100 por cento – era terrível!”.
p. 244



O ensaio 'O americano, outra vez', do qual forem extraídos esses trechos, deveria ser leitura obrigatória tanto para docentes quanto para alunos de ciências de qualquer escola brasileira.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Richard Feynman e suas aulas

Do Epílogo de The Feynman Lectures on Physics (1964):

Finally, may I add that the main purpose of my teaching has not been to prepare you for some examination - it was not even to prepare you to serve industry or the military. I wanted most to give you some appreciation of the wonderful world and the physicist's way of looking at it, which, I believe, is a major part of the true culture of modern times. (There are probably professors of other subjects who would object, but I believe that they are completely wrong).
Perhaps you will not only have some appreciation of this culture; it is even possible that you may want to join in the greatest adventure that the human mind has ever begun.
Em tradução livre:

Finalmente, posso acrescentar que o propósito principal das minhas aulas não foi prepará-los para alguma prova - nem de prepará-los para servir à indústria ou aos militares. O que eu mais queria era lhes dar um vislumbre do mundo maravilhoso e de como um físico olha para ele, que, eu acredito, é uma parte importante da verdadeira cultura dos tempos modernos. (Provavelmente existem professores de outras matérias que objetariam, mas acredito que eles estejam completamente errados).
Talvez vocês não apenas tenham um vislumbre dessa cultura; é até mesmo possível que queiram se juntar à maior aventura que a mente humana jamais começou.
Você certamente não estava brincando, Sr. Feynman!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Somos todos ateus

Pensem sobre as coisas perversas que são decretadas pela religião. A mutilação dos genitais de crianças, por exemplo. Quem faria isso, se não fosse, visivelmente, uma promessa selada com Deus? Quem iria dizer, ao receber um recém-nascido, ‘Parece perfeito, mas precisa ser mutilado na genitália antes de ficar realmente ok’? Somente a religião levaria as pessoas a fazer algo tão horrível, tão insano.
Christopher Hitchens, “Deus não é grande” (2007)

A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece.
Philip K. Dick em “How To Build A Universe That Doesn't Fall Apart Two Days Later” (1978)


É concebível um cientista natural, como um biólogo, acreditar
em Deus? Na minha opinião, sim, é concebível. Nem todos concordam, mas acredito que um biólogo pode acreditar em poderes divinos, assim como também tem o direito de torcer por qualquer time em qualquer campeonato de futebol (tenho um amigo zoólogo que torce por uma equipe diferente em cada estado em que já morou – e foram muitos! –, sempre com a mesma paixão) ou de preferir jazz ao rock. No entanto, cientistas naturais que escolhem o caminho ambíguo da fé no sobrenatural precisam estar cientes das contradições que essa escolha pode acarretar.

Será mesmo que, como disse o escritor francês Gustave Flaubert (apud Hitchens, 2011), o homem só mantém sua sanidade dadas as suas contradições?

O saudoso paleontólogo e evolucionista Stephen Jay Gould, em 1999, advogou arduamente em prol da existência do que ele chamou de magistérios não-interferentes (do inglês Non-Overlapping Magisteria), que seriam dois – a ciência e a religião –, ambos formas válidas do conhecimento humano, cada qual com seu próprio sistema de valores, objetivos e visões de mundo, os quais, se respeitadas as idiossincrasias de cada um dos lados, não deveriam se sobrepor e, conseqüentemente, não entrariam em conflito (pelo menos não em um querela aberta). Por tentar conciliar duas perspectivas um tanto distintas, o pensamento de Gould por vezes cai em um relativismo, senão covarde, no mínimo ingênuo (para o jornalista Juan Luis Cebrián em “O pianista no bordel”: “nada é verdade nem mentira, tudo depende do vidro através do qual se olha”. A frase, dita em um debate sobre a mídia impressa, parece-me retratar de forma mais ou menos fidedigna uma concepção corrente nas ciências humanas e também em certas áreas das ciências naturais. Esse tipo de ponto-de-vista vai contra todo o empreendimento científico humano, desde sua aurora em tempos não registrados pela história). Tratei de forma abreviada sobre o assunto no ensaio “Deuses e novos sacerdotes”.

Há 150 anos a teoria da evolução de Darwin-Wallace vem questionando a religião, com especial ênfase no monoteísmo cristão baseado em um Deus interventor, através da defesa inabalável da irrelevância de aspectos não-materiais para a explicação da realidade observada no mundo natural. Em suma: deuses não são necessários para explicar como os organismos evoluem no tempo e no espaço. Para o filósofo evolucionista Michael Ruse, “[a teoria da evolução] fornece um estímulo positivo e criativo para que um religioso pense sobre sua fé e avance para um caminho mais rico e profundo” (Ruse, 2006, p. 4). Se a fundamentação das ciências biológicas é a teoria da evolução, e se ela defende explicitamente a não-necessidade de qualquer intervenção sobrenatural no processo evolutivo de descendência com modificação, apelar para o divino é ser contrário ao evolucionismo (ou, no mínimo, contraditório em relação ao que apresenta a teoria evolutiva).

“Graças a Deus meu filho nasceu perfeito e com saúde!” – quem nunca ouviu essa frase? Se você considera o mundo natural como resultado da evolução que ocorre desde os primórdios da vida, sabe que isso não faz o menor sentido: as recombinações cromossômicas e as mutações do DNA não dependem de nenhum “dedo” super-poderoso vivendo no céu inatingível! Deus não controla a embriogênese, o processo através do qual o embrião é formado e se desenvolve. E se o nosso filho apresentasse alguma má formação (pequena ou grande, não importa), alguém diria “Graças a Deus meu filho nasceu com essa má formação!”? Acho improvável.

