segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Vida Maravilhosa - parte I

O que é a vida?

Talvez essa seja a mais trivial das perguntas. No entanto, exige a mais complexa das respostas...

Como surgiu a vida? Como foram os primeiros organismos que podemos chamar realmente de vivos?

Essas questões remontam às primeiras civilizações humanas conhecidas e as tentativas de respondê-las podem ser encontradas dos mitos de criação de culturas pré-científicas aos modernos laboratórios de biologia molecular, passando por um sem número de tomos filosóficos e controversos dogmas religiosos.

A profusão de teorias sobre o assunto é espantosa. Infelizmente, reconstruir o passado é uma tarefa hercúlea, tanto mais difícil quanto mais distante no tempo estão os eventos que se quer conhecer. Quando falamos sobre a origem da vida, necessariamente temos que voltar ao menos 4 bilhões de anos, para a infância do nosso planeta, quando o mundo era muito diferente do atual.

Provavelmente, nunca saberemos em detalhes precisos como começou a vida na Terra. Para a ciência, o desafio é construir uma narrativa histórica lógica e coerente sobre os eventos que ocorreram há bilhões de anos, dos quais pouca informação está disponível ou foi preservada.

Uma das maneiras de inferir como foi o passado biológico é o que Richard Dawkins chama de “triangulação" em seu livro “The ancestor’s tale”, de 2006. Buscamos no mundo vivo de hoje informações que possam ser úteis para compreender como deve ter sido a natureza de outrora. Características compartilhadas pelos vários grupos biológicos existentes podem permitir-nos, por exemplo, postular como foi o possível ancestral deles todos.

Praticamente todas as formas de vida presentes na Terra compartilham as mesmas propriedades químicas e o mesmo código genético, com raras exceções. Todas as células utilizam energia, seja a partir da luz do Sol ou a partir de compostos químicos, e sintetizam ATP (Adenosina Trifosfato, a “moeda energética” da célula). Todos os organismos têm um sistema de replicação baseado em DNA e RNA. A universalidade dessas moléculas corrobora a hipótese de que os seres vivos descendem de um mesmo ancestral, no qual as principais características que definem a vida estariam estabelecidas. Parece improvável – mas, claro, não é impossível – que sistemas tão complexos e específicos tenham surgido independentemente e evoluído em paralelo, o que torna bastante sólida a hipótese de um ancestral comum para todos os organismos recentes, perdido no passado longínquo.

Há um consenso que defende a definição de um ser vivo como qualquer entidade biológica que apresente algum tipo de metabolismo, uma estrutura celular básica e que possa se reproduzir. Em suma, um organismo deve ser capaz de se replicar, isto é, passar a informação genética para os seus descendentes, o que só é possível a partir de reações metabólicas. Nas formas de vida atuais, o DNA e o RNA são as moléculas orgânicas responsáveis pelo conteúdo informacional, enquanto as proteínas fornecem a matéria estrutural para as células e agem como enzimas, possibilitando a ocorrência das reações químicas intracelulares. A vida como conhecemos é impossível sem essas duas classes de moléculas. Em qualquer espécie existe uma relação indissociável entre ácidos nucléicos e proteínas: sem DNA (e RNA), não há síntese de proteínas e, sem estas, não ocorre a replicação dos ácidos nucléicos. A complexidade inerente às duas moléculas é grande demais para se aceitar a idéia de surgimentos espontâneos e independentes. Como resolver o paradoxo da origem de ácidos nucléicos e proteínas? E a estrutura celular, teria ela precedido o material genético e o metabolismo?

Ambientes primitivos
Há 4,6 bilhões de anos, gases superaquecidos como o sulfeto de hidrogênio, gás carbônico (CO2), nitrogênio, metano, além de água sob a forma de vapor, acumulavam-se sobre a superfície terrestre, constituída de rochas derretidas coalescendo e um turbilhão de metais. O planeta era atingido freqüentemente por intensas descargas elétricas, raios ultra-violeta e radiação provenientes do cosmo, bem como por grandes bólidos extra-terrenos (restos de grandes meteoros e outros corpos celestes e não naves espaciais pilotadas por homenzinhos verdes...). Esse é apenas um dos cenários sobre como era a atmosfera primitiva. Apesar das controvérsias, sabe-se com alto grau de certeza que ela era muito diferente da atmosfera atual, com corpos d’água e oceanos incipientes sendo vaporizados constantemente. Chuvas torrenciais seguiam-se em ciclos intermináveis, transformando o planeta em uma gigantesca panela de pressão. Inspirado no inferno grego e a morada dos mortos, o Hades, a fase inicial da Terra em formação recebeu o apropriado nome de Éon Hadeano (entre 4,6 a 3,8 bilhões de anos atrás). Esse planeta em ebulição, aparentemente inóspito, foi o berço da vida.

Também há muitas especulações a respeito do passado de outros planetas do Sistema Solar. Vários estudos apontam que Marte também apresentava características propícias à biogênese há alguns bilhões de anos. O diâmetro do planeta vermelho é menor que o da Terra, o que diminui a incidência de impactos celestes (corpos maiores tornam-se alvos mais fáceis). Se as hipóteses estiverem relativamente corretas, a atmosfera marciana primitiva, rica em CO2, juntamente com a presença de oceanos, talvez repletos de vulcões, compunham um cenário favorável ao aparecimento de organismos. Uma vez surgida em Marte, a vida poderia se dispersar para outros lugares do universo, inclusive a Terra, através da ejeção de material rochoso para o cosmos após grandes impactos. O material ejetado transportaria microorganismos em seu interior, funcionando como cápsula de proteção às condições extremas do vácuo espacial. Ao precipitar sobre a superfície de algum planeta, as rochas trariam com elas as formas de vida sobreviventes. Essa hipótese, a panspermia, foi proposta pela primeira vez em termos semelhantes pelo filósofo grego Anaxágoras, no século V a.C. Teríamos nós todos uma ascendência marciana? Isso explicaria o fascínio humano pelos céus e as estrelas e nossas constantes tentativas de “ligar para casa”...
Aqui na Terra, em profundezas abissais de mares antigos, extremamente quentes e sem luz, eram abundantes os sistemas hidrotermais – fontes vulcânicas submersas ricas em fosfato e minerais dispersos, provenientes da erosão das rochas próximas. Nas fissuras resultantes dos contínuos movimentos das camadas rochosas do fundo do mar, a lava derretida era lançada oceano gelado acima. À medida que a temperatura diminuía, esse magma encolhia e se quebrava, criando uma massa rochosa de fissuras e túneis pelos quais a água circulava, dissolvendo minerais, que eram liberados nas proximidades. Os organismos aí surgidos poderiam obter energia através de reações de oxi-redução dos nutrientes oriundos do substrato, em processos precursores da fermentação.

As evidências geológicas dos organismos vivos mais antigos na Terra remontam a 3,5 bilhões de anos, mas é provável que a vida tenha aparecido há mais de 3,8 bilhões de anos. Essa datação baseia-se em resíduos moleculares de carbono pesado (C13) encontrados em rochas na Groenlândia. Há registros de fósseis microbianos e estromatólitos (estruturas sedimentares orgânicas) em rochas de 3,5 bilhões de anos. Na África do Sul e na Austrália existem microestruturas carbonáceas, provavelmente de origem microbiana, impressas em rochas de 3,3 a 2,5 bilhões de anos de idade. Microfósseis filamentosos também são conhecidos de depósitos vulcanogênicos australianos de 3,2 bilhões de anos.

sábado, 20 de setembro de 2008

Ask the next question

Entrevistador: Você pode explicar o significado da sua marca registrada pessoal, que é uma letra Q com uma seta apontando para a direita?

Theodore Sturgeon: Ela significa "Faça a próxima questão" [em inglês, "Ask the next question"], e a seguinte, e a seguinte. É o símbolo de tudo que a humanidade criou e é a razão pela qual as coisas são criadas. O sujeito está sentado na caverna e diz "Por que um homem não pode voar?". Bem, essa é a questão. A resposta pode não ajudá-lo, mas agora a questão foi formulada. Qual é a próxima questão? Como? E assim, através das gerações, as pessoas têm tentado encontrar a resposta para aquela questão. Nós encontramos a resposta e nós voamos. Isso é verdade para qualquer realização humana, seja na tecnologia ou na literatura, na poesia, nos sistemas políticas ou em qualquer outro assunto. É isso. Faça a próxima questão. E a outra depois dela.

Theodore Sturgeon (1918-1985) foi um escritor norte-americano de ficção científica. Ficou muito conhecido pela chamada "Lei de Sturgeon": “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de TUDO o que se escreve é lixo”. Em um artigo publicado na Cavalier Magazine, em 1967 (leia a página 1 aqui e a página 2 aqui), ele escreveu: "Todo avanço que essa espécie já alcançou é o resultado de alguém, em algum lugar, olhar o mundo, sua vizinhança, seu vizinho, sua caverna ou a si mesmo e fazer a próxima questão. Todo erro mortal que essa espécie cometeu, todo pecado contra si e seu destino, é o resultado de não se fazer a próxima questão ou de não se ouvir aqueles que a fizeram".

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Ciência responsável é conservadora?

Discussões a respeito de avanços tecnológicos sempre tendem a polarização: alguns defendendo as descobertas e novidades científicas e outros contrários a elas. Essa dicotomia é desnecessária e inocente. É uma interpretação por demais limitada da história da ciência.

Há um belo livro póstumo do
astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan (uma referência constante aqui nesse blog) intitulado The Varieties of Scientific Experience, de 2006, que reúne uma série de palestras sobre o pensamento científico e os motivos que fazem dele a melhor ferramenta disponível para explicar a realidade. No entanto, como o próprio Sagan considera em muitos trechos (e isso se repete em outros de seus livros, por exemplo, no Bilhões e Bilhões), aos cientistas cabe também vislumbrar as conseqüências do que fazem e à população restante cobrar por explicações. Isso não é conservadorismo ou romantismo exacerbado - é apenas uma postura responsável:

"Eu acho que a primeira coisa, em uma democracia, onde há ao menos uma pretensão sobre as pessoas controlarem as políticas governamentais, é que todo processo democrático deve ser usado. Você pode se certificar de que aqueles em quem vota têm visões racionais sobre esses assuntos. Você pode trabalhar duro para ter certeza que há uma real diferença de opiniões entre os diferentes candidatos. Você pode escrever cartas para jornais. Mas mais importante que tudo isso, eu acredito, é que cada um de nós deve se equipar com um "kit detector de bobagens. Os governos gostam de nos dizer que tudo está bem, eles têm tudo sob controle, e para deixá-los em paz. E muitos de nós, especialmente em assuntos que envolvem tecnologia (...) tem a idéia de que isso é muito complicado. Nós não podemos entender. Os governos têm os experts. Certamente eles sabem o que estão fazendo. Eles devem ser favoráveis à manutenção do nosso país, independente de que país seja. E, de qualquer forma, esses são assuntos tão penosos que eu não quero pensar neles, o que os psiquiatras chamam de negação. E isso me parece uma receita para o suicídio. Nós devemos, todos nós, entender esses assuntos porque nossas vidas dependem deles, e as vidas dos nossos filhos e dos nossos netos. Não são assuntos em que você deve assumir pela fé. Se há uma circunstância em que o processo democrático deve ser levado em conta, é essa. Algo que determina nosso futuro e o de tudo que queremos bem. E, além do mais, eu diria que a primeira coisa a fazer é perceber que os governos, todos governos, pelo menos em uma ocasião, mentem. Alguns deles o fazem o tempo todo (...) no geral, os governos distorcem os fatos para permanecer no cargo. Se formos ignorantes sobre o que são esses assuntos e não pudermos nem mesmo fazer as questões críticas, então não faremos muita diferença. Se pudermos entender esses assuntos, se pudermos apontar as questões certas, se pudermos mostrar as contradições, então poderemos fazer algum progresso. Há muitas outras coisas que podem ser feitas, mas para mim parece que essas duas, o kit de detecção de bobagens e o uso do poder democrático, são pelo menos as primeiras a se considerar".
Carl Sagan, The Varieties of Scientific Experience (2006, pp. 257-258).

Um dos grandes problemas da tecno
logia subjacente aos transgênicos é sua "propaganda enganosa": o discurso que coloca os OGM (organismos geneticamente modificados) como a arma definitiva contra a fome e a desnutrição é simplesmente hipócrita. Substitua acima a palavras 'governos' por 'multinacionais do setor alimentício' para ter uma idéia a esse respeito.

A produção de alimentos hoje no planeta é suficiente para alimentar toda a população mundial (há um pequeno livro da coleção Folha - Alimentos Transgênicos, do jornalista Marcelo Leite - que discute um pouco o problema; outro livro interessante é um recém-saído do forno, do prof. Fernando Zucoloto, da USP-RP, intitulado Por que comemos o que comemos?). Se a idéia é mesmo a de acabar com a fome no mundo ou pelo menos diminuí-la, por que não começar reduzindo as margens de lucro dos conglomerados internacionais de produtos alimentícios? Isso levaria à redução dos preços e à possibilidade da população de menor renda ter acesso a alimentos de maior qualidade. Qual a garantia de que os alimentos transgênicos seriam mais baratos? Não é ingenuidade pensar que as corporações multinacionais que defendem a tecnologia são altruístas em uma cruzada pelo bem-estar mundial?

Pode-se falar que comprar arroz modificado, "melhorado", por exemplo, com a inserção de betacaroteno, seria mais barato que comprar arroz e cenouras. Talvez isso seja realmente verdade, mas há uma grande diferença entre ingerir arroz + cenouras e ingerir arroz com betacaroteno... aí está a "propaganda enganosa": compre 1, leve 2 (quando, na verdade, o correto seria algo como compre 1, leve 0,8 e corra riscos desnecessários).

No caso dos transgênicos, a argumentação não convence - na verdade, ela é dúbia e lacunosa. É claro que os organismos geneticamente modificados (o correto seria organismos artificialmente modificados via manipulação genética - a evolução é um longo processo de modificação genética dos organismos...) são importantíssimos na nossa sociedade atual - basta lembrar, por exemplo, da produção de insulina por bactérias modificadas em laboratório. Há, no entanto, uma grande distância entre o que se apregoa e o real significado das coisas no caso dos alimentos transgênicos. A defesa dos transgênicos carece de bons argumentos assim como a defesa estrita das religiões - não há evidências, ficamos sempre no "pode ser interessante", "pode ser bom", "vai ajudar" enquanto os problemas de fato não são encarados...

A razão não só pode nos dar um controle suficiente da Natureza, como ela é a ÚNICA coisa capaz disso. No caso dos transgênicos, o que tem faltado é exatamente o uso dessa razão, ainda mais quando o assunto é apresentado para o grande público, no geral leigo. Tudo fica parecendo uma luta entre os cientistas que querem acabar com a fome versus os ambientalistas "conservadores românticos".

Ficam várias perguntas: se não há riscos, se a tecnologia veio para ajudar, qual o problema em colocar um rótulo "T" nos produtos geneticamente modificados? Por que não tentar esclarecer a população com argumentos sólidos e não com promessas de campanha política?

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sábado, 13 de setembro de 2008

Faça-se a luz: divagações sobre C & T

Como a maioria sabe, e como já foi discutido rapidamente nesse blog em outro post, a tsunami que atingiu os continentes asiático e africano no final de 2004 teve seu epicentro em uma distúrbio sísmico no meio do Oceano Índico, que deslocou enormes quantidades de água e culminou na formação da onda gigantesca que arrasou os litorais que a receberam. Apesar de todo desenvolvimento científico e tecnológico, não havia como impedir o fato, assim como não temos nenhuma possibilidade de diminuir o período de rotação da Terra e esticar o dia em mais algumas horas. Mesmo reconhecendo a implacabilidade de um evento geológico de tamanha intensidade, a tragédia humana não era inevitável. A falta de perspectiva científica dos governantes e autoridades locais, unida à ausência de assessoria técnica adequada e ao pouco (ou nenhum) investimento no desenvolvimento tecnológico, contribuiu de forma decisiva para o desastre anunciado, levando à perda de milhares de vidas humanas. Nada leva a crer, no entanto, que casos semelhantes não voltarão a acontecer em um futuro próximo.

Abalos sísmicos e eventos naturais como a erupção de vulcões e a passagem de tornados podem ser previstos com uma certa margem temporal de segurança, na maioria das vezes suficiente para a evacuação das potenciais áreas de maior impacto. Cenas como essa são comuns em países com larga experiência nesse tipo de questão, como os Estados Unidos e o Japão. A ciência bem utilizada teria o poder de transformar o ocorrido. Esperar apenas que o profeta aponte os caminhos e garanta a salvação é um comportamento, no mínimo, ingênuo e, sobretudo, perigoso.

A recente passagem de furacões de grande intensidade pelo litoral caribenho e sul dos Estados Unidos também mostra como a ciência bem aplicada e levada a sério, com investimentos maciços em tecnologia e informação, pode ser o diferencial entre o bem estar e a morte para a nossa espécie. Em 2005, os furacões Katrina e Rita, especialmente o primeiro, praticamente arrasaram a região mais pobre da América do Norte, deixando a capital do jazz, Nova Orleans, submersa, e outras cidades destruídas quase que por completo. Mais uma vez, sabia-se com antecedência o caminho dessas espirais mortais desde sua formação no meio do Oceano Atlântico e com que grau de destruição elas atingiriam o país. O acompanhamento das mudanças de rota dos furacões foi feito, minuto a minuto, por instrumentos meteorológicos e torres de controle do tempo, e os informes liberados, mas não foi dada prioridade à tragédia anunciada e o mundo assistiu, impávido, à destruição provocada pelos ciclones. Não havia qualquer plano de contingência, rotas alternativas de evacuação das cidades atingidas, mobilização prévia de tropas militares ou civis para auxiliar os moradores. Os furacões passaram e se estabeleceu o caos. Desconsiderando as causas da tragédia – que por muitos têm sido imputadas exclusivamente ao desregramento do homem perante o meio-ambiente ou a um improvável contra-ataque da natureza, sem considerar os ciclos de aumento e diminuição global da temperatura, e a ocorrência de catástrofes desse porte no planeta desde sua formação – se os avisos dos cientistas tivessem sido tomados como base para o estabelecimento de estratégias para salvaguardar as regiões afetadas, essas linhas talvez não estivessem sido escritas da maneira como você as está lendo agora. Mas quem ouve o que os representantes da ciência dizem? De fato, descontados os apelos imediatistas sobre alguns aspectos do desenvolvimento científico-tecnológico (como as querelas sobre aquecimento global, biocombustíveis e fontes "limpas" de energia), o discurso político é pouco afeito ao que se passa nas bancadas e computadores dos laboratórios, o que é um absoluto contra-senso, visto que a ciência e a tecnologia são centrais para o gênero Homo desde o controle do fogo e as primeiras experiências na criação de instrumentos para caça, há aproximadamente 750 mil anos. Fala-se muito em guerra contra o terrorismo, melhoria da saúde, da educação, da economia, mas sempre de forma inócua e impraticável – não se vêem candidatos discutindo sobre mais verbas para grandes (ou pequenos) projetos científicos, divulgação e conscientização da importância das ciências ou o impacto das tecnologias na vida moderna. Os jornais de maior circulação dão quase tanto espaço para C & T quanto para horóscopo (e muito menos do que para fofocas de pseudo-celebridades). Isso não ocorre apenas no Brasil, como o noticiário internacional aponta todos os dias.

É um clichê mas vale ser enfatizado sempre: a ciência e seu contra-ponto tecnológico são indispensáveis para a sobrevivência da nossa espécie. Estão de tal maneira entranhadas na nossa rotina diária que, por vezes, passam despercebidas, e só são trazidas à tona em períodos conturbados como os citados acima. O grande público não discute ciência como o faz com a religião ou o entretenimento, o que significa menosprezar a importância do conhecimento científico em detrimento de esoterismos e fugacidades. Questionam os cientistas por "brincarem de Deus" (o que quer que isso possa significar) mas não substituem seus medicamentos por orações para esse ou aquele santo. Conhecem São Paulo, São Judas, São Nicolau (?), Jesus Cristo, Maomé e uma lista infindável de nomes sacros, não tendo a menor idéia de quem foram Arquimedes, Newton, Bell, Daguerre, Darwin, Einstein (aquele maluco que andava sempre com os cabelos para cima, não é?) ou Feynman. Não obstante, para o não-iniciado, a ciência é vista como inatingível, distante, fria e hermética, uma atividade que exige níveis de excelência intelectual restritos à uma pequena parcela da população, abrilhantada por uma mente de gênio repleta de idéias dignas de “Eureca!”. Isso é falso. Qualquer um pode fazer ciência ou ao menos inquirir sobre ela. Quem nunca se perguntou sobre como as imagens se formam na televisão, sobre por que a luz se faz quando apertamos o interruptor na parede do quarto ou sobre o funcionamento de um chip de computador? A ciência começa aí, com a dúvida, e caminha a partir dela. Obviamente, e assim como qualquer outra ocupação humana, ela tem suas idiossincrasias, regras, métodos e limitações, mas nada que não seja perfeitamente compreensível se a atividade for valorizada desde os primeiros anos da educação formal e para o restante da vida do indivíduo.

Esse olhar inquiridor se distancia da credulidade "benevolente" dos seguidores de religiões, que são treinados a não questionar verdades fundamentais aos seus credos, quaisquer sejam elas, e acabam por se conformar em viver em um mundo cujas explicações remontam sempre ao altíssimo que tudo pode e tudo conhece, sem deixar, é claro, de utilizar a internet para enviar suas correntes de mensagens sobre o divino. O aprofundamento de questões científicas é premente na sociedade moderna e demanda o estudo do contexto científico no qual são feitas descobertas e invenções e o reconhecimento da importância da ciência como o norte da existência humana. Investir em ciência e tecnologia é uma das maneiras de garantir a manutenção de uma sociedade saudável capaz de despertar das ilusões que tentam tomá-la de assalto. E também pode salvar vidas.

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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Aristóteles e o Nome da rosa

Uma das obras que melhor traduziram para um público amplo a importância do aristotelismo para o pensamento cristão da Idade Média foi O nome da rosa (1986), do filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932- ). Toda a trama da obra de Eco, tanto do livro quanto do filme nele inspirado, gira em torno de um livro misterioso, que acaba por levar vários monges à morte em uma abadia medieval. Ao final, percebe-se a importância da obra, um tratado do filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) sobre como o riso pode auxiliar na busca pela verdade. O monge ancião responsável pela biblioteca do mosteiro para o qual se encaminham William de Baskerville e seu aprendiz Adso de Melk, chamado Jorge de Burgos (uma alusão ao escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que morreu cego e ficou celebrizado por seus contos labirínticos e suas inúmeras referências a obras literárias), diz em suas falas finais que a obra deveria ser destruída justamente por ter sido escrita por Aristóteles. A influência do pensador grego era tamanha que, ao endossar o riso e o escárnio como fontes válidas para se chegar ao conhecimento, Aristóteles poderia desencadear o caos na sociedade, uma vez que, ao rirem do mundo, os homens espantariam o temor, o medo. Ao deixarem de temer (ao demônio, nas palavras do bibliotecário), os homens perceberiam como deus era desnecessário e o mundo entraria em colapso.

A filosofia de Aristóteles, sempre presente no Ocidente, mas particularmente relevante após o século XIII, foi umas das grandes barreiras a ser vencida pelo pensamento científico moderno, que se origina, entre outros, com Nicolau Copérnico (1473-1543), Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650). Na biologia, o essencialismo aristotélico perdurou ainda mais, e só sofreu severas avarias a partir da teoria da evolução através da seleção natural, de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), em meados do século XIX. Algumas das práticas utilizadas por Aristóteles, entretanto, permanecem em certas áreas da biologia atual, como na classificação de organismos a partir de dicotomias (prática corrente na construção de chaves de identificação da sistemática biológica) e na manutenção de um determinado espécime (o holótipo) como conrrespondente à "essência" de uma nova espécie descrita.

Em O nome da rosa, há outras referências interessantes aos estudantes de filosofia da ciência. O personagem vivido por Sean Connery, o frei franciscano William de Baskerville, tem seu nome derivado do escolástico William de Ockham, celebrizado pelo conceito da parcimônia ontológica, segundo o qual as entidades explicativas não devem se multiplicar sem necessidade. Tal princípio, um dos fundamentos da ciência moderna, também remonta à Aristóteles, para o qual “a Natureza não faz nada em vão, nem faz nada de supérfluo”, como se pode ler no seu tratado Partes do animais. O frei William trabalha como um detetive, procurando evidências para corroborar suas hipóteses sobre quem é o assassino dos monges da abadia. Em contraposição à percepção metafísica “exagerada” (como provavelmente diria Ockham) dos monges, que relacionavam as mortes ao livro do Apocalipse e à chegada do fim do mundo, Baskerville procurava nos fatos observáveis o apoio para as suas explicações mais simples para os fenômenos observados. Fica evidente que o frei emprega o que hoje se convencionou chamar de raciocínio hipotético-dedutivo, que parte de premissas gerais, as quais orientam a busca por evidências, que auxiliarão no desenvolvimento e no aperfeiçoamento das hipóteses iniciais, por vezes levando ao descarte destas em prol de explicações alternativas.

Há outros exemplos na obra do uso e da importância da parcimônia. Quando estão perdidos no interior do labirinto que leva à biblioteca na torre do convento, frei William e seu aprendiz Adso procuram uma forma de escapar do lugar. William tenta usar o raciocínio para buscar uma saída, mas é interrompido pelo jovem aprendiz, que mostra uma solução muito mais simples - mais parcimoniosa, em um sentido quase popularesco - para o problema.

O nome da rosa é importante também por contextualizar parte da realidade do século XIV, enfatizando o controle da igreja sobre praticamente todas as formas de conhecimento, incluindo as obras heréticas e não-religiosas, que eram copiadas, comentadas e ilustradas pelos monges enclausurados. Ninguém fora dos salões e dos escritórios eclesiásticos tinha acesso ao que já se havia produzido na ciência, na teologia, na metafísica ou na política. O monopólio da igreja só começaria a perder força com a popularização da imprensa e a invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg (1400-1468). Além disso, o filme mostra um debate entre escolásticos da ordem franciscana e religiosos ligados ao poder papal, enfatizando as disputas verbais típicas do período, no qual ainda se acreditava que o conhecimento viria apenas do debate racional de idéias, e não da experimentação ou da observação do mundo natural.

A obra de Umberto Eco, muito mais rica em sua versão escrita (lançada em 1980) do que na cinematográfica, é leitura recomendada. É um livro que diverte sem ser estúpido - como é o caso do execrável Código da Vinci, escrito (?) pela fraude literária que atende por Dan Brown - e a partir do qual é possível vislumbrar como foi o mundo sob a influência dominadora da Igreja durante a Idade Média, e também quais foram as pré-condições, existentes à época, que possibilitaram a revolução científica do século XV, uma das bases fundamentais para a visão de mundo dos nossos dias.

domingo, 24 de agosto de 2008

Ensaio: Três tigres

Esse é o último ensaio da série que foi publicada no jornal Gazeta de Ribeirão. Saiu no dia 11 de agosto de 2005, na edição número 92.

Três tigres

Charles Morphy D. Santos

No início de Ran, obra-prima de Akira Kurosawa inspirada no Rei Lear de Shakespeare, o lorde samurai Hidetora, cansado de guerras e conquistas, em reunião com seus principais comandados, decide delegar a liderança ao seu primogênito, Taro. Sob o olhar atônito dos assessores e do bobo da corte, Hidetora faz a partilha do império, incumbindo Jiro e Saburo, seus dois outros filhos, da tarefa de escudar o irmão mais velho. Para demonstrar a necessidade da colaboração, o velho lorde dá a cada um deles uma flecha de madeira e pede que tentem quebrá-la, o que fazem de pronto. Hidetora, então, agrupa três flechas em um único feixe e repete o pedido. O conjunto resiste às investidas dos irmãos, corroborando a tese do pai, até que o mais jovem, Saburo, consegue quebrar as flechas apoiando-as no joelho. O comportamento cooperativo funciona mas não é inquebrantável: a competição sempre surge, de uma ou outra forma.

A evolução das espécies também é marcada por esses dois extremos. No ambiente natural, os organismos estão permanentemente à procura de alimento, água, território e parceiros reprodutivos (tomando os animais de forma geral. A competição nos mundos bacteriano, vegetal e entre os fungos também é notável). Apesar do senso comum ver a natureza engalfinhada em batalhas pela sobrevivência, nas quais apenas os fortes obtêm sucesso, a competição ocorre em diferentes níveis e é, por vezes, sutil e não "declarada". Desde Darwin e Wallace, no século XIX, aceita-se que as populações naturais têm altas taxas de variação interna e que, em resposta a pressões ambientais, alguns grupos podem ser selecionados em razão de portarem características vantajosas para a manutenção de sua prole. É uma falácia biológica afirmar que são os fortes os melhores competidores, uma vez que força não garante sobrevivência. Além disso, a cooperação também é fundamental na evolução.

O comportamento cooperativo aparece, por exemplo, em vertebrados, artrópodes (as sociedades de formigas, abelhas e cupins), cnidários (a caravela portuguesa - ou caravela do mar, do gênero Physalia - é uma medusa colonial formada por indivíduos diferentes) e mesmo em organismos unicelulares como as algas verdes Volvox (formam colônias esféricas com cerca de 500 a 50 mil células biflageladas unidas por filamentos citoplasmáticos e bainhas gelatinosas). A cooperação, deixando de lado a idéia finalista de que associações biológicas têm um objetivo, remonta à simbiose de microorganismos com bactérias fotossintetizantes e produtoras de energia a partir da queima do oxigênio, há bilhões de anos.

O jovem Saburo, entretanto, não estava errado ao questionar o comportamento cooperativo, uma vez que ele também se insere em um contexto de competição. Algumas espécies têm condicionada a sua sobrevivência à vida cooperativa, o que não as exclui de relações competitivas no ambiente natural. Associações são selecionadas se conferirem um diferencial aos indivíduos que resulte em maiores taxas de reprodução e, conseqüentemente, maiores chances de permanência daquelas características herdáveis no correr da evolução do grupo. Esses conceitos biológicos permitem-nos extrapolar uma conclusão válida para tempos de delações premiadas e implosões partidárias: três flechas unidas podem suportar forças opositoras mas nada garante que o conjunto resistirá incólume ao ambiente competitivo no qual está entranhado.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Ensaio: No meio da tempestade

Esse ensaio foi publicado na Gazeta de Ribeirão, nº 36, do dia 20 de fevereiro de 2005. Diferentemente dos outros textos publicados nesse jornal, esse não trata especificamente de ciências mas traz um panorama geral sobre o ensino superior no Brasil. Obviamente, as opiniões expressas não esgotam o assunto.

Ensaio: No meio da tempestade

Charles Morphy D. Santos

A universidade brasileira vive em clima de permanente colapso. Parte dos problemas relaciona-se à sua origem elitista, criada como um bem cultural oferecido à minoria dominante, e também à crescente privatização do setor incentivada por políticas neoliberais dos governos federal e estaduais. Apesar da maioria esmagadora da pesquisa nacional se encontrar dentro das universidades públicas, elas têm seus orçamentos reduzidos a cada ano. A falta de estabilidade orçamentária aliada à pouca transparência sobre as verbas para o setor contribuem para lançar a academia no meio da tormenta.

Em geral, há um descompasso entre a pesquisa produzida nas universidades e as exigências tecnológicas do país. Não se defende aqui um modelo de ensino competitivo voltado diretamente para o mercado (como a universidade-empresa norte-americana), mas um modelo que se comprometa tanto com o desenvolvimento da pesquisa básica quanto com a produção de um saber que revele e transforme a realidade nacional. Hoje, a universidade encontra-se fortemente pressionada pelo mercado - na procura de pessoal qualificado para seu alto escalão - e pelas classes baixas - em busca de mobilidade social. Em todo o mundo, além da feroz competição mercantil, a academia envolve-se também nas lutas contra a discriminação, assumindo o papel pretensamente desempenhado pela Igreja há tempos: preservar tradições, produzir riqueza e conhecimento, e garantir o bem-estar. O choque entre a multiplicidade de funções a ele apregoadas e as suas concepções ideológicas originais está no cerne da crise atual do modelo de ensino superior.

Os currículos universitários encontram-se defasados, fragmentados e pouco maleáveis, o que dificulta o entrosamento interdisciplinar e a adequação dos programas aos interesses fundamentais da sociedade. Principalmente nas instituições públicas, os entraves às reformas curriculares impedem a modernização dos cursos. Assim, os gastos aumentam, o que não se reflete em aumento de qualidade. Com a carga horária inflacionada, o tempo para estudo e atualização reduz-se drasticamente, e a formação acadêmica distancia-se da amplitude e universalidade prometidas pelo ensino superior.

O quadro de crise é ainda pior se considerarmos a desvalorização da atividade docente (baixos salários nas instituições públicas e ausência de plano de carreira nas particulares) e a não participação da comunidade acadêmica nos processos de tomada de decisão. Também a estrutura de poder conservadora e centralizadora, fundida à incompetência de muitos dos responsáveis pelo seu funcionamento – envolvidos em projetos de forte apelo midiático como a abertura de novas unidades enquanto as existentes definham –, influenciam para o aumento do descrédito quanto ao presente e futuro da universidade brasileira.

Recobrar o status das instituições de ensino superior depende da recuperação da confiança nas instituições sociais e políticas do país, que não satisfazem os interesses emergentes. É imprescindível examinar de forma concreta a função da universidade na produção e disseminação de conhecimento e competência profissional, em vistas de se estabelecer políticas de ensino, pesquisa e extensão voltadas para a realidade regional e nacional. Cabe ao Estado assumir o seu papel na reformulação do projeto universitário, sem desconsiderar os interesses e as diferentes concepções presentes na própria academia.

Todos os segmentos da sociedade devem participar do soerguimento da universidade brasileira. Só a partir da mudança de identidade e conseqüente negação do seu caráter intrinsecamente elitista é que o ensino superior no Brasil poderá encontrar um modelo coerente e democrático de desenvolvimento.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Referências sobre evolução, sistemática e biogeografia

Reprisando algumas das referências para quem se interessa por evolução, sistemática e biogeografia:

1. Amorim, D.S. 2002. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Editora Holos, Ribeirão Preto.

2. Blanc, M. 1994. Os herdeiros de Darwin. Editora Scripta.
3. Bowler, P. 2003. Evolution: the history of an idea. Los Angeles, University of California Press.
4. Calor, A.R. & Santos, C.M.D. 2004. Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária. Ciência Hoje, 210 (35), 59-61.
5. Chalmers, A.F. 1993. O que é ciência, afinal? Editora Brasiliense, São Paulo.
6. Darwin, C. 1859 (2004). A origem das espécies. Editora Martin Claret, São Paulo.
7. Dawkins, R. 1998. Universal Darwinism, pp. 15–37, in: Hull, D.L & Ruse, M. (eds.) The philosophy of biology. Oxford University Press, New York.
8. Dawkins, R. 1998. A escalada do monte improvável: uma defesa da teoria da evolução. Companhia das Letras, São Paulo.
9. Dawkins, R. 2000. Desvendando o arco-íris. Companhia das Letras, São Paulo.
10. Dawkins, R. 2001. O relojoeiro cego. Companhia das Letras, São Paulo.
11. Dawkins, R. 2005. O capelão do diabo. Companhia das Letras, São Paulo.
12. Eldredge, N. 1989. Macroevolutionary dynamics: species, niches, and adaptative peaks. McGraw-Hill Publishing Company, New York.
13. Eldredge, N. 1995. Reinventing Darwin: the great debate at the high table of evolutionary theory. John Wiley & Sons, New York.
14. Ferreira, R. 1990. Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução. Edusp, São Paulo.
15. Gould, S.J. 1980 (1989). O polegar do panda. Editora Martins Fontes, São Paulo.
16. Gould, S.J. 1989 (1990) Vida maravilhosa. Companhia das Letras, São Paulo.
17. Gould, S.J. 1998. On replacing the idea of progress with an operational notion of directionality. In: Hull, D.L & Ruse, M. (eds.), The philosophy of biology. Oxford University Press, New York, pp. 650–668.
18. Gould, S.J. 2001. Lance de dados: a idéia da evolução de Platão a Darwin. Editora Record, São Paulo.
19. Gould, S.J. 2002. The structure of evolutionary theory. The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge.
20. Gould, S.J. 2003. I have landed – the end of a begging in Natural History. Three Rivers Press, New York.
21. Hennig, W. 1966 [1979]. Phylogenetic Systematics. University of Illinois Press, Urbana.
22. Hull, D.L. 1988. Science as a process: an evolutionary account of the social and conceptual development of science. University of Chicago Press, Chicago.
23. Kitching, I.J., Forey, P.L., Humphries, C.J. & Williams, D.M. 1998. Cladistics: the theory and practice of parsimony analyses. Oxford University Press, New York.
24. Kuhn, T.S. 1962 (2003) A estrutura das revoluções científicas. Editora Perspectiva, São Paulo.
25. Lakatos, I. 1977. The methodology of scientific research programmes: philosophical papers, Volume 1. Cambridge University Press, Cambridge.
26. Larson, E.J. 2006. Evolution: the remarkable history of a scientific theory. The Modern Library, New York.
27. Lovejoy, A.O. Buffon and the problem of species. 1959a. In: Glass, B., Temkin, O. & Strauss Jr., W. (eds.) Forerunners of Darwin 1745–1859, Baltimore, Johns Hopkins University Press, p. 84–113.
28. Lovejoy, A.O. 1959b. The argument for organic evolution before the Origin of species 1830–1858. In: Glass, B., Temkin, O. & Strauss Jr., W. (eds.) Forerunners of Darwin 1745–1859, Baltimore, Johns Hopkins University Press, p. 356–414.
29. Mayr, E. 1982 (1998). O desenvolvimento do pensamento biológico. Editora da Universidade de Brasília, Brasília.
30. Mayr, E. 1991 (2006). Uma ampla discussão: Charles Darwin e a gênese do moderno pensamento evolucionário. Funpec editora, Ribeirão Preto.
31. Mayr, E. 2000. Darwin’s influence on modern thought. Scientific American, 283:66–71.
32. Mayr, E. 2006. Biologia, ciência única. Companhia das Letras, São Paulo.
33. Meyer, D. & El-Hani, C. 2005. Evolução: o sentido da biologia. Editora Unesp, São Paulo.
34. Nelson, G. & Platnick, N. I. 1981. Systematics and biogeography: Cladistics and vicariance. Columbia University Press, New York.
35. de Pinna, M.C. 2001. Conrad Gesner e a sistemática biológica. Ciência Hoje 178 (30) 82-84.
36. Popper, K. 1959. The Logic of Scientific Discovery. Hutchinson, London.
37. Popper, K. 1962. Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge. Routledge, Kegan & Paul, London.
38. Popper, K. 1976 (1977). Autobiografia intelectual. Editora Cultrix, Universidade de São Paulo.
39. Schuh, R.T. 2000. Biological Systematics. Cornell University Press, Ithaca.
40. Somit, A. & Peterson S.A. (eds.) 1989. The dynamics of evolution: the punctuated equilibrium debate in the natural and social sciences. Cornell University Press, Ithaca and London.
41. Schuh, R.T. 2000. Biological Systematics. Cornell University Press, Ithaca .
42. Tort, P. 2004. Darwin e a ciência da evolução. Editora Objetiva, Rio de Janeiro.
43. Wallace, A.R. 1858. On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type. Proceedings of the Linnean Society of London, 3, 53–62.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Porque Popper não vale para a cladística

Trecho de "Jantando dinossauros com Hennig", artigo que submeti recentemente à Scientia Studia:

"Qualquer análise filogenética se inicia com a transformação da observação da diversidade em códigos que servem como base de dados sobre os quais será aplicado um algoritmo. Essa etapa carrega subjetividade, pois não há observações livres de teorias. Nas palavras do Nobel de Medicina e Fisiologia de 1960, sir Peter Medawar (1979, p. 83), 'A observação é um processo crítico e proposital; há uma razão científica para se fazer uma observação e não outra. O que o cientista observa é sempre uma diminuta parcela no vasto campo dos possíveis objetos de observação'. A observação é escolhida segundo critérios que nem sempre podem ser qualificados como objetivos.

A análise filogenética fundamenta-se no teste de congruência entre os caracteres inicialmente considerados homólogos. O objetivo da congruência é descobrir as relações evolutivas entre os organismos. Dessa forma, os padrões que resultam em relações de parentesco na cladística são resultado da homologia – um cladograma de táxons representa uma hierarquia de homologias (Ebach et al., 2005). Para a sistemática filogenética, a não-congruência de padrões de distribuição de caracteres e seus estados de caráter em um cladograma leva à chamada homoplasia, que é a negação de uma hipótese primária de homologia filogenética em favor de uma hipótese de surgimento independente de uma característica em um dado cladograma".

Trecho de "Using the logical basis of phylogenetics as the framework for teaching biology", um artigo que escrevi com o Dr. Adolfo Calor (FFCLRP-USP) e aceito para publicação na Papéis Avulsos de Zoologia:

"Despite some disagreement on the subject, different cladograms derived from different data sources are unfalsifiable according to the Popperian argument (Popper, 1959, 1962). However, when a cladogram is coherent (non-contradictory) with other cladograms – it does not matter the kind of evidences – it means that the hypothesis has a high degree of corroboration. Consequently, as they are scientific hypotheses, cladograms can be tested against data provided by multiple sources. Those cladograms shown to be unsupported (contradictory) are often abandoned, while those that remain well substantiated continue to be used. This context, Popperian philosophy provides the justification for phylogenetic analysis. (Wiley, 1975; Nelson & Platnick, 1981; Farris, 1983; Kluge, 1997; Faith & Trueman, 2001)".



Recentemente, foi publicado um artigo na Cladistics com uma perspectiva bastante interessante a respeito da aplicação do pensamento popperiano na sistemática biológica: "The unfalsifiability of cladograms and its consequences", por Lars Vogt (Cladistics, 24(1), February 2008, 62-73). Nele, Vogt fala sobre a impossibilidade de se falsear uma hipótese filogenética. Ele faz um apanhado geral do falseacionismo popperiano e chega à conclusão de que a filosofia de Popper não cabe no raciocínio filogenético, em nenhuma etapa (nem durante o teste de congruência dos caracteres, como amplamente aceito, a partir da idéia de que hipóteses de homologia primária podem ser falseadas, i.e., "corroboradas" ou "refutadas").

O embasamento "popperiano" da filogenética é especialmente derivado do trabalho de James S. Farris (1983), que utilizou uma concepção bastante idiossincrática do que seria a filosofia de Popper e a incorporou ao raciocínio cladístico. O trecho grifado acima reflete uma concepção disseminada na sistemática filogenética moderna. Mas existem alguns problemas...

Para Popper, uma teoria tem que ser falseável, sim, mas ela NUNCA é falseada de fato (uma vez que o próprio falseador também é uma teoria, mesmo sendo ele uma observação). Quando uma hipótese de homologia primária não é congruente com as demais, ela não é REFUTADA, em um sentido popperiano, visto que a distribuição de caracteres homoplásticos é perfeitamente adequada à qualquer topologia. Sendo assim, qualquer hipótese filogenética pode abarcar tanto sinapomorfias quanto homoplasias - nenhuma hipótese de homologia primária é "falseada" ou "corroborada".

Segundo Popper, uma teoria científica é passível de falseamento se ela proíbe a ocorrência um determinado (ou determinados) evento ou observação (por exemplo, a teoria da relatividade "proíbe" que a luz continue em linha reta quando passa próxima de uma grande massa, como uma estrela). Dessa forma, hipóteses científicas em um sentido popperiano são aquelas que se baseiam na possibilidade de falseamento de previsões oriundas da teoria. Hipóteses de homologia primária (ou hipóteses filogenéticas como um todo) NÃO PROÍBEM NADA e NÃO FAZEM PREVISÕES SOBRE NADA. Sendo assim, elas não se enquadram no critério popperiano, que não foi criado originalmente no âmbito de hipóteses históricas como os cladogramas.

O trabalho de Vogt (2008) tem uma conclusão muito pertinente. Ele diz que qualquer hipótese científica - cladogramas inclusos - passam por algum tipo de teste de hipótese, que não precisa seguir os preceitos popperianos, e que a sistemática é uma ciência madura o suficiente para ter sua própria filosofia subjacente.

Esse é um artigo que vale a pena ser lido e, se possível, "deglutido e incorporado às células do sistemata". Eu já estou revendo meus conceitos...

sábado, 2 de agosto de 2008

Parábola cética

Entre 1988 e 1989, foi publicada uma edição especial do Surfista Prateado, escrita por Stan "The Man" Lee e ilustrada por Jean Giraud Moebius, intitulada Parábola. Nela, Galactus, uma entidade cósmica conhecida como "o Devorador de Mundos", vem à Terra para destruí-la e se alimentar da sua energia. Para isso, Galactus permite que as pessoas façam o que bem desejarem em seu nome para, assim, encontrarem a "salvação" - o plano é permitir que a humanidade se aniquile por meios próprios. Nesse ínterim, surge seu ex-arauto, o Surfista Prateado, questionando o direito de Galactus de atacar a Terra com um estratagema tão ardiloso.

Essa é uma das mais belas HQs de super-heróis já criadas. Definitivamente, não é leitura apenas para crianças...




Como bem aponta João Carlos, do blog Chi vó, non pó, em um comentário aqui nesse espaço, o ceticismo não é uma perspectiva exclusiva das ciências. Até mesmo as religiões poderiam se beneficiar dele (através, por exemplo, de uma auto-análise periódica - quiçá constante - que levasse à depuração de suas premissas reiteradas vezes consideradas infundadas). No entanto, essa me parece uma visão de mundo por demais otimista. As religiões, quando tomadas no geral, não parecem fazer um esforço sincero para depurar o que podemos chamar de suas "superstições infundadas".

Religiões deveriam tratar de alguns dos aspectos éticos e morais do homem e da sua condição na existência. Desde tempos remotos pré-científicos, antes mesmo da história escrita, elas são importantes para aqueles que buscam na fé algum conforto para suas vidas, ou que vêem na devoção ao divino, independente de como ele se expressa, a sua tábua de salvação. O misticismo também funcionava como fator organizador dos agrupamentos sociais primitivos, aparecendo por vezes associado às primeiras tentativas do homem de interpretar os fenômenos naturais.

Como é de amplo conhecimento, as doutrinas religiosas baseiam-se em dogmas, fundamentos doutrinários muitas vezes frutos de pretensas revelações ditadas pelos próprios deuses, santos ou espíritos iluminados. Visto que seriam as palavras divinas em si, apesar de transcritas e interpretadas por homens, e uma vez tidos como certos pela alta hierarquia da igreja, congregação, seita e similares, esses preceitos transformam-se em ditos sagrados e, infelizmente, não se prestam a indagações sobre seus fundamentos. Assim, passam a corresponder à verdade absoluta proferida pelo altíssimo. Nesse sentido, o desenvolvimento de uma postura cética torna-se pouco provável no âmbito das religiões, pois o questionamento dos dogmas pode levar à dúvida quanto à validade desse ou daquele preceito, conseqüentemente erodindo os pilares sustentadores do pensamento religioso.

A questão é ainda mais ampla e extrapola essa frágil dicotomia ciência-religião. Qual seria o objetivo de se estimular a reflexão individual (ou coletiva), o "pensar com a própria cabeça", se tudo parece já estar escrito, refletido e "pensado"? É muito mais cômodo transferir o ato de raciocinar para o padre, o pastor, o papa... ou o jornalista, o professor, o cientista... já ouvi muitos alunos dizerem "Professor, o que eu tenho que saber?" ou "Professor, o que o senhor quer que eu estude?" ou ainda "Professor, como eu devo pensar a respeito desse assunto?".

Parece que sempre buscamos um führer, um condutor para nos mostrar o que deve e o que não deve ser feito. Nas palavras do Surfista Prateado: "Eles desejam um líder, assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas".

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Sobre blogs de ciências

"Tudo o que tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que souber (...) Se começasse a escrever rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma coisa, achava logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los fora e começar com a primeira proposição afirmativa verdadeira e simples que tivesse escrito".
Ernest Hemingway, A moveable feast (Paris é uma festa), p. 29

O filósofo John Wilkins, no seu artigo The roles, reasons and restrictions of science blogs, publicado na edição de agosto da Trends in Ecology and Evolution, define um blog como "fundamentalmente uma página da web atualizada constantemente, com entradas ('postagens') que têm uma data, tempo e, se muitos autores contribuírem para o blog, selos com autor e nome". Para ele, um das razões flagrantes para a existência de blogs é a comunicação científica. Além disso, essa também é uma forma de desmistificar a ciência e de fazer frente a perspectivas contrárias, presentes no discurso público (e.g., anti-evolucionistas), àquelas científicas. Ainda segundo Wilkins, um blog que representa uma comunidade científica ou subdisciplina irá ele mesmo se transformar em uma comunidade.

Tomadas em conjunto, essas idéias parecem expressar, no geral, o que pensam as pessoas que se dedicam a escrever nesses veículos que - erroneamente - são considerados como web 2.0 (essa denominação foi usada inclusive no artigo sobre blogs científicos veiculado na edição de julho da Scientific American Brasil. A tal web 2.0 - discutida por muitos teóricos que trabalham com cibercultura, entre eles o brasileiro André Lemos - demandaria muito mais interação e possibilidade de interferência que o simples postar-comentar-responder dos blogs). Porém, há sempre o outro lado da moeda, que o próprio Wilkins lembra: blogs carecem de controle de qualidade e editoração adequada. Além disso, ainda há o preconceito da "velha guarda" da ciência (sem conotação pejorativa), que privilegia o trabalho "real" em detrimento do que é divulgado na rede.

Assim como o papel das revistas de hard-science, blogs são meios para a divulgação de idéias. É inocente quem pensa que o trabalho publicado (impresso) passa por um crivo tão grande de qualidade quanto seria de se esperar - basta relembrarmos dos recentes episódios de manipulação de dados em artigos da prestigiada Science. Além do mais, mesmo publicações de menor índice de impacto, mas de vital importância para áreas específicas das ciências, também têm problemas com o peer-review. Pesquisadores da "periferia" da ciência, como os brasileiros, sempre sofrem mais para terem seus artigos publicados, sendo eles valiosas contribuições para o campo de escrutínio ou não. Enquanto isso, profusões de textos "copy-and-paste" saem todos os meses, mais onerando do que desenvolvendo as ciências como um todo.

Nesse ínterim, o que talvez conspire contra os blogs seja o próprio rótulo 'blog', comumente relacionado a diários pessoais on-line que, para muitos, caracterizam a geração e-mail (geração web? geração internet? geração orkut?). Blogs científicos podem significar muito mais do que isso. Para tanto, ao serem preparados, e independentemente da linha de argumentação ou do assunto comentado, as postagens precisam ser cuidadosamente construídas e divulgadas. É claro que a ciência exposta não deve ser vetusta e hermética, sob o risco de afastarmos ainda mais o público já pouco afeito a exposições aprofundadas sobre o conhecimento científico. No entanto, não há motivos para que uma postagem em um blog não seja tão zelosa sobre seu conteúdo e forma quanto um texto para uma revista tradicional. Quem leu o artigo do Wilkins pôde perceber claramente que não há nada ali que já não havia sido discutido anteriormente na própria blogosfera.

Um outro aspecto interessante, levantando no Roda de Ciência, diz respeito ao papel dos blogs na educação. Escrevi anteriormente em um artigo publicado na Ciência Hoje e apresentado aqui em uma versão "sem cortes" o seguinte parágrafo:

"A aula não pode se ater à superficialidade dos livros didáticos, devendo ser acrescida das discussões filosóficas e históricas pertinentes. A leitura é fundamental para o professor, incluindo as obras originais e compêndios sobre os tópicos estudados. Atualmente, há ferramentas disponíveis na internet, tais como blogs, revistas de divulgação online, portais com obras completas de autores consagrados das ciências e da filosofia, e sítios com apresentações, exercícios e documentários que podem ser importantes fontes de informação para o docente – e também para os alunos, especialmente quando orientados de forma adequada".

Blogs não são substitutos da divulgação tradicional (em papel) e não devem ser vistos dessa forma. Não obstante, eles são ferramentas complementares, que permitem uma dimensão extra para a publicação da pesquisa científica, com recursos próprios que permitem grande dinamismo e um maior alcance para o que é discutido. Obviamente, a importância dos blogs para a comunidade científica ainda não pode ser analisada em uma perspectiva histórica, mas seu impacto no ensino de ciências, por exemplo, pode ser notado por muitos dos que utilizam tal ferramenta.

Independentemente do rótulo, o que se escreve deve ser "verdadeiro", como Hemingway diz. O meio faz parte, mas não é ele próprio a mensagem.

PS: Wilkins reclamou em seu blog da tradução do seu artigo publicada no Roda de Ciência. Ao meu ver, sua atitude foi arrogante e contrária ao espírito da blogosfera científica. Apesar de idioma universal das ciências, o inglês não é o único. A idéia da tradução foi facilitar o acesso à informação para aqueles que não podem conseguir o artigo original ou não conseguiriam decifrá-lo. De qualquer maneira, como foi comentado acima, não há idéias originais no artigo de Wilkins - ele simplesmente é um síntese.

Este post pertence ao Roda de Ciência. Por favor, insira seus comentários aqui.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Ensaio: Ponto brilhante na escuridão



Esse ensaio foi publicado no número 31 da Gazeta de Ribeirão, no dia 16 de janeiro de 2005. O título faz referência a um dos livros do astrônomo e extraordinário divulgador da ciência Carl Edward Sagan (1934-1996), O Mundo Assombrado Pelos Demônios - A ciência como uma vela no escuro (republicado recentemente pela Companhia das Letras em uma edição de bolso).
Sagan é responsável por uma vasta obra de popularização do pensamento científico, sempre se preocupando em tornar a ciência atraente para o público leigo sem, no entanto, superficializar ou distorcer conteúdos. É impossível assistir à sua série Cosmos e não se emocionar com o poder da ciência em desvendar as particularidades da natureza. Muitos dos livros de Carl Sagan foram traduzidos para o português e podem ser facilmente encontrados em livrarias e algumas bibliotecas.



Ponto brilhante na escuridão

Charles Morphy D. Santos

O ano de 2004 terminou com a morte de centenas de milhares de pessoas vítimas da tsunami que varreu a região costeira de alguns países banhados pelo Oceano Índico, promovendo um cenário catastrófico poucas vezes vistos na história recente da humanidade, exceção feita talvez aos genocídios cometidos durante as guerras e os governos totalitários do século XX. Tão logo os primeiros informes aportaram nas TVs e jornais de todo o mundo, vozes levantaram-se à procura de causas para a tragédia, muitas delas (incluindo a mídia dita especializada e os comentaristas prontos a despejar sobre o público sua sabedoria e assertivas mordazes) insinuando que o maremoto fora uma resposta da natureza aos impropérios contra ela cometidos por nossa espécie. De maneira análoga, muitos acreditam que antes do aparecimento do homem não havia fenômenos como o aquecimento global provocado pelo efeito estufa, ciclones e chuvas destruidoras, desconsiderando conceitos científicos simples e pesquisas que procuram entender como esses eventos têm alterado o planeta desde a sua formação, há cerca de 4,5 bilhões de anos. Como uma luz norteando a viagem pelo desconhecido, a ciência busca compreender o mundo sem apelar para a ira divina ou vendetas da natureza, legando ao homem o papel de participante e não de agente majoritário de todos os fenômenos naturais que nos assolam.

A Terra é composta por um “quebra-cabeça” de placas tectônicas interconectadas e em constante movimento - o que explica, por exemplo, o distanciamento constante entre a América do Sul e a África, que formavam uma única massa de terra há 140 milhões de anos. Como a maioria deve saber, a tsunami que atingiu os continentes asiático e africano teve origem em um deslocamento tectônico no meio do oceano, que culminou na formação de uma onda gigantesca. Apesar da impossibilidade de se controlar tal evento geológico, a tragédia era inevitável? Não. Se os governantes locais e autoridades responsáveis tivessem alguma visão científica ou fossem assessorados por pessoal competente, investimentos na implantação e desenvolvimento de tecnologias teriam impedido, ou minimizado, a perda de vidas.

Hoje, a ciência é fundamental para a sobrevivência do homem. De uma maneira efetiva e abrangente, e não como era feito nos antigos cursos de Educação Moral e Cívica que tentavam incutir nos estudantes algum amor pelo seu país, as escolas deveriam estimular os alunos, desde a infância, a pensar de forma crítica e cética, sem despejar-lhes pseudo-ciências desprovidas de conteúdo e da beleza inerentes às explicações científicas sobre o mundo natural. Aprofundar questões científicas é saudável para a sociedade pois o emprego da dúvida como princípio orientador evita a confiança cega e a idolatria, fundamentos do charlatanismo e da corrupção. Infelizmente, como cita o astrônomo Carl Sagan, “é muitíssimo mais fácil apresentar de modo atraente a sabedoria destilada durante séculos de interrogação paciente e coletiva da natureza do que detalhar o confuso mecanismo de destilação”. E, assim, assistimos impotentes à profusão de medicamentos alternativos, histerias coletivas baseadas na tendência do dia e seitas que prometem felicidade e casas com piscina.

Diferentemente da maioria das religiões e das pseudo-ciências, o pensamento científico beneficia-se do ceticismo e cresce a partir dele. Isso não significa que o cientista é um rabugento e insolente, mas alguém que admira o mundo natural e tenta explicá-lo à luz de evidências testáveis. A ciência protege-nos da ignorância. Por conseguinte, investir em ciência é garantir o bem-estar social em todos os níveis, mantendo acesa a chama de uma vela que ilumina nosso caminho escuro assombrado por demônios.