
Talvez essa seja a mais trivial das perguntas. No entanto, exige a mais complexa das respostas...
Como surgiu a vida? Como foram os primeiros organismos que podemos chamar realmente de vivos?
Essas questões remontam às primeiras civilizações humanas conhecidas e as tentativas de respondê-las podem ser encontradas dos mitos de criação de culturas pré-científicas aos modernos laboratórios de biologia molecular, passando por um sem número de tomos filosóficos e controversos dogmas religiosos.
A profusão de teorias sobre o assunto é espantosa. Infelizmente, reconstruir o passado é uma tarefa hercúlea, tanto mais difícil quanto mais distante no tempo estão os eventos que se quer conhecer. Quando falamos sobre a origem da vida, necessariamente temos que voltar ao menos 4 bilhões de anos, para a infância do nosso planeta, quando o mundo era muito diferente do atual.
Provavelmente, nunca saberemos em detalhes precisos como começou a vida na Terra. Para a ciência, o desafio é construir uma narrativa histórica lógica e coerente sobre os eventos que ocorreram há bilhões de anos, dos quais pouca informação está disponível ou foi preservada.
Uma das maneiras de inferir como foi o passado biológico é o que Richard Dawkins chama de “triangulação" em seu livro “The ancestor’s tale”, de 2006. Buscamos no mundo vivo de hoje informações que possam ser úteis para compreender como deve ter sido a natureza de outrora. Características compartilhadas pelos vários grupos biológicos existentes podem permitir-nos, por exemplo, postular como foi o possível ancestral deles todos.
Praticamente todas as formas de vida presentes na Terra compartilham as mesmas propriedades químicas e o mesmo código genético, com raras exceções. Todas as células utilizam energia, seja a partir da luz do Sol ou a partir de compostos químicos, e sintetizam ATP (Adenosina Trifosfato, a “moeda energética” da célula). Todos os organismos têm um sistema de replicação baseado em DNA e RNA. A universalidade dessas moléculas corrobora a hipótese de que os seres vivos descendem de um mesmo ancestral, no qual as principais características que definem a vida estariam estabelecidas. Parece improvável – mas, claro, não é impossível – que sistemas tão complexos e específicos tenham surgido independentemente e evoluído em paralelo, o que torna bastante sólida a hipótese de um ancestral comum para todos os organismos recentes, perdido no passado longínquo.
Há um consenso que defende a definição de um ser vivo como qualquer entidade biológica que apresente algum tipo de metabolismo, uma estrutura celular básica e que possa se reproduzir. Em suma, um organismo deve ser capaz de se replicar, isto é, passar a informação genética para os seus descendentes, o que só é possível a partir de reações metabólicas. Nas formas de vida atuais, o DNA e o RNA são as moléculas orgânicas responsáveis pelo conteúdo informacional, enquanto as proteínas fornecem a matéria estrutural para as células e agem como enzimas, possibilitando a ocorrência das reações químicas intracelulares. A vida como conhecemos é impossível sem essas duas classes de moléculas. Em qualquer espécie existe uma relação indissociável entre ácidos nucléicos e proteínas: sem DNA (e RNA), não há síntese de proteínas e, sem estas, não ocorre a replicação dos ácidos nucléicos. A complexidade inerente às duas moléculas é grande demais para se aceitar a idéia de surgimentos espontâneos e independentes. Como resolver o paradoxo da origem de ácidos nucléicos e proteínas? E a estrutura celular, teria ela precedido o material genético e o metabolismo?
Ambientes primitivos
Há 4,6 bilhões de anos, gases superaquecidos como o sulfeto de hidrogênio, gás carbônico (CO2), nitrogênio, metano, além de água sob a forma de vapor, acumulavam-se sobre a superfície terrestre, constituída de rochas derretidas coalescendo e um turbilhão de metais. O planeta era atingido freqüentemente por intensas descargas elétricas, raios ultra-violeta e radiação provenientes do cosmo, bem como por grandes bólidos extra-terrenos (restos de grandes meteoros e outros corpos celestes e não naves espaciais pilotadas por homenzinhos verdes...). Esse é apenas um dos cenários sobre como era a atmosfera primitiva. Apesar das controvérsias, sabe-se com alto grau de certeza que ela era muito diferente da atmosfera atual, com corpos d’água e oceanos incipientes sendo vaporizados constantemente. Chuvas torrenciais seguiam-se em ciclos intermináveis, transformando o planeta em uma gigantesca panela de pressão. Inspirado no inferno grego e a morada dos mortos, o Hades, a fase inicial da Terra em formação recebeu o apropriado nome de Éon Hadeano (entre 4,6 a 3,8 bilhões de anos atrás). Esse planeta em ebulição, aparentemente inóspito, foi o berço da vida.
Também há muitas especulações a respeito do passado de outros planetas do Sistema Solar. Vários estudos apontam que Marte também apresentava características propícias à biogênese há alguns bilhões de anos. O diâmetro do planeta vermelho é menor que o da Terra, o que diminui a incidência de impactos celestes (corpos maiores tornam-se alvos mais fáceis). Se as hipóteses estiverem relativamente corretas, a atmosfera marciana primitiva, rica em CO2, juntamente com a presença de oceanos, talvez repletos de vulcões, compunham um cenário favorável ao aparecimento de organismos. Uma vez surgida em Marte, a vida poderia se dispersar para outros lugares do universo, inclusive a Terra, através da ejeção de material rochoso para o cosmos após grandes impactos. O material ejetado transportaria microorganismos em seu interior, funcionando como cápsula de proteção às condições extremas do vácuo espacial. Ao precipitar sobre a superfície de algum planeta, as rochas trariam com elas as formas de vida sobreviventes. Essa hipótese, a panspermia, foi proposta pela primeira vez em termos semelhantes pelo filósofo grego Anaxágoras, no século V a.C. Teríamos nós todos uma ascendência marciana? Isso explicaria o fascínio humano pelos céus e as estrelas e nossas constantes tentativas de “ligar para casa”...

As evidências geológicas dos organismos vivos mais antigos na Terra remontam a 3,5 bilhões de anos, mas é provável que a vida tenha aparecido há mais de 3,8 bilhões de anos. Essa datação baseia-se em resíduos moleculares de carbono pesado (C13) encontrados em rochas na Groenlândia. Há registros de fósseis microbianos e estromatólitos (estruturas sedimentares orgânicas) em rochas de 3,5 bilhões de anos. Na África do Sul e na Austrália existem microestruturas carbonáceas, provavelmente de origem microbiana, impressas em rochas de 3,3 a 2,5 bilhões de anos de idade. Microfósseis filamentosos também são conhecidos de depósitos vulcanogênicos australianos de 3,2 bilhões de anos.