Se lembrarmos das várias tragédias recentes no Rio de Janeiro, esse tipo de raciocínio é repetido ad nauseam. “Deus me ajudou e sobrevivi às enchentes”. E aqueles que morreram, foram esquecidos? Pode-se argumentar que a hora daqueles que pereceram havia chegado. Bem, se o momento da morte estava pré-definido, Deus não ajudou ninguém, não é mesmo? “Se Ele quiser, vou reconstruir minha vida”. Não se pode racionalizar a respeito da fé mas, se o supremo criador é onipotente e onipresente, é de extraordinária crueldade e infinito sarcasmo permitir desgraças como as do começo desse ano (como não sentir enojado com um pai que causa o terror extremo em seus filhos sabendo que eles vão se curvar em devoção e agradecer por terem sido poupados “do pior”?).

Exemplos, dos mais cretinos aos mais complexos, da nossa falta de raciocínio lógico estão em todos os lugares. Se você está com dor de cabeça, vai tomar um analgésico ou rezar um pai nosso? Talvez alguns fundamentalistas bíblicos como os Testemunhas de Jeová, que não aceitam transfusões de sangue mesmo que tenham necessidade imediata dela para sua sobrevivência, já que Bíblia declara “abstende-vos de sangue" (Actos 15:29), possam compactuar dessa insanidade. Mas quem, de posse de suas faculdades mentais completas, defenderia orações em detrimento à medicina tradicional?

A despeito das predileções de cada um, livros como “Quebrando o encanto” (edição original de 2006), do filósofo evolucionista Daniel Dennett, “Deus, um delírio” (2006), do biólogo Richard Dawkins, “Deus não é grande” (2007), do jornalista Christopher Hitchens, “Por que não sou cristão” (1957), do laureado com o Nobel de Literatura Bertrand Russell e mesmo “Pilares do tempo” (1999), do supracitado S.J. Gould, são todos eles sugestões de leitura preciosas trazendo visões pessoais (não apenas centradas nas ciências naturais) das incongruências entre o pensamento científico e o religioso. Poucas centenas de anos atrás, apenas respirar perto desses livros seria motivo suficiente para uma condenação ao suplício dos tribunais da “Santa” Inquisição...

Ian McEwan, um dos maiores romancistas britânicos vivos, disse em uma entrevista para a revista Believer em 2005: “Não sou contra a religião no sentido de que me parece impossível tolerá-la, mas acho que a evidência de sua verdade está inscrita nas suas normas. E como existem, atualmente, seis mil religiões na face da Terra, todas não podem estar certas”. Sim, seis mil religiões! Talvez o número seja ainda maior. Se há tantas crenças, a maioria absoluta (senão todas) tem que estar erradas. Pensem: somos todos ateus! Você acredita em Shiva, o Destruidor, Brama, o Criador, ou Vishnu, o Preservador? Caso não seja crente no hinduísmo, muito provavelmente não. Portanto, você é um ateu, diria Dawkins. Por que um deus monoteísta é melhor do que muitos deuses? Estando no Ocidente, é fácil pensar dessa maneira. “Mas o meu deus é o real, o meu deus é o verdadeiro criador dos céus e da terra”. Não consigo perceber a diferença entre esse discurso e aquele que ouvimos em um jogo de futebol: “Meu time é melhor que o seu”...

A ciência não é livre de críticas, claro. Virou clichê falar do seu potencial destruidor – vide as intermináveis discussões acerca do aquecimento do planeta nos últimos anos, resultado do desenvolvimento tecnológico explosivo, e das flutuações nos mercados clandestinos de armas nucleares. Realmente, o homem criou instrumentos capazes de aniquilar praticamente toda a vida macroscópica da Terra algumas centenas de vezes. Mas, se pensarmos com cuidado, veremos que a capacidade de provocar o mal é do homem, a despeito da sua atividade ou crença! Diz-se que o mundo está a cada dia pior. Basta consultar a história para perceber que a idéia não procede. “As pessoas são mais cruéis, os assassinatos aumentam, ninguém mais se respeita no planeta”. Mais uma vez, a história desmente: até o final do século XIX havia escravidão nas Américas (havia respeito?)! Os reis absolutistas tinham poder de deuses (curiosamente, nunca faziam milagres como multiplicar pães ou fazer chover em áreas secas) e não toleravam qualquer dissidência, assassinando até mesmo conselheiros próximos em momentos oportunos. A expectativa de vida na Antiguidade era menor que 50 anos – a assepsia, as vacinas, os antibióticos e o desenvolvimento da medicina não foram óbvias melhorias para os cidadãos de todo o planeta que têm acesso a elas? O discurso apocalíptico risível e carregado de estupidez que estamos ouvindo – e que vai entulhar de lixo a televisão, a internet, os jornais e as livrarias de forma ainda mais acintosa neste e no próximo ano –, que estabelece como final dos tempos o mês de dezembro de 2012, baseia-se em uma série de correlações tão espúrias que mereceriam pouca atenção se não fossem levadas a sério por um montante tão expressivo de pessoas. Para estes, o passado foi indiscutivelmente mais justo e luminoso, enquanto o futuro reserva apenas trevas e dor para nossa espécie.

A nostalgia do que não foi vivido não passa de fuga da realidade presente, claro. As sociedades humanas fazem guerras desde seu surgimento – existem grupos de chimpanzés que lutam uns com os outros, matando de maneira impiedosa seus adversários para expandir seu território, o que mostra como esse tipo de comportamento remonta há milhões de anos, tendo aparecido talvez antes mesmo do ancestral comum entre chimpanzés e hominídeos –, independentemente de possuírem armas de destruição maciça ou tacapes feitos com pedra lascada. As motivações são muitas (inclusive, e notadamente, religiosas) e não vão cessar na “era de Aquário”, pelo menos não por conta de rezas, orações, sacrifícios aos deuses ou perseguições aos “não-crentes”.

Um alívio: se a lógica econômica/social/política do século XXI continuará tendo por base o capitalismo, há pouco motivo para pânico, já que a inscrição “In God We Trust” está estampada em toda nota de dólar americano. “Em Deus confiamos”. Mas em qual deus?


Literatura recomendada
  • Bowler, P. 2003. Evolution: the history of an idea. University of California Press.
  • Darwin, C. 1859. On the origin of species by means of natural selection or the preservation of favored races in the struggle for life. Editora Murray.
  • Dawkins, R. 2006. Deus, um delírio. Companhia das Letras.
  • Dennett, D. 2006. Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural. Editora Globo.
  • Gould, S.J. 1999. Pilares do tempo. Ciência e religião na plenitude da vida. Editora Rocco.
  • Hitchens, C. 2007. Deus não é grande. Como a religião envenena tudo. Ediouro.
  • Hitchens, C. 2011. Hitch-22. A história de um dos intelectuais mais admirados e controversos do nosso tempo. Editora Nova Fronteira.
  • Ruse, Michael. 2006. Darwinism and its discontents. Cambridge University Press.
  • Russell, B. 2008 [1957] Por que não sou um cristão. Editora L&PM.
  • Sagan, C. 2006. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras.

sábado, 15 de maio de 2010

Tragédia taxonomômica no Butantan

Um incêndio nessa manhã de sábado (15/05) destruiu a maior parte da coleção de serpentes, aranhas e escorpiões do Instituto Butantan, na cidade de São Paulo.

Mais de 100 anos de serviços prestados à ciência (em especial à sistemática) da região Neotropical consumidos em poucas horas... Não há palavras para expressar o sentimento de um taxônomo frente à essa situação.

Leia mais em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u735622.shtml

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Como criar um universo 2

Um dia, uma universitária do Canadá me pediu para definir a realidade para ela, para um trabalho que estava escrevendo para sua classe de filosofia. Ela queria uma resposta em uma frase. Eu pensei sobre isso e finalmente eu disse:
"A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece."
Isso foi em 1972. Desde então eu não tenho sido capaz de definir a realidade mais lucidamente.
de Philip K. Dick em How To Build A Universe That Doesn't Fall Apart Two Days Later (1978)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Como criar um universo


"A ferramenta básica para se manipular a realidade é a manipulação das palavras. Se você puder controlar o significado das palavras, você poderá controlar as pessoas que precisam delas"

de Philip K. Dick em How To Build A Universe That Doesn't Fall Apart Two Days Later (1978)

Philip Kindred Dick (16 de Dezembro de 1928, 2 de Março de 1982) foi um escritor norte-americano, autor de obras como Do Androids Dream of Electric Sheep (1966), que deu origem ao filme Blade Runner (1982), e O Homem do Castelo Alto (1962), que conta uma história alternativa pós-Segunda Guerra Mundial, em um mundo dominado pelo nazismo.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Religulous

Acabei de assistir ao documentário Religulous, de 2008, dirigido por Larry Charles, escrito e apresentado pelo comediante norte-americano Bill Maher. O filme foi indicação do saudoso Dedalus (do blog Atlas) durante uma conversa nos corredores da universidade em que lecionamos. Abusando do sarcasmo, Maher faz um trabalho semelhante ao de Richard Dawkins no documentário “The Root of All Evil” (uma síntese das idéias presentes em “Deus, um Delírio”), porém com maior ênfase nos aspectos cômico-trágicos das crenças religiosas. Em tom satírico, nem por isso pouco sério ou raso, o sujeito mostra que, se interpretadas literalmente, muitas das religiões não passam de arremedos de péssimas histórias de ficção.

Segue o trailer do documentário:



Algumas passagens do filme são marcantes:

(...) a religião deve morrer para a humanidade sobreviver. Está ficando tarde demais para deixarmos decisões tão importantes serem tomadas por religiosos, por irracionalistas, por aqueles que tomariam as decisões do estado não com uma bússola, mas pelo equivalente à leitura das tripas de uma galinha
“A religião é perigosa porque permite aos seres humanos, que não têm todas as respostas, acreditar que eles as têm”
“A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas
A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas
É por isso que pessoas racionais, anti-religiosas, devem perder a timidez, sair do armário e se expressar. E os que se consideram moderadamente religiosos precisam olhar no espelho e reconhecer que o alívio e conforto que a religião lhes traz na verdade vem a um custo muito alto. Se você pertencesse a um partido político ou a um clube social que estivesse ligado a tanta inveja cega, ódio a mulheres, homofobia, violência e desvio de ignorância como é a religião, resignar-se-ia em protesto. Agir de outra forma é ser um conivente, uma esposa da máfia, com os verdadeiros demônios do extremismo que extraem legitimidade dos bilhões de seus companheiros de viagem
Se o mundo chegar ao fim aqui ou em qualquer lugar, ou se avançar com dificuldades no futuro, dizimado pelos efeitos de uma religião inspirada pelo terrorismo nuclear, vamos lembrar qual era o verdadeiro problema. Que aprendemos a precipitar a morte em massa antes de superarmos o distúrbio neurológico do desejo por isso. É isso. Crescer ou morrer
Ao terminar de assistir ao "Religulous", veio a minha mente um conto de Isaac Asimov (1920-1992), um dos mais prolíficos divulgadores das ciências e grande escritor de ficção científica (lembro-me bem que a morte de Asimov, quando eu tinha 12 anos, provocou-me uma inexplicável sensação de vazio. Guardo até hoje a primeira página do Caderno 2 com a notícia triste). A história curta é "Ao cair da noite" (Nightfall), publicada originalmente em 1941 na revista Astounding Science Fiction. Um trecho em especial me chama a atenção sempre que releio o conto:

“__ (...) A sua suposta explicação apóia os nossos dogmas mas, ao mesmo tempo, torna-os desnecessários. O senhor transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isso é uma blasfêmia!
__ Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
__ Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
__ Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
__ Eu sei!”
Crescer ou morrer.

sábado, 6 de março de 2010

Apenas humanos

“(...) as teorias científicas são interpretações daquilo que percebemos e acreditamos existir no mundo dos fenômenos naturais. O mundo não oferece, de maneira clara, perceptível e inequívoca, os elementos necessários para que possamos compreendê-lo. Nenhuma teoria científica pode se pretender capaz de reproduzir integral e fidedignamente os fenômenos naturais. Toda e qualquer teoria científica, independendo do seu domínio de aplicação, é uma representação da natureza.”
Antonio Augusto Passos Videira (2000), Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

“(...) todos os que deliberam sobre um caso duvidoso devem ser isentos de ódio, de amizade, de ressentimento e de compaixão: aquele obnubilado por essas prevenções tem muita dificuldade de discernir a verdade, e nunca alguém serviu ao mesmo tempo sua paixão e seus interesses. Se vosso espírito é livre, ele pode tudo. Se a paixão o possui, ela domina, e a inteligência nada mais pode.”
Caio Júlio César (5 de dezembro de 63 a.C.), imperator e ditador vitalício de Roma

A linguagem da ciência, como qualquer produto do intelecto humano, é mais do que apenas uma replicação do mundo. Em seu bojo, ela traz objetivos, intenções, desejos e conhecimentos prévios, que partem da premissa de que os discursos dos cientistas sobre a natureza – suas teorias – devem estabelecer diretamente relações de correspondência com a natureza sendo descrita. Assim, os conceitos utilizados pela ciência referem-se ao mundo. Nos últimos tempos, em algumas de minhas aulas ou em correspondências de alunos e curiosos, tenho sido reiteradamente perguntado se acredito que o ponto de vista científico é capaz de explicar a realidade. Minha resposta não poderia ser outra: sim. No entanto, isso não significa dizer que apenas o discurso científico é capaz de expressar o assombro dos homens perante a natureza, em suas mais diferentes manifestações. Além disso, qualquer cientista no século XXI sabe que nossa espécie apenas engatinha na tentativa de compreender o que observamos à nossa volta.


Não conhecemos detalhadamente a constituição de grande parte do universo. Há questões fundamentais pairando sobre assuntos tão díspares quanto a constituição da matéria escura, como se formam buracos negros, se existem “buracos de minhoca”, qual o discreto charme das partículas elementares, como são as interações entre as forças (fraca, forte, gravitacional e eletromagnética) na sua totalidade, se as supercordas compõem o tecido do cosmo, como se parecem os multiversos, onde e como nascem as estrelas... O quadro não se torna muito mais claro quando ao nos aproximarmos do que nos parece mais tangível. Temos várias hipóteses para explicar a origem da vida, muitas delas plausíveis (algo indesejável, uma vez que apenas uma dessas teorias pode estar correta). Qualquer um que acompanha a literatura técnica sabe que existem diversas reconstruções possíveis sobre como se deu a evolução das espécies desde a aurora dos seres vivos. Ainda não compreendemos o que nos estimula a amar e odiar, o que causa a empatia entre pessoas, quais os fatores que possibilitaram o desenvolvimento do nosso complexo comportamento social. Sabemos muita coisa, o que é pouco (pouquíssimo) perante a grandeza de um universo com no mínimo 15 bilhões de anos de idade. O Homo sapiens é uma espécie nova, perdida, cheia de medos e dúvidas, muitas das quais dificilmente serão respondidas antes da nossa extinção.


Cientistas estão à procura de evidências. Richard Dawkins, em sua entrevista na Feira Literária de Paraty (no Rio de Janeiro), ano passado, disse que, se confrontado com Deus (na possibilidade de que ele exista) às portas do céu (ou do inferno?), ele diria algo como “Desculpe-me, Deus, mas simplesmente não havia evidências suficientes”. Para a ciência, testemunhos não são evidências fortes, por vezes nem mesmo sugerem possíveis caminhos a se percorrer para a resolução de algum problema. Válidos nos tribunais, testemunhos pouco podem fazer no contexto do escrutínio científico. A ciência deve ser falseável e repetível e observadores independentes precisam chegar aos mesmos resultados previstos na hipótese inicial. Argumentos de autoridade, baseados exclusivamente na presumida experiência dos envolvidos, devem ser extirpados do discurso científico como tumores malignos. Na biologia, a questão da autoridade imiscuiu-se em áreas de pesquisa tão importantes quanto a taxonomia tradicional, com resultados vexatórios. Em “Biologia, uma ciência única” (publicado no Brasil em 2006), o ornitólogo Ernst Mayr escreveu que a teoria da tectônica de placas não causara grande impacto nas ciências biológicas. Um dos grandes evolucionistas do século passado e dispersalista confesso, com enorme dificuldade em aceitar que os continentes nem sempre estiveram na posição em que se encontram no presente, Mayr simplesmente desconsiderou quase 100 anos de pesquisa geológica e de evidências cumulativas que corroboram a hipótese inicial de Alfred Wegener (1880-1930), um dos primeiros defensores abertos da deriva continental. Mayr também nunca aceitou a sistemática filogenética de Willi Hennig (1913-1976). Por maior que tenha sido a contribuição do velho ornitólogo para a teoria da evolução, utilizar de argumentos de autoridade, tão refinados quanto “eu sei e você não”, é procedimento anticientífico. Com eles, corremos o risco de manipulações, falta de coerência, vaidade excessiva ou mesmo de incorrermos em falhas inconscientes (nem por isso menos irrelevantes).

Há inúmeros relatos de testemunhos de OVNIs, estátuas que choram sangue ou lágrimas verdadeiras, aparições de santos, espíritos, fantasmas, ou milagres. Muitos – talvez a grande maioria, como aponta Carl Sagan em “O mundo assombrado por demônios” (publicado no Brasil pela primeira vez em 1996 e ainda em catálogo) – são frutos de fraudes explícitas. Outros não. Alguém que passou por alguma dessas experiências aparentemente inexplicáveis pode se perguntar: "Como assim? Eu VI essas coisas!". Será mesmo? Nossas observações nunca são livres de hipóteses prévias. Muitas vezes, vemos apenas o que queremos, ou o que o entorno nos sugere. Pessoas em grupos de religiosos (ou fanáticos torcedores de futebol ou amantes da arte ou seguidores de uma tendência política ou cientistas em um congresso de sua área) tendem a adotar linhas de pensamento mais ou menos semelhantes. Como dito acima, comportamentos como o de manada, em que todos correm para o mesmo lado como búfalos fugindo de leões, nem sempre surgem a partir de elucubrações conscientes.

E curas milagrosas? O sujeito entra enfermo em uma igreja e sai um maratonista, pleno de saúde. Descontados a pletora de charlatões em busca de cinco minutos de fama ou de cinco notas de dez, como se explica esse tipo de coisa? Não me atrevo a responder, uma vez que minha área de atuação não é essa. No entanto, ainda não compreendemos as reais capacidades do nosso cérebro. É conhecido o efeito placebo, quando medicamentos sem princípio ativo – compostos de farinha ou apenas água – acabam funcionando. Nosso corpo tem acentua
da capacidade de auto-reparo, o que pode ser potencializado por processos fisiológicos ainda não conhecidos. É comum, por exemplo, adoecermos quando nosso estado de espírito não está exatamente festivo, assim como não é incomum nos sentirmos bem fisicamente quando estamos tranqüilos ou nos sentimos realizados. Evidência do sobrenatural? Não.Nesse contexto, ouvem-se de, maneira recorrente, certas opiniões a respeito de pacientes “desenganados” pela medicina, ou que foram comprovadamente curados após uma levada de cantorias no momento exato em que Jesus Cristo se fez presente no tablado do templo. Para alguns, dizer que algo foi “provado” pela medicina dá ao fato uma aura de segurança e confiabilidade que é ingênua. Na ciência, nada é provado, apenas corroborado momentaneamente. Quanto mais vezes uma hipótese ou teoria se mostra correta, maior o seu poder explanatório e sua capacidade de previsão, o que absolutamente não significa que ela foi provada. Médicos no geral não são bons cientistas. Muitos são crédulos, outros ignorantes. Na minha concepção pessoal, o rótulo "desenganado pela medicina” significa tanto quanto “relógio à prova d’água”. Conto um caso que aconteceu comigo apenas como ilustração divertida: certa vez, fui a um hospital especializado em ortopedia na cidade de Ribeirão Preto-SP. Havia quebrado o dedo indicador da mão esquerda. O sujeito, experiente, observou minha mão, viu meu dedo mindinho (que é torto por natureza, como o do meu pai) e falou: "É, vamos precisar mesmo operar esse seu dedo quebrado...". Mostrei para ele o outro dedo, arroxeado: "O dedo quebrado é esse". O sujeito (repito, um médico de um centro avançado de ortopedia!) ficou bastante encabulado... A maioria dos médicos segue fórmulas e, quando a situação foge ao seu conhecimento restrito, sempre é mais fácil apelar para o imponderável e o desconhecido.

A meu ver, o sobrenatural não é apenas algo ainda incompreendido. Antes da história escrita, ou mesmo nos seus primórdios, acreditava-se que a chuva, os trovões, os raios e os outros fenômenos da natureza eram demonstrações da atividade dos deuses (portanto, "sobrenaturais"). Hoje ninguém mais pensa assim. Há infinitos exemplos como esse.

Não acredito em milagres ou na intervenção divina sobre o homem. Existem questões teológicas muito, muito profundas nesse ponto. Santos são apenas criações humanas (o papa Bento XVI já canonizou mais de dez pessoas durante o seu papado), assim como a tal infalibilidade do papa. As igrejas evangélicas baseiam-se em interpretações humanas sobre textos escritos pelo homem (e apenas por ele) - a Bíblia é cheia de incoerências e incorreções e tem sua raiz em textos muito mais antigos que ela.

Somos todos humanos. Dessa forma, criamos deuses, milagres e lugares inatingíveis pra aplacar um pouquinho da nossa insignificância.

Referências

- Chalmers, A.F. 1993. O que é ciência, afinal? Editora Brasiliense, São Paulo.
- Dawkins, R. 2001. O relojoeiro cego. Companhia das Letras, São Paulo.
- El-Hani, C.H. & Videira, A.A.P. 2000. O que é vida? Para entender a Biologia do Século XXI. Relume Dumará, Rio de Janeiro.
- Mayr, E. 2006. Biologia, ciência única. Companhia das Letras, São Paulo.
- Nelson, G. & Platnick, N. I. 1981. Systematics and biogeography: Cladistics and vicariance. Columbia University Press, New York.
- Sagan, C. 1996. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras, São Paulo.
- Schmidt, J. 2006. Júlio César. Editora L&PM, Porto Alegre.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O hipopótamo de Tahl

Certa vez, em uma entrevista, perguntaram ao enxadrista russo Mikhail Tahl se ele pensava em algo além do xadrez quando se encontrava sentado ao tabuleiro. “Certamente”, disse. E citou um exemplo: em um dos muitos campeonatos patrocinados pelo governo da ex-URSS, Tahl encontrava-se em uma posição delicada na partida. Seu primeiro impulso foi sacrificar um dos cavalos, apesar de desconfiar da própria variante. “Comecei a calcular e me horrorizei com a idéia de que o sacrifício dera errado”. Segundo Tahl, as idéias começaram a se amontoar em sua cabeça. Uma torrente caótica de possibilidades, às vezes sem nenhuma relação entre si, crescia sem parar de maneira monstruosa. Nesse momento, o jogador diz que se recordou de uma célebre poesia infantil soviética:

Oh, como é difícil o trabalho
De arrancar um hipopótamo do pântano!

“Não conseguiria explicar porque esse hipopótamo se meteu no tabuleiro, mas a verdade é que, enquanto os espectadores achavam que eu estava analisando as jogadas, eu pensava em como diabos poderia arrancar um hipopótamo do pântano”. Olhando para as peças, Tahl imaginava alavancas, arreios e helicópteros com escadas de corda. Depois de inúmeras tentativas, sem encontrar nenhum método aceitável de retirar o gigantesco artiodátilo do meio da lama, ele desistiu do seu experimento mental e pensou, com amargura “Então, que se afogue!”.

Mikhail Tahl (1936-1992) foi um dos maiores jogadores de xadrez que o mundo conheceu. Aprendeu a mexer os cavalos e torres aos 8 anos de idade e, aos 20, era pela primeira vez campeão soviético. As 23, sagrou-se campeão mundial, após derrotar mestres como Vasily Smyslov, Paul Keres e Bobby Fischer. De fato, Tahl é uma das unanimidades históricas das 64 casas, comparado em genialidade, criatividade e excentricidade aos também unânimes Paul Charles Morphy (sim, meu nome é uma homenagem a ele) e o já citado Fischer. Conhecido como o “mago de Riga” e dono de uma língua ferina, quando perguntado sobre seu estilo agressivo de jogo, Tahl respondeu: “Há três tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”. Como a maioria dos grandes campeões do esporte, Tahl confiava acima de tudo na sua própria capacidade de controlar uma situação surgida no tabuleiro de xadrez, contornando as dificuldades com maestria a fim de chegar a um desfecho favorável.



Mas, por que falar de Tahl? O que as atitudes do enxadrista têm a acrescentar para uma análise dos rumos da ciência e das suas particularidades?

Os maneirismos dos grandes jogadores de xadrez revelam muito sobre o que se pode esperar do comportamento intrínseco ao mundo científico e à divulgação que se faz dele. Diferentemente do jogo dos reis, a ciência nem sempre ganha com a excessiva autoconfiança dos seus praticantes – que por vezes escondem (mal) uma sede por reconhecimento midiático e celebridade instantânea. A complexidade do mundo natural é bem maior que o número de variantes possíveis em uma partida de xadrez, e não pode ser mensurada em uma bancada de laboratório. Aos cientistas cabem responsabilidades que fogem ao determinismo de suas fórmulas e protocolos de trabalho.

Parte dos cientistas acredita cegamente nos resultados de suas pesquisas e no seu absoluto controle sobre elas. Alguns o fazem por ingenuidade, outros por incompetência, alguns parecem nem mesmo se importar com os possíveis desdobramentos, futuros ou imediatos, das suas atitudes. Aliada à insensatez de parte dos pesquisadores, vem a grande mídia e as muitas ferramentas de popularização das ciências, que divulgam com desmedido entusiasmo os deslumbramentos científicos e pouco se prestam à consulta de fontes fidedignas ou segundas opiniões. Os delírios do projeto Genoma, a utilização de células-tronco para pôr um fim às doenças que afligem o homem, os alimentos transgênicos: é longa a lista de áreas promissoras da biologia alardeadas como furos jornalísticos. As possíveis e prováveis conseqüências desses estudos, seus pormenores e idiossincrasias, as dificuldades surgidas e os falsos positivos geralmente ficam fora das primeiras páginas e dos pronunciamentos em horário nobre. Assim, concepções errôneas são propagadas, fornecendo combustível para intermináveis questionamentos ocos.

É certo que o conhecimento científico deve ser levado ao grande público - a ciência é o escudo contra o obscurantismo, um facho de luz na escuridão de um mundo assombrado por demônios, na metáfora do astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan. Entretanto, como qualquer atividade humana, ela tem sua própria sociologia, seus conflitos de interesse e contradições insolúveis que nunca sobem ao palco e que, quando muito, apenas se transformam em anedotas biográficas de livros nunca lidos. Como em um dramalhão televisivo, os bastidores do mundo científico escondem guerras de ego, brigas, vaidade, traições e cobiça. A realidade da academia não destoa do mundo fora dela. Afinal, como diz o policial Alex Murphy, ao final de Robocop II, "somos todos humanos".

Grandes mentes e grandes projetos muitas vezes rendem-se a grandes verbas oferecidas por grandes multinacionais. Organizam-se verdadeiras operações de guerra, com táticas publicitárias ferozes e lavagem de cérebros, para cooptar os corações e mentes do público e de quem quer que interfira com posições contrárias. Para os que insistem no embate resta o ostracismo ou o monólogo.

O projeto Genoma humano, por exemplo, por muitos considerado a maior realização científica do século XX, a mais extraordinária aventura da ciência na atualidade, a busca pelo verdadeiro cálice sagrado, na verdade é apenas o reconhecimento das bases nucleotídicas que compõem o material genético do Homo sapiens. Um esforço extraordinário mas distante das promessas feitas sobre ele. Em qualquer organismo vivo conhecido, o DNA é composto por quatro tipos de unidades básicas, os chamados nucleotídeos: adenina, guanina, timina e citosina (respectivamente, A, C, T e G). A dupla-hélice do DNA corresponde a um código criptográfico com quatro variáveis que podem ser aglutinadas em infinitas combinações de mensagens. O que se fez até o momento no projeto Genoma foi reconhecer como estão amontoados os nucleotídeos no DNA da nossa espécie. É como conhecer as letras impressas nas páginas de um imenso livro sem saber o que elas significam juntas ou em que língua foram escritas. O seqüenciamento dos nucleotídeos é a etapa inicial de uma empreitada mais ampla, que visa ao conhecimento das expressões fenotípicas dos genes, das relações entre eles e da importância dos fatores internos e externos (isto é, “ambientais”) na determinação das características dos organismos vivos. Há ainda muito trabalho a ser feito. Muitos cientistas, entretanto, são céticos a respeito das possíveis conseqüências científicas e das reais intenções de empreendimentos desse porte. O eminente geneticista Richard Lewontin, professor Alexander Agassiz de zoologia e biologia da Universidade de Harvard, vê no projeto Genoma o esforço lobista de organizações voltadas mais para atividades financeiras e administrativas do que para a pesquisa básica em busca do conhecimento sobre o mundo natural. O futuro do Genoma, da clonagem e de outras áreas da biologia molecular não pode ser desvinculado de interesses comerciais.

As discussões acerca do papel do homem no aumento global de temperatura constituem outro exemplo claro de desinformação, interesses econômicos subjacentes e manipulação da audiência pela mídia e pelas empresas patrocinadoras. Há dinheiro envolvido em ambos os lados - não existem vilões e mocinhos nessa história. Pode parecer uma teoria conspiratória porém ao grande público sobram os ditos imperiosos das sumidades que se presumem titereiros debruçados sobre as cordas e o destino de suas criações, mas que, no íntimo, estão vislumbrando como arrancar o hipopótamo de ouro do meio do lamaçal.

A ciência busca aproximar-se da verdade, apesar dela não ser diretamente reconhecível por nenhum método científico. É essa a razão do seu distanciamento dos dogmatismos religiosos e das crenças cegas. Aos pesquisadores, cabe reconsiderar suas percepções de grandeza e reconhecer que o poder e o controle em suas mãos é limitado. Suas verdades são transientes, visto que hipotéticas e baseadas nas evidências disponíveis. Não há como dominar em um laboratório todas as variáveis das equações da natureza, como Tahl fazia com seus peões, cavalos e torres, e essa impossibilidade precisa ser considerada também pelo público não especializado como parte do jogo científico. Assim, a população pode cobrar a verdade por trás das promessas de tantos admiráveis mundos novos que aparecem a cada dia.



sábado, 12 de dezembro de 2009

De repente, nas profundezas do bosque

Amós Oz é um escritor israelense, nascido em 1939, que sempre está entre os favoritos ao Nobel de Literatura. Selecionei um trecho de um belo livro seu, De repente, nas profundezas do bosque:

“Era um peixe pequeno, um peixinho, com o comprimento de meio dedo, com escamas prateadas e nadadeiras delicadas, branquiadas, espelhadas e trêmulas. Um olho de peixe redondo e arregalado ao máximo mirou os dois por um instante como se sugerisse a Maia e Mati que todos nós, todos os seres vivos sobre este planeta, pessoas e animais, aves, répteis, larvas e peixes, na realidade todos nós estamos bem próximos uns dos outros, apesar de todas as muitas
diferenças entre nós: pois quase todos nós temos olhos para ver formas, movimentos e cores, e quase todos nós ouvimos vozes e ecos, ou pelo menos sentimos a passagem da luz e da escuridão através da nossa pele. E todos nós captamos e classificamos, sem parar, cheiros, gostos e sensações.

Isso e mais: todos nós sem exceção nos assustamos às vezes e até mesmo ficamos apavorados, e às vezes todos ficamos cansados, ou com fome, e cada um de nós gosta de certas coisas e detesta outras, que nos inspiram temor ou aversão. Além disso, todos nós sem exceção somos sensíveis ao extremo. E todos nós, pessoas répteis insetos e peixes, todos nós dormimos e acordamos e de novo dormimos e acordamos, todos nós nos empenhamos muito para que fique tudo bem para nós, não muito quente nem frio, todos nós sem exceção tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura. Pois cada um de nós pode ser amassado com facilidade. E todos nós, pássaro e minhoca, gato menino e lobo, todos nós nos esforçamos a maior parte do tempo em tomar o máximo cuidado possível contra a dor e o perigo, e apesar disso nós nos arriscamos muito sempre que saímos para correr atrás de comida, atrás de uma brincadeira e também atrás de aventuras emocionantes.

E assim, disse Maia depois de refletir sobre esse pensamento, e assim no fundo é possível dizer que todos nós sem exceção estamos no mesmo barco: não apenas todas as crianças, não apenas toda a aldeia, não apenas todas as pessoas, mas todos os seres vivos. Todos nós. E ainda não sei bem dizer se as plantas são um pouco nossos parentes distantes.


Logo, disse Mati, quem debocha dos outros passageiros na realidade é um bobo que está no mesmo barco. E não existe aqui nenhum outro barco.”
Amós Oz (2005, p. 45-47) em De repente, nas profundezas do bosque
"We are like butterflies that flutter for a day and think it's forever"
Carl Sagan


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Desconstruindo Darwin

Esse texto foi publicado no número 3 da revista Biosferas (da Unesp-Rio Claro), uma edição especial em comemoração aos 150 anos do Origem das espécies.

Desconstruindo Darwin


Os manuscritos do mar Morto foram escritos entre o século III a.C. e o I d.C. Eles formam uma coleção de pergaminhos descobertos entre 1947 e 1956 em uma caverna em Israel. Em um deles, o escriba comentou: "Não existe nenhum homem capaz de contar a história inteira". Essa frase se encaixa perfeitamente na idéia que temos sobre a história do desenvolvimento da teoria evolutiva. Apesar de sua incomparável importância para o pensamento humano, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), nascido há exatos 200 anos, não é o único nome que deve ser lembrado quando discutimos evolução. Da mesma forma, referir-se ao evolucionismo apenas como darwinismo desconsidera uma série de autores essenciais para a história da biologia.

A obra seminal de Darwin é o "Sobre a origem das espécies", publicado em 1859. Nele podem ser identificadas pelo menos cinco diferentes teorias, todas elas compondo o corpo principal de um amplo projeto de pesquisa, o evolucionismo darwiniano. Nenhuma dessas cinco teorias é original de Darwin, nem mesmo a idéia de seleção natural como o mecanismo responsável pela diversificação das espécies.

A primeira das teorias baseia-se na concepção de que o mundo vivo não é estável e imutável como imaginava Aristóteles e grande parte dos religiosos que adotaram a visão de mundo desse filósofo grego. Darwin sustenta que a natureza está em um processo contínuo de transformação no tempo e que os organismos não foram criados por uma entidade sobrenatural. Essa idéia não é darwiniana: Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) já falava sobre o transformismo das espécies, assim como Robert Chambers (1802-1871) no seu “Vestígios da história da criação”, de 1844, e George Louis de Buffon (1707-1788). Esse último, em sua obra longa e multifacetada “História Natural”, dizia que o centro de origem das espécies teria sido a Europa. A partir de dispersões para outras áreas, como o continente africano e a América do Sul, as espécies originais se degeneraram (ou seja, pioraram), dando origem a novas espécies.

Como complemento à concepção de uma natureza em processo constante de modificação no tempo, segundo outra das teorias presentes no “Origem”, o processo de descendência com modificação seria lento e gradual, não ocorrendo saltos para a origem de novos tipos. Dessa forma, as descontinuidades encontradas no mundo natural seriam meramente exceções – a inexistência de muitas formas intermediárias fósseis, por exemplo, refletiria apenas a imperfeição do registro paleontológico.

Darwin ainda apontou que as populações de qualquer espécie apresentam inúmeras variações. Os gatos (Felix catus) não são todos idênticos, assim como as moscas Drosophila melanogaster ou os diferentes Homo sapiens. Qualquer pessoa com um senso mínimo de observação da natureza pode perceber que essa idéia levantada por Darwin é óbvia, ainda que importantíssima no contexto da teoria evolutiva.

Uma das premissas revolucionárias do "Origem" é a hipótese de que todos os organismos encontrados na natureza compartilham um ancestral comum em algum nível hierárquico. Isso significa que, dadas quaisquer duas espécies (por mais distantes que sejam, como uma planária e um tiranossauro), elas sempre terão um ancestral em comum – mesmo que ele tenha vivido há centenas de milhões de anos. Esse é o raciocínio genealógico aplicado à compreensão das relações entre as espécies. A idéia de ancestralidade comum destrói qualquer pretensão humana em ocupar uma posição privilegiada na natureza: nossa espécie corresponde apenas a um raminho na imensa árvore evolutiva que reúne todas as milhões (bilhões?) de espécies existentes desde a origem da vida, há cerca de 3,8 bilhões de anos. Ainda no século XVIII, Buffon já havia tratado de ancestralidade comum.

Apesar da importância fundamental dessas quatro teorias para a concepção de evolução, o “Origem das espécies” é lembrado principalmente por trazer, de forma detalhada, a descrição do mecanismo pelo qual as espécies se modificariam no tempo, a seleção natural. Partindo dos trabalhos do economista britânico Thomas R. Malthus (1766-1834) com populações humanas, Darwin percebeu que, como deveriam ser produzido mais indivíduos do que os recursos disponíveis permitiriam – uma vez que a capacidade de reprodução dos organismos é alta – deve existir algo como uma luta pela existência entre os indivíduos das populações, resultando na sobrevivência de apenas parte dos filhotes de cada geração. O que define a sobrevivência ou não de um indivíduo é sua constituição hereditária. A esse processo de sobrevivência diferencial Darwin deu o nome de seleção natural. No correr das gerações, a seleção natural conduziria a uma mudança gradual e contínua das populações, isto é, à evolução e origem de novas espécies.

Charles Darwin foi o "descobridor" da seleção natural? Difícil dizer com certeza. Ele foi um grande compilador, com um talento inegável para correlacionar evidências e dados de observação para sustentar suas teorias. No entanto, a história do pensamento evolutivo mostra que muitos outros autores quase "chegaram lá".

Em 1831, o naturalista escocês Patrick Matthew (1790-1874) esboçou a primeira descrição da seleção natural: “Há uma lei universal na natureza que tende a conferir a todo ser reprodutivo as melhores condições possíveis (...) modelando seus poderes físicos, mentais ou instintivos à sua perfeição”. Antes de Matthew, no século XVIII, Buffon já havia comentado algo a respeito. William Charles Wells (1757-1817) foi outro que discutira a seleção natural na espécie humana, no começo do século XIX. Além desses, também o naturalista britânico Alfred R. Wallace (1823-1913) levantou a hipótese da seleção natural independentemente de Darwin, o que resultou em uma publicação conjunta de ambos na revista da Sociedade Real britânica, no ano de 1858. Wallace contou com a ajuda de Henry W. Bates (1825-1892). Ambos, trabalhando na Amazônia, chegaram à mesma conclusão darwiniana a respeito do processo evolutivo, considerando ainda a importância da distribuição geográfica no processo de especiação.

Wallace e Bates trabalhavam de forma obsessiva-compulsiva, chegando a passar 16, 18 horas seguidas coletando no infernal calor amazônico. Bates viveu no Brasil por onze anos, enviando mais de oito mil novas espécies de insetos para a Inglaterra durante esse tempo! Além da Amazônia, Wallace passou um longo período no arquipélago Malaio, sempre compilando toneladas de informações em trabalhos amplos. Ele não tinha a mesma reputação científica que Darwin, já conhecido como naturalista por conta de obras importantes como sua monografia sobre cracas. A pequena fama de Wallace à época do lançamento do “Origem das espécies”, e mesmo depois, pouco tem a ver com a qualidade do seu trabalho e mais com a genealogia: Darwin era de família abastada, Wallace não. O primeiro trabalhava em sua casa de campo; o segundo ganhava a vida no campo de fato. Também pode tê-lo afastado das primeiras sínteses históricas do evolucionismo o pendor espiritualista de Wallace, para quem todos os organismos passavam pelo processo da seleção natural, menos o homem, que teria sido "ungido" por Deus com sua inteligência extraordinária.

A história da teoria evolutiva nos mostra que muitos autores anteriores à Darwin haviam chegado a concepções muito semelhantes às suas. A teoria da evolução, atualmente, está anos à frente do que Darwin dizia ou mesmo do que ele teria condições de pensar, com base na ciência do seu período. Hoje se sabe, por exemplo, que o papel do acaso é tão (ou, para alguns, mais) determinante que a seleção natural. Pode-se estudar evolução em outros níveis que não o estritamente populacional – parece haver competição até mesmo entre genes!

Darwinismo, portanto, não deve ser visto como sinônimo de evolucionismo. Dizer isso não é desrespeitar o legado de Darwin mas sim preservar a importância da sua obra dentro do contexto histórico. Não há heróis absolutos, sem falhas, perfeitos em todos os seus quesitos, detentores da sabedoria completa de uma área do conhecimento. Como citado em um dos manuscritos do mar morto, ninguém pode escrever sozinho a história. Devemos desconstruir nossos heróis intelectuais para que a essência do seu gênio prevaleça